VOLTAR

Entre a barbárie e a civilização

O Globo, Sociedade, p. 29
Autor: HULOT, Nicolas; SALGADO, Sebastião
19 de Mai de 2018

Em encontro promovido pelo GLOBO, o ministro francês da Ecologia e o fotógrafo brasileiro conversam sobre o futuro do planeta e os desafios para evitar uma catástrofe ambiental; para eles, a Humanidade está 'contra a parede', correndo contra o tempo em busca de solução para estancar o esgotamento dos recursos naturais

FERNANDO EICHENBERG, ESPECIAL PARA O GLOBO

PARIS - Nicolas Hulot, célebre ativista ecológico francês, recusou todos os convites para integrar os governos dos presidentes Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande. Mas acabou se rendendo aos argumentos de Emmanuel Macron, eleito em 2017 ao Palácio do Eliseu, e hoje é ministro da Ecologia, o terceiro posto na hierarquia do governo. Em 2019, Hulot pretende organizar, em Paris, um grande encontro internacional de povos autóctones, com a participação de chefes de Estado do mundo inteiro.
Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro reconhecido internacionalmente, retratou os quatro cantos do planeta e, para além de suas imagens em preto e branco, acabou se tornando um ator da causa ecológica. Com a mulher, Lélia, criou o Instituto Terra e recuperou a desmatada floresta da propriedade de seus pais, em Minas Gerais, com o plantio de cerca de 2,5 milhões de árvores. O fotógrafo prepara, para 2021, exposição e livro novos, desta vez sobre os índios da Amazônia. Já como defensor da ecologia, elabora um ambicioso projeto de proteção e desenvolvimento da Floresta Amazônica.
O GLOBO reuniu, em Paris, as duas personalidades da luta ecológica para conversar sobre o futuro do planeta.

O alerta ecológico não é de agora, mas os problemas nunca foram tão urgentes. Como veem o mundo de hoje?
Hulot: O homem moderno tem esse defeito de só reagir diante do perigo imediato. É a primeira vez na História que a Humanidade está contra a parede, e seremos todos vencedores ou perdedores. Quando os EUA anunciam que vão se retirar do Acordo do Clima de Paris, sendo o principal emissor de gases de efeito estufa por habitante do planeta, isso desencoraja os demais países. O único sucesso da cúpula de Paris foi que se partilhou um diagnóstico e se estabeleceu um roteiro. E como esse roteiro é um questionamento muito profundo do desenvolvimento, que pareceu por décadas ser o remédio universal para emancipar os cidadãos do mundo, de repente temos de rever nossos fundamentos, o que exige muito tempo. Os fenômenos que tentamos combater, a erosão da biodiversidade, a destruição dos ecossistemas, os desequilíbrios, o esgotamento dos recursos naturais, ocorrem muito rapidamente. O futuro da Humanidade está em jogo nos próximos 20 anos.
Salgado: Se pudéssemos compreender nossa História em centenas ou milhões de anos, entenderíamos nossa evolução. Mas não conseguimos fazê-lo. E o tempo é cada vez mais curto, porque entramos num acelerador de partículas que nos faz correr sempre mais e ter uma impressão completamente falsa da realidade. Somos predadores há milhões de anos. Destruímos quase tudo. As últimas porções de floresta virgem representativas no planeta estão na Amazônia. Outro dia, sobrevoei Sumatra (ilha na Indonésia), e eles não têm mais floresta, abateram tudo para plantar óleo de palma. Dependendo das opções que escolhermos hoje, em 50 anos seremos alienígenas em nosso planeta. Na COP21 (cúpula do clima que aconteceu em Paris em 2015), tudo o que foi proposto são mentiras absolutas. Foi prometido replantar não sei quantos milhões de hectares, mas desde então destruímos muito mais do que se plantou. O sequestro de carbono que se discute nas cúpulas são mentiras urbanas. Há uma redução de emissão por unidade, mas um aumento brutal no total, porque o número de unidades no mundo cresce de uma forma terrível. A questão é parar e discutir. É o momento de despertar o instinto de sobrevivência, porque estamos em perigo.
Hulot: Estamos num momento da História da Humanidade bastante inédito: numa encruzilhada em que podemos cair numa forma de barbárie ou de civilização. Tecnologicamente, economicamente e cientificamente somos dotados. Culturalmente, somos nulos. Porque perdemos duas coisas fundamentais: o sentido e o elo. Nos desvinculamos do passado e do futuro, porque o estamos comprometendo. Precisamos desse tempo de pausa para redefinir uma visão, dar um novo sentido ao progresso, fazer a triagem entre o útil e o fútil. O paradoxo é que estamos num mundo que se conectou, mas não se uniu. O desafio é sincronizar ciência e consciência. A ciência andou muito mais rápido do que a consciência. É preciso que nós, ocidentais, paremos de pensar que somos o universal e que os demais são o singular. Entramos na era das vaidades. O mundo está num limite estreito de tolerância.

