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Entrevista: "Qualquer projeto que não contemple a participação dos índios irá fracassar", diz antropólogo

Amazonia.org - www.amazonia.org.br
12 de Set de 2008

A decisão da Justiça Federal de Marabá favorecendo os índios da etnia Xinkrin pode ser um divisor de águas para o tema, podendo embasar decisões semelhantes em conflitos entre empresas e comunidades indígenas. A mineradora Vale do Rio Doce foi condenada a pagar mensalmente o valor de R$268.054,62 à comunidade Xikrin do Cateté e R$388.843,27 aos Xikrin do Djudjekô, num total de mais de R$ 650 mil a serem depositados em favor das associações de cada aldeia.

O antropólogo e também professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio Janeiro, Cesar Gordon comentou o fato, além de relatar outras experiências de parcerias entre indígenas e empresas. Segundo ele, para resolver impasses como este é necessário levar em consideração três palavras-chave: inteligência, diálogo e planejamento, sendo fadado ao fracasso qualquer projeto ou planejamento que não contemple os indígenas em todos os processos.

No caso da Vale, Gordon ressaltou que faltam planejamento e organização, já que vontade de diálogo e inteligência existem.

Confira abaixo a entrevista:

Por qual motivo foi gerado o processo entre os indígenas contra a Companhia Vale do Rio Doce?
O caso da Vale com os índios Xikrin não é recente e pode-se dizer que o processo atual é o resultado de uma cadeia de acontecimentos que vêm de alguns anos. A relação iniciou-se na década de 1980, quando houve a instalação da empresa na região da Serra de Carajás, que é território habitado pelos Xikrin desde o século XIX. Quando começaram as atividades minerarias, foram estabelecidas algumas normas legais com objetivo de resguardar os índios dos impactos sociais, econômicos e ambientais que adviriam da extração industrial de minério na área que hoje é a Floresta Nacional de Carajás e que faz fronteira com a Terra Indígena Xikrin.

Essas normas vinham sendo cumpridas pela Vale por meio de um convênio assinado com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em 1989. Posteriormente, com a crescente organização política dos índios, a forma de gerenciar o convênio mudou. Em resumo, a partir de 1999 ou 2000, os recursos que eram administrados pela Funai passaram a ser geridos por associações criadas pelos próprios índios. Sem a intermediação da Funai, o controle dos índios sobre os recursos aumentou. Ao mesmo tempo em que isso ocorria, a Vale, de maneira surpreendente, praticamente eximiu-se da responsabilidade pela boa execução do convênio.

Em conseqüência, aumentaram as dificuldades de diálogo e os conflitos entre as duas partes. No final de 2006, a Vale alegou que um grupo de índios invadiu violentamente as instalações no núcleo urbano de Carajás para exigir aumento no valor dos repasses que a companhia fazia regularmente à comunidade indígena. Em meio a uma crise em que houve acusações dos dois lados, a Vale decidiu unilateralmente interromper o pagamento. Nesse momento, houve intervenção do Ministério Público e da Funai e o processo foi aberto. No decorrer do processo, não sei exatamente em que termos, os Xikrin e a Vale voltaram a conversar e junto com a Funai e o MP (Ministério Público) chegaram a propor um acordo, mas o juiz do caso achou por bem levar o processo até o final e proferir a sentença.

Quais foram os principais impactos que o projeto da Vale causou na região em que atuou em relação ao meio ambiente e aos indígenas da etnia Xinkrin?

Do ponto de vista do meio ambiente, eu não saberia dizer com certeza quais são, porque não sou especialista nessa área. Mas certamente há muitos, embora, até recentemente, a Vale nunca tenha atuado dentro do território indígena ou mesmo em proximidade aos limites demarcados. As minas e as instalações industriais da empresa sempre estiveram a uma distância razoável da terra indígena (apesar de a Flona da Carajás fazer fronteira com aquela).

