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Em vez de mudas, barracos

O Globo, Rio, p. 14
01 de Jul de 2006

Em vez de mudas, barracos
Moradores de favela contratados pela prefeitura para reflorestamento teriam desmatado encosta

Os uniformes eram oficiais, mas o serviço, nem tanto. Com camisas da prefeitura e nomes listados num demonstrativo de pagamentos da Secretaria municipal de Habitação (SMH), 13 operários contratados para um projeto de reflorestamento foram flagrados desmatando a área tombada no sopé do Morro de São João, no Leme, onde deveriam plantar as mudas. No local, novos barracos da favela da Babilônia começaram a ser erguidos, segundo moradores de prédios vizinhos. Apesar de ter sido alertada no início do ano por moradores e pelo Ministério Público estadual, que abriu inquérito civil, a prefeitura pouco fez para conter as construções irregulares.
A chegada dos 13 operários usando camisas brancas da prefeitura à área de mata conhecida como Cemitério dos Vivos, entre a favela e os prédios da Rua Gustavo Sampaio, foi observada por moradores dos edifícios na primeira quinzena de dezembro. Ao longo dos dias 7 e 8, eles desmataram uma grande porção de mata. O trabalho foi filmado por um morador.
- Eles disseram trabalhar para a Secretaria de Habitação e