É possível salvar o planeta sem uma ação política dos governos?
Hulot: A dificuldade é que nossas instituições internacionais, como nossas democracias, foram surpreendidas pela introdução em nosso radar dessas questões universais e da noção de longo prazo, do futuro. É a primeira vez que nos colocamos em situação de comprometer nosso futuro. Se observarmos a Assembleia Geral da ONU com um olhar um pouco profano, veremos que as delegações chegam ao plenário levando em suas pastas os interesses dos próprios países. E a soma dos interesses de cada país não é igual aos interesses do planeta. Se não houver um espaço de governança que administre e proteja o bem comum do planeta, não vejo como conseguiremos.
Salgado: Mas o que se passa é positivo. Nunca se havia discutido, e começamos a fazê-lo. O fato de termos, hoje, Donald Trump, não é importante. É preciso olhar as coisas numa projeção histórica. Trump está aí por quatro anos. No Brasil, não é grave que tenhamos um governo que esteja desmatando as florestas, porque temos instituições sólidas, como o Ibama, a Funai. Basta que tenhamos um novo governo que as respeite. As pessoas começam a se conscientizar e a questionar. É preciso integrar o agribusiness do Brasil no diálogo, por exemplo. Os índios presentes na COP21 vieram como decoração, não como representação. O diálogo deve ser com todos.
Hulot: É preciso também que a Humanidade mude do que chamo de era da vaidade, dos séculos XIX e XX, para a era da humildade. Um célebre cientista francês, Jean Rostand, disse que a ciência nos faz deuses antes de nos fazer homens. Há forças de inventividade e sabedoria. Mas também há, infelizmente, um sistema organizado para pilhar e destruir.

Os Estados são, com frequência, omissos ou cúmplices?
Hulot: Não forçosamente cúmplices, de maneira mal-intencionada. Mas porque os sistemas se organizaram para fazer esses Estados de reféns.
Salgado: Os Estados só pensam em seus problemas específicos. E como os governos são de curta duração, só querem resolver as questões imediatas, por uma reeleição, um ego. Esse é o grande problema: como harmonizar todos esses Estados em torno de uma ideia comum e importante.
Hulot: Vi a rapidez com a qual os ecossistemas se destruíam e o homem se distanciava da natureza. Meu objetivo foi tentar difundir na esfera mais resistente essas preocupações. É a razão pela qual estou, hoje, no governo, pois me permite, no interior do sistema, fazer esse trabalho.

O senhor diz que muitas vezes que, na política, é necessário escolher entre duas más soluções.
Hulot: Sim, é frustrante, mas a política é o aprendizado da complexidade.
Salgado: E a arte do compromisso.
Hulot: E eu devo fazer o tempo todo o compromisso entre o curto e o longo prazos. Isso é novo para mim, e é o exercício mais delicado. Se privilegio o longo prazo, sou muito brutal, vou interditar a agricultura intensiva e os veículos de motores a combustão de uma hora para a outra. Procuro programar a transição.

Como veem a situação do Brasil?
Hulot: Estou sempre em contato com pessoas que vão regularmente ver os caiapós e diferentes tribos indígenas, e o retorno que me dão sobre as reformas do código de mineração e do respeito aos índios não é muito tranquilizador. Sobre esses temas, até o presente foi complicado para nós com o governo brasileiro, a cada vez se colocava um incidente diplomático. Como ministro, não é meu papel interferir nas políticas do Brasil, mas sempre estive em contato com ONGs que se preocupam, por exemplo, com a famosa barragem (Belo Monte), que culminaria na inundação das terras ancestrais dos caiapós, e que não pôde ser impedida. Mas vocês têm também, às vezes, empresas francesas que participam disso. Penso que a batalha da Amazônia ainda não foi ganha, mas também não foi totalmente perdida.

Salgado: A situação do Brasil, hoje, é muito difícil. Temos deformações tão grandes que as aberrações que estão ocorrendo no processo democrático de alguma forma teriam de acontecer. Isso, possivelmente, é uma base para uma discussão, uma evolução. Veja o que está acontecendo, hoje, na Amazônia e com a destruição do orçamento da Funai e do Ibama. E, ao mesmo tempo, estamos gastando uma fortuna para manter um governo ilegítimo. Minha esperança é que daqui a alguns meses possamos eleger um governo que respeite as suas instituições.

O Globo, 19/05/2018, Sociedade, p. 29

https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/nicolas-hulot-sebas…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.