Já do ponto de vista econômico, social, cultural e político, os impactos são vários, complexos e de diversas ordens. Com a ressalva de que nem todos são necessariamente negativos. Aliás, os impactos da atuação da Vale na região não se restringem aos índios, evidentemente. A implantação de uma tremenda estrutura mineraria e empresarial vem, nos últimos 20 ou 30 anos, mudando a face da região inteira, incluindo-se cidades como Marabá e Parauapebas. Toda questão é saber se a presença da Vale será capaz de gerar desenvolvimento com melhoria da qualidade de vida das populações locais, com respeito ao meio ambiente e distribuição horizontal de benefícios.

Você acha que existiu dificuldade dos índios para aplicar o dinheiro recebido pelo fato de não fazer parte da sua cultura original?

Antes de mais nada, não sei se concordo com a premissa de que os índios têm dificuldade em aplicar o dinheiro. Eu creio que essa percepção é fruto de um mal-entendido cultural e depende intrinsecamente do ponto de vista. Ocorre que as prioridades e os objetivos de vida dos Xikrin não são exatamente os mesmos que os nossos. Sua forma de lidar com valores econômicos e simbólicos são diferentes.

Em poucas palavras, a sociedade Xikrin é regida por uma lógica distinta da que rege a nossa sociedade, e conseqüentemente da lógica econômica capitalista à qual estamos acostumados. Os Xikrin têm várias idéias de como usar o dinheiro de maneira altamente satisfatória a seus próprios propósitos, de maneira criativa e produtiva. Por exemplo, nos últimos anos eles incrementaram vivamente as atividades rituais, incorporando todo um conjunto de bens industrializados, facilidades técnicas e tecnologias. E isso é fundamental, pois o ideal da pessoa Xikrin, a beleza e o valor das pessoas estão intrinsicamente ligados aos rituais. No entanto, nem todos os processos são controláveis e um dos efeitos advindos da maior penetração do dinheiro na economia Xikrin é uma espécie de "inflação indígena", entendida no sentido estrito de uma perda rápida de valor das riquezas simbólicas tradicionais, o que resulta na necessidade de maior introdução de bens estrangeiros (mercadorias e o dinheiro), dando-nos a impressão de uma espiral de consumo e dispêndio monetário.

Uma das alegações da Vale foi a de que o corte dos recursos foi gerado porque os indígenas faziam mau uso dos recursos repassados. O que acha dessa afirmação?

Como expliquei acima, essa é uma visão parcial. Os Xikrin, por seu turno, alegam que estão fazendo bom uso dos recursos. A questão é que as expectativas não são convergentes.

O que falta ao projeto de assistência financeira da Vale a essas comunidades indígenas para que seja sustentável e eficaz ao longo do tempo?

De um ponto de vista muito geral, essa pergunta se aplica a tudo. Afinal é sempre possível questionar se algum projeto, qualquer projeto - industrial, financeiro, de assistência ou não - tem a garantia de ser sustentável e eficaz ao longo do tempo. Eu suponho que uma pessoa como Bill Gates, por exemplo, deve viver questionando-se a respeito da sustentabilidade e da eficácia da Microsoft ao longo do tempo.

No entanto, sendo mais prático, as três palavras-chave para resolver a equação costumam ser: inteligência (ou expertise), diálogo e planejamento. A primeira, eu creio que existe em boa medida. O importante é agregar as pessoas certas. Já foram feitos muitos estudos e diagnósticos sobre a situação Xikrin, seja do ponto de vista antropológico, seja no que diz respeito a modalidades de gestão das associações e dos convênios com a Vale. Vontade de diálogo também há. Apesar do histórico de conflitos, me parece que tanto a companhia quanto os índios reconhecem a importância da parceria e mantêm aberta a porta para conversar e negociar. Mas falta planejamento, falta organização e sinergia. E não custa repetir: é fundamental não alijar os índios desse processo.

Qualquer planejamento ou projeto que não contemple a participação dos índios, respeitando suas próprias formas de decisão interna, irá fracassar, com toda certeza. Por desconhecimento e preconceito, muita gente não acredita, mas os índios são os principais interessados em que tudo tenha um desfecho positivo. Eles pensam no futuro e sabem ceder. Estão acostumados historicamente a perdas e ganhos. Só não admitem mais um jogo de cartas marcadas onde a banca vence sempre.

