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Encruzilhada no Oriente

FSP, Mais, p. 9
11 de Dez de 2005

Encruzilhada no Oriente
Malásia trava guerra de informação tentando desenhar imagem de excelência ambiental

Reinaldo José Lopes
ENVIADO ESPECIAL A KUCHING (MALÁSIA)

Numa mistura de simpatia oriental e cortesia muçulmana, Pehin Seri Haji Abdul Taib Mahmud, ministro-chefe do Estado de Sarawak, na ilha de Bornéu (Malásia), era todo sorrisos ao receber jornalistas da América do Sul e de Madagáscar que participavam da 1ª Imes (Cúpula Internacional de Mídia e Ambiente), realizada na região. Mas algo estranho parecia estar acontecendo.
Na noite anterior, a organização do evento avisara aos jornalistas que o ministro "estava ansioso para vê-los" e que lhes daria uma entrevista exclusiva. "Ele considera a presença de vocês aqui um exemplo maravilhoso de colaboração entre os países do Terceiro Mundo", disse o britânico Alexander Thomson, organizador da Imes. De manhã, porém, o "Sarawak Tribune", um dos jornais de língua inglesa da região, noticiou justamente o contrário.
Afirmou que a "imprensa internacional" é que estava "ávida" para falar com Mahmud e teria pedido uma audiência, que ele "graciosamente concedeu". "Tal era a avidez deles que a cópia do discurso do ministro na abertura da cúpula se tornou um item disputadíssimo na sala de imprensa do evento", relatava o jornal.
O mal-entendido é quase um microcosmo da guerra de informação que tomou conta de Sarawak (pronuncia-se "sarauá") durante o encontro. A Malásia tentou aproveitar os três dias do congresso, encerrado no fim de semana passado, para mostrar aos jornalistas e ambientalistas ocidentais que está se tornando um modelo de respeito ao ambiente e desenvolvimento sustentável. Mas o discurso oficial foi atacado por membros dos povos nativos da ilha e por ativistas, que contestam o impacto social e ambiental da política de Mahmud, no poder desde os anos 1970 (os governadores ali são indicados pelo monarca do país).
Sob escrutínio
Não é de admirar que o Ocidente esteja de olho na Malásia, e especialmente no Estado de Sarawak. O país faz parte de um "hotspot", ou seja, uma das 25 regiões mais ricas em biodiversidade e mais ameaçadas do mundo, segundo os biólogos conservacionistas. Abriga algumas das poucas populações remanescentes de orangotango, primo próximo da humanidade. E, apesar de ainda contar com 70% de sua cobertura florestal original, segundo dados governamentais, enfrenta a expansão das plantações de dendê e da indústria madeireira.
A diversidade de formas de vida é tão grande que inspirou um dos pais da teoria da seleção natural, o britânico Alfred Russel Wallace (1823-1913), a desenvolver suas idéias sobre a evolução nos anos 1850. Wallace morou em Kuching, cidade que abrigou o encontro deste ano. Há poucos dias, uma nova espécie de mamífero carnívoro foi achada no lado indonésio de Bornéu.
Quem controla o uso econômico das matas ali é uma empresa, a Sarawak Forestry, criada pelo governo em 1995. "A madeira é tão importante para a nossa economia [37% da renda do Estado vem da exploração florestal] que precisávamos da flexibilidade de uma empresa para administrar esse recurso", conta Zulkifli Baba Noor, gerente de comunicação da Sarawak Forestry. A empresa também é responsável por ecoturismo, vigilância e pesquisa agroflorestal no Estado.
Em seu escritório de paredes de mármore, recheado de painéis com citações do Corão em rebuscada caligrafia árabe, Mahmud citou a estatal como exemplo dos esforços de sustentabilidade malaios e pediu "críticas positivas" do Ocidente, quase sempre com um sorriso.
Não se alterou, por exemplo, ao ser questionado sobre a presença de madeireiras malaias na Amazônia brasileira, algumas das quais, segundo relatório da ONG Greenpeace, teriam operado ilegalmente em terras indígenas. "Nunca ouvi falar disso, mas não posso aplicar a lei fora do meu território", argumentou.
