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Entre Roraimenses e Macuxis

Folha de Boa Vista - www.folhabv.com.br
Autor: Lêda Martins*
10 de Dez de 2008

Recomeça hoje o julgamento da Raposa Serra do Sol. Muito ou quiçá tudo já foi dito pelos dois lados do debate. Exceto, talvez, uma conversa franca (e pública) entre nós, roraimenses. A oposição local contra a Raposa Serra do Sol adquiriu facetas diversas na arena nacional e na boca de grupos diferentes. A RSS virou símbolo da cobiça internacional, da invocada ameaça à soberania nacional, da salvação da lavoura (literalmente e figurativamente) para a economia do Estado, da proteção da biodiversidade e dos direitos humanos, do desrespeito à propriedade privada, da crise de identidade nacional, entre outras batalhas.

Não pretendo aqui dizer que o debate está equivocado, nem tão pouco aderir ao minhoquismo local, que pensa que só os roraimenses natos sabem de sua terra. A Raposa Serra do Sol e a luta dos Macuxi existem em um planeta globalizado onde discursos são invocados e (des)construídos por diferentes agentes, em diferentes partes do globo (escrevo hoje, por exemplo, do meu escritório na Califórnia). Acho até muito bom que o embate em Roraima tenha provocado discussões sobre temas cruciais como proteção ao meio ambiente e modelos de desenvolvimento. Mas a questão em Roraima é também outra.

Meu interesse aqui é relembrar, ao menos para nós mesmos, o sentimento entranhado na mente e coração dos roraimense que se refletem nas muitas ações contra o reconhecimento da terra dos Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Patamona e Taurepang, inclusive no processo legal que está em julgamento no Supremo.

Nós, que até pouco tempo dizíamo-nos "Macuxi", passamos a evitar ou usar com desconforto o etnônimo para referirmos aos nascidos em Roraima. Será que hoje receiamos ser confundidos com índios? Será que temos vergonha de usar o nome de um povo como se ele não mais existisse? Ou será puro ressentimento contra aqueles que nos serviram por tanto tempo e que agora reclamam uma posição diferente na sociedade local?

Nós éramos "Macuxi" quando os Macuxi eram "cabocos", ou melhor, "caboco safado", "caboco preguiçoso", "caboca jeitosa", "caboca suja". Não foi assim que todos nós, membros das famílias tradicionais, aprendemos a reconhecer os Macuxi? Quem entre nós não foi embalado ou até mesmo aleitado por uma babá Macuxi? Quem entre nós não foi servido e em uns tantos casos se serviu das moças e rapazes da maloca? Não podemos nos referir a essas pessoas nem como empregados porque a maioria não recebia salário. Trabalhavam em nossas casas como se a eles prestássemos um favor.

Quero acreditar que a situação agora é diferente, mas não tenho tanta certeza. Ainda nos anos 90 quando trabalhava na Funasa fui eu pessoalmente retirar com dificuldade uma menina Ingarikó que estava sendo "criada" na casa de uma representante eleita da classe política local. A mãe da menina fazia meses pedia que sua filha fosse retornada à aldeia. A garota Ingarikó saiu levando a roupa do corpo e uma pequena sacolinha. Pagamento nenhum. No ar ficou apenas a pergunta da dona da casa: "Quem agora vai cuidar do meu neto?"

A advogada Joênia Batista foi primeira página nos principais jornais do país quando fez a defesa oral da manutenção contínua da Raposa Serra do Sol no STF em agosto. Algumas matérias informaram equivocadamente que Joênia tinha sido empregada doméstica em Boa Vista. Ela não foi. O feito de Joênia foi ter escapado por esforço próprio do destino histórico de suas irmãs de etnia; os Wapixana compartilham com os Macuxi a tragédia do encontro com nossos avós e bisávos. Não podemos nós também mudar nosso papel histórico? Não chegou a hora de saldarmos nossa dívida com os povos Macuxi e Wapixana? Não está na hora de devolvermos a eles ao menos um bocado do que tomamos?

Afora de todo o teatro para a platéia nacional e talvez internacional, vamos ao menos uma vez falar francamente: nós sabemos que os Macuxi não estão interessados em separatismo, que não afrontam a soberania nacional, e muito menos são a derrocada econômica do Estado. Todos sabemos, mas pouco dizem, que menos corrupção da classe política e empresarial já resolveria os problemas sociais e econômicos de Roraima.

A questão com a Raposa Serra do Sol é nossa incapacidade de aceitar os Macuxi como os senhores dos lavrados e serras em que por um breve período nos posamos de donos absolutos. A ironia é que preferimos entregar essas terras para qualquer outro, exceto os Macuxi (e claro os Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Patamona). Nós não vamos sossegar até retalharmos essa conquista dos Macuxi para lembrá-los sempre de quem manda por essas bandas. Que a Justiça proteja os Macuxi e demais povos indígenas do Brasil de nós Roraimenses!

* Professora de antropologia em Pitzer College, Claremont, Califórnia

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