VOLTAR

Entre a transposicao e a revitalizacao, uma disputa por recursos

GM, Nacional, p.A5
14 de Jan de 2005

Entre a transposição e a revitalização, uma disputa por recursos
"Será o Iraque de Lula", adverte Apolo Heringer Lisboa, para enfa- tizar sua rejeição ao projeto governa mental de levar parte das águas do rio São Francisco para terras semi-áridas do Nordeste, segundo infor mou do Rio de Janeiro para o mundo o correspondente Mário Osava, da Inter Press Service, no mesmo dia - 12 de janeiro de 2005 - em que o governo federal anunciava a decisão de licitar a obra.
O anúncio saiu com atraso de um mês no cronograma, mas em tempo de a televisão captar as imagens da escavação do primeiro lance - o que deverá ocorrer impreterivelmente até julho de 2006, data no calendário eleitoral além da qual o candidato à reeleição não poderá participar da inauguração de obras públicas.
Data fatal para o filho de Garanhuns, que desde seu primeiro dia de mandato vislumbra na transposição das águas o ato simbólico de um novo Moisés, a conduzir o seu povo, mantido em sequidão física e social durante séculos, por irresponsabilidade dos coronéis da política. Candidata-se, assim, a imortalizar o nome na galeria inaugurada por Dom Pedro II e na qual se instalou Getúlio Vargas, ambos frustrados no sonho de realizar a proeza que o destino coloca agora em suas mãos. Desta vez, não lhe escapará.
Antes, porém, de discutir as justificativas de Lula para a obra, ve- jam-se as contrárias de Lisboa, o entrevistado da IPS. Suas razões estão expostas em manifesto, assinado por 205 organizações, que condena a transposição como "equivocada, insustentável em termos políticos e técnicos sérios, com riscos econômicos, éticos e ambientais previsíveis e conseqüências incalculáveis".
Segundo Lisboa - um médico defensor do projeto de recuperação ambiental do Rio das Velhas, afluente do São Francisco -, aumentar em 3,9%, como prevê o projeto, a água disponível nas áreas que se quer beneficiar ape- "nas favoreceria grandes proprietários de terras e empresários".
Lisboa está longe de falar sozinho. A extensão da oposição que se associa a ele é comparável, guardadas as proporções, à mundial que se opõe à guerra movida por Bush contra o demônio iraqueano do mal. Une governos estaduais, ambientalistas, cientistas, associações comunitárias e profissionais, escoteiros, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), duas centenas de organizações não-governamentais, associações de pequenos produtores com terra, movimentos dos sem-terra, o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, órgão de gestão e planejamento composto por representantes do governo e da sociedade civil, e muitos outros.
A confiar na representatividade, amplitude e diversidade da frente oposicionista, vai concluir-se, com Lisboa, que Lula é o próprio Sadam, já não do deserto, mas do sertão - ele, que, como o próprio Sadam, desfruta de índices de popularidade cada vez mais altos na sua região natal.
Ainda na quarta-feira passada, a onda oposicionista ensaiava novamente sua tsunami, em terra firme de Aracaju, em reunião presidida pelo presidente da seccional da OAB de Sergipe, Henri Clay Andrade, que instalou oficialmente a Frente Nacional em Defesa do Rio São Francisco. Criada na semana passada em Salvador, a frente opõe-se à transposição do "Velho Chico" antes que se cuide de sua revitalização. Eis o cerne aparente do quiproquó.
Além dos opositores mencionados acima, a FNDRSF, como passará a ser conhecida, integra membros da Igreja, prefeitos municipais, parlamentares estaduais e federais, sindicatos de classe, incluída a central CUT, estudantes e entidades representativas dos estados de Sergipe, Alagoas, Bahia e Minas Gerais.
