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Entre fronteiras

O Globo, Prosa & Verso, p. 6
Autor: DA-RIN, Maya
11 de Set de 2010

Entre fronteiras
Diretora de 'Terras' fala da filmagem no encontro de três países na Amazônia

Maya Da-Rin

Primeiro dia. O sol reluzindo no asfalto, um enxame de motos toma as ruas da cidade, nuvens cor de chumbo anunciam a chegada da chuva. Caminhamos entre escambos, miragens, saques, belezas quase cruéis. Aqui, a fronteira está em toda a parte e também em lugar algum." Estas foram as primeiras palavras que anotei ao chegar na fronteira tríplice entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, para as filmagens de "Terras". Em 2006, eu e uma equipe de quatro pessoas viajamos por dois meses para as cidades gêmeas Letícia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil), no noroeste da Amazônia. Na outra margem do rio Solimões, que banha as duas cidades, fica o vilarejo de Santa Rosa já em território peruano.
Demarcações territoriais se diluem na imensidão da floresta
Nos deixamos conduzir pelo ritmo e atmosfera daquele lugar caótico, pelo cheiro forte dos frutos maduros, pela correnteza intensa do Rio Solimões. Não há calma naquela parte da Amazônia. Também não há silêncio. Músicas em português e espanhol vindas dos alto-falantes se misturam ao canto do pássaros que atravessam a cidade em revoada, pessoas de diversas origens cruzam diariamente as avenidas de Letícia e Tabatinga, camelôs se multiplicam pelas ruas próximas ao porto com toda a sorte de produtos eletrônicos e canoas chegam aos montes trazendo frutos e farinha da floresta.

Demoramos algumas semanas para que o corpo pudesse se acostumar ao calor, à umidade e principalmente à maneira como tudo parece conviver de forma simultânea nessa região. À primeira vista não há nenhum limite separando as duas cidades e os controles de passaporte e alfândega são raros. O filósofo alemão Martin Heidegger dizia que "uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente."
Nessa fronteira tríplice tudo existe em abundância, a presença transborda, escorre pelas águas fundas do Solimões, estala em nossos olhos, não aceita limites, muros ou cercas. Ao contrário. As demarcações territoriais, traçadas arbitrariamente sobre algum mapa impreciso das cortes portuguesa e espanhola, parecem se diluir na imensidão labiríntica da floresta. "Terras" foi sendo construindo em um movimento de busca por essas fronteiras. A fronteira como um espaço móvel, permeável, onde as coisas não são facilmente nomeadas e podem ser percebidas na sua singularidade.

Era necessário um exercício constante de deslocamento do olhar. Como transpor para as imagens aquilo que a princípio é invisível, um conceito, uma ideia abstrata? Aonde está a fronteira neste lugar em que os limites se perdem nas curvas do rio e nas ramificações da floresta? A fronteira está nos corpos, na pele, na paisagem, nas fissuras da terra, na topografia, nos olhares e encontros. Está também na impossibilidade de enxergarmos o todo, no enquadramento das imagens pela câmera e nos diferentes timbres sonoros.

É a fronteira, ainda, que abre a possibilidade de encontro com o outro e do reconhecimento de nós mesmos. O que mais me marcou durante a realização de "Terras" foi perceber o intenso processo de intercâmbio entre as cidades e a floresta que acontece hoje em toda a região. Infelizmente o Brasil desconhece a Amazônia. Fala-se muito das queimadas, das plantações de soja e da devastação da floresta, mas pouquíssimo se sabe a respeito das pessoas que vivem nela. É curioso que a Amazônia raramente nos provoque imagens urbanas já que 80% da população vive hoje nas cidades.

Durante a filmagem conhecemos um grupo de músicos Tikunas da aldeia Umariaçu, vizinha de Tabatinga. A banda Eware cria composições próprias, em ritmo de tecno brega, forró e balada, cantadas na língua Tikuna e tocadas com guitarra, bateria, teclado e instrumentos tradicionais indígenas. O Eware é um grande sucesso na região. Se apresentam em outras aldeias, cidades e vilarejos. Suas músicas tocam nas rádios locais e embalam os frequentadores do baile de Santa Rosa, que todos os domingos se reúnem na parte peruana da fronteira para dançar ao som de reggaeton, brega, salsa, dos hits peruanos e indígenas. Foi muito impactante perceber como os povos da Amazônia estão se alimentado de cultura contemporânea para criar algo completamente novo, a partir de uma formulação própria.

Enquanto parecemos preocupados em minimizar o contato e a influência da cultura ocidental sobre os povos indígenas, eles estão ávidos por relação e troca.

As fronteiras existem para serem atravessadas. E nesse lugar de passagem, encontro e construção de novos territórios está o cinema. Os pontos de contato com a diferença são espaços sempre férteis, onde por exemplo, o documentário se mistura com a ficção, ou cinema encontra o teatro, as artes plásticas, a música. Olhar através de outras referências é se projetar para além dessa fronteira tênue, tentar enxergar aquilo que não se revela na nossa primeira mirada, os pequenos mistérios que nos mostram outras formas de perceber o mundo. A criação é constante mudança. "A única coisa que não muda é a vontade de mudar" já dizia o poeta Charles Olson.

Maya Da-Rin é cineasta, diretora de "Terras", que estreia na próxima sexta, dia 17, no Rio de Janeiro

O Globo, 11/09/2010, Prosa & Verso, p. 6

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