Acha que essa vitória pode estimular que a Justiça conceda outras decisões favoráveis às comunidades indígenas que vivem em situações semelhantes?

Talvez. Mas a Justiça precisa levar em conta as especificidades de cada caso.

Qual é sua perspectiva sobre o caso?

Eu não tive acesso ainda à sentença do juiz. É difícil fazer um prognóstico sem entender exatamente as implicações da decisão.

Você conhece o projeto que foi desenvolvido na comunidade de Xerente (TO), após instalação de uma hidrelétrica na região da aldeia? Tal iniciativa é indicada como exemplo de projeto bem sucedida pelo Ministério Público. Você concorda com essa posição?

Eu conheço superficialmente o projeto dos índios Xerente, chamado Procambix, pelo que li em reportagens na imprensa e publicações da Funai. Não conheço a fundo. Eu sempre ouço falar bem do projeto, mas novamente, gostaria de frisar que cada caso é um caso. A história recente dos Xerente e dos Xikrin é muito diversa, assim como o tempo e a intensidade do contato com a sociedade brasileira. Acredito que os Xerente possam estar satisfeitos e admiro o grande esforço que vêm fazendo para estruturar e equilibrar sua sociedade. Mas não sei se funcionaria para os Xikrin.

De qualquer maneira, quando se pensa em difundir como exemplo este ou aquele projeto, é preciso separar dois aspectos: um aspecto político-organizacional, isto é, os modelos de gestão dos programas e projetos; e um aspecto mais estratégico, por assim dizer, isto é, o conteúdo dos projetos.

Talvez no primeiro aspecto, o Procambix sirva de exemplo, desde que não se tire autonomia dos índios na gestão. Incumbir a Funai de gerir os recursos do convênio com a Vale me parece um retrocesso a esta altura. Além disso, eu tenho a impressão, conhecendo os Xikrin, que no plano dos conteúdos, projetos baseados principalmente no extrativismo, na criação de animais e na agricultura não são adequados. Podem até ser implementados, mas não mobilizarão a comunidade por muito tempo. Para os Xikrin é preciso ser mais arrojado e pensar ações integradas em educação, meio-ambiente, economia e cultura, mas que sejam inovadoras. Por exemplo, projetos ligados à produção cultural e audiovisual, que permitam acesso a tecnologias; projetos de compensação por serviços ambientais; projetos de capacitação em alto nível da população mais jovem, com programas de bolsas de estudo. Veja, eu sempre repito este dado: mais de 80% da população Xikrin tem menos de 30 anos. São jovens. Foram criados sob intenso contato com a sociedade brasileira. Conhecem bem a vida nas cidades. Têm enorme interesse por tudo que se relaciona com o "mundo dos brancos", principalmente a tecnologia. Querem aprender a fotografar e a usar vídeo, conhecem internet, as músicas da moda, querem aprender inglês. Não se pode dizer para um jovem Xikrin de 16 anos que fique o tempo todo na floresta pescando e caçando porque era assim que seus bisavôs viviam. E não se pode convertê-lo de uma hora para a outra em produtor de arroz ou criador de gado. Eles não têm know-how e tampouco grande vontade de se engajar em tais atividades.

Por outro lado, é preciso compatibilizar de algum modo o interesse dos jovens com a vida e os valores dos mais velhos, caso contrário pode haver uma ruptura social perniciosa. Por isso é preciso pensar ações que permitam fazer a ponte entre as gerações, aliando cultura e tradição à tecnologia e modernidade.

Uma das características dos Xikrin é a ambição e o arrojo. Então é preciso explorar esse lado. Assim, quem sabe, aproveitando e aperfeiçoando o apoio da Vale, não será possível imaginar a inserção dos Xikrin na sociedade brasileira e no mercado capitalista de forma menos subordinada, com produtos de maior valor econômico e simbólico. Os Xikrin já têm a cabeça na era da informação.

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