Conceitualmente, o plano geral de manejo para as florestas de Sarawak parece invejável. A intenção do governo, diz Mahmud, é separar 10% da área do Estado para preservação permanente (incluindo os lugares onde estão os 2.000 orangotangos da região) e manter entre 50% e 60% de floresta como fonte de madeira manejada. Isso significa que, a cada 25 anos, seriam cortadas apenas as árvores com diâmetro do tronco superior a 50 cm, o que corresponderia a só sete árvores por hectare.
Quando lhe perguntaram se 10% de proteção total não era pouco para preservar a biodiversidade do Estado (há estudos mostrando que essa porcentagem não permite uma viabilidade de longo prazo), Mahmud rebateu: "Desculpe, eu preciso ser franco com vocês, mas as pessoas daqui precisam comer".
Ele rebateu as acusações de matança e destruição do habitat de orangotangos -para o ministro-chefe, apenas florestas secundárias (desmatadas há pouco), onde os bichos não vivem, é que estariam sendo incorporadas às plantações de dendê. "De fato, quando comparada às regiões vizinhas, Sarawak parece estar se saindo melhor nesse quesito", avalia o biólogo conservacionista Ian Redmond, consultor-chefe do Projeto de Sobrevivência dos Grandes Macacos da ONU. Datu Cheong Ek Choon, diretor de florestas do Estado e membro da tribo iban (os famosos "caçadores de cabeças") afirmou que, entre os povos indígenas da região, matar um orangotango é tabu. "Equivale a uma maldição para a vida toda."
Mahmud também perdeu a paciência com alegações feitas por uma associação do povo indígena penan contra o governo de Sarawak -originalmente caçadores-coletores, eles estariam perdendo suas terras para plantações de dendê. "Só sobraram uns 400 penans nômades, e eles certamente não representam os outros 10 mil de seu povo que querem se civilizar", afirmou o ministro.
Saias justas
Muitos ou poucos, o fato é que os membros das tribos conseguiram fazer um barulho considerável na cúpula. No dia seguinte, quando o "Sarawak Tribune" estampou a manchete "Jornalistas estrangeiros recebem lição de reportagem responsável do ministro-chefe", a conferência foi inundada por nativos usando máscaras de orangotango. Membros da Tahabas ("Rede de Direitos Tradicionais sobre Terras Nativas de Sarawak"), eles classificavam o discurso de Mahmud de "greenwash" (algo como "propaganda ambiental enganosa"). Uma das faixas dizia: "Que tal parar de se preocupar com o orangotango e pensar no "oranghumano'?"
"O que eles dizem simplesmente não é verdade", afirmou à Folha o advogado e político Dominique Ng, que atua como porta-voz do grupo. "A política de assimilação cultural do governo está causando, para começo de conversa, deslocamentos populacionais maciços e obrigando as pessoas a sair de suas terras tradicionais", afirma Ng.
Antes do fim do evento, mais uma saia-justa. A organização da cúpula impediu que uma reportagem televisiva brasileira, de autoria de José Raimundo Oliveira, da TV Bahia, fosse exibida na mostra de filmes ambientais que acontecia em paralelo ao congresso. O trabalho de Oliveira, sobre o projeto de corredores ecológicos da mata atlântica, fora incluído na mostra por ter vencido um prêmio de reportagem em 2005 na categoria TV. A justificativa dada pelos organizadores foi que os censores ligados ao gabinete de Mahmud não tinham tido tempo de assistir à reportagem antes.
O governo malaio anunciou publicamente sua intenção de "tornar-se um país desenvolvido" até 2020 e, para Mahmud, o projeto parece incluir como etapa fundamental a transformação do modo de vida das tribos de Bornéu. "Eles querem remédios, escolas, até chocolate. Com sorte, creio que poderemos absorver todos no futuro", diz o ministro.
E quanto aos conhecimentos que a vida de caçador-coletor lhes proporcionou sobre a biodiversidade da mata e suas utilidades? "Oh, já compilamos todos esses dados. Estão todos gravados em fitas."

O repórter Reinaldo José Lopes viajou para Kuching a convite da ONG Conservação Internacional, como ganhador do Prêmio de Reportagem sobre Biodiversidade da Mata Atlântica de 2005, categoria impresso.

FSP, 11/12/2005, Mais, p. 9

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