Mas é fato que sobraram defensores do projeto, pelo menos como figurantes, sendo os primeiros os escribas do "Em questão", espécie de última instância da Secretaria de Comunicação, que vive de prestar esclarecimentos de caráter paraoficial pelos canais da Radiobrás. Sabe-se, assim, que é "para assegurar a oferta de água a mais de 12 milhões de brasileiros que habitam o semi-árido" que o governo federal criou o Projeto de Integração da Bacia do Rio São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. "O projeto de integração de ba- cias", esclarece o "Em questão", "manterá o São Francisco no seu curso. Só uma pequena parte do seu volume - 26 metros cúbicos por segundo, ou seja, apenas 1% da água que o rio joga no mar - será captada para garantir o consumo humano e animal na região do semi-árido. Não haverá problema ambiental para o Rio São Francisco ou para qualquer atividade que se desenvolve ao longo de seus 2.700 km de extensão". Esse é o parecer da Agência Nacional de Águas (ANA), que não vê risco de comprometimento para a geração de energia elétrica.
Uma razão fundamental do governo para sustentar o projeto é a de que a água a ser retirada será usada, "principal e prioritariamente", para o consumo humano, para "matar a sede de milhões de nordestinos...".
Já os adversários retrucam, com o hidrólogo João Abner, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, à frente, que a água da transposição seria das mais caras do mundo, pois chegaria a custar o dobro e o quádruplo do que custa às margens do rio - R$ 0,023 por m³ -, nos projetos de irrigação de Juazeiro e Petrolina. No Estudo de Impacto Ambiental do projeto, o custo estimado é de R$ 0,11 por m³. "Mas esse valor não contempla os gastos com bombeamento das fontes de abastecimento até às propriedades; se computados, podem chegar ao seu destino final a uma cifra entre 4 a 7 centavos de real o metro cúbico".
Abner lembra ao presidente Lula que, "se água e irrigação fossem solução, não haveria seca nem fome a poucos quilômetros do Rio São Francisco, nem tanta insegurança em Juazeiro e Petrolina - mecas da irrigação -, com índices de violência entre os piores do interior do Nordeste".
Outro argumento utilizado pela oposição é que no Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do São Francisco, aprovado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, consta que, de um total alocável de 360 m³/s, 335 m³/s já se encontram outorgados, restando apenas 25 m³/s para os múltiplos usos. Nos estudos apresentados pelo governo federal estão computadas apenas as captações outorgadas na calha do rio, tidas como de grande consumo.
Para o presidente Lula, entretanto, não há argumento capaz de remover-lhe a decisão da cabeça. É a prioridade de seu governo. Por isso, chama de "egoístas" as reações negativas. "É uma questão humanitária levar água a quem caminha muitos quilômetros para bebê-la suja", argumentou. Cuidou, para tanto, de assegurar na proposta do Orçamento Geral da União para o exercício de 2005 uma dotação de R$ 635 milhões, para dar início ao empreendimento, cujo custo total seria de R$ 4,5 bilhões.
O problema real, subjacente ao debate, diz respeito a quem vai botar a mão no dinheiro como gestor do projeto. Como está convencida de que nada fará o presidente mudar de idéia, a oposição deixou de se opor frontalmente à transposição e passou a defender, em seu lugar, a revitalização da Bacia em primeiro lugar, sob o argumento sensato de que, sem se repor as condições ambientais para a produção de água, não haverá no futuro água a transpor. Trata-se de programa igualmente ambicioso, capaz de rivalizar em dispêndio de recursos públicos com a própria transposição, com a diferente de que neste caso as mãos do gestor seriam outras. São cerca de pelo menos 500 prefeitos que passariam a administrar uma gigantesca frente de trabalho em atividades de desassoreamento, saneamento, florestamento etc. por anos a fio.
De acordo com levantamento feito pela ANA, a revitalização consumiria R$ 5,2 bilhões, 80% dos quais seriam aplicados em obras de saneamento.
Em termos polidos, o secretário-executivo do Comitê do São Francisco, Luiz Carlos Fontes, sintetiza a polêmica nos seguintes termos: "O grande desafio do governo é conciliar a revitalização com a transposição".
Ou seja: a expectativa do governo é que a oposição ao projeto, virtualmente alijada da gestão da obra, baixe o tom da crítica à medida que for chamada para recolher as migalhas que o Palácio lhe atira - o que de fato vem ocorrendo desde o período pré-eleitoral.

kicker: Há tempo que os administradores públicos não vêem tanto dinheiro para gerir

GM, 14-16/01/2005, p.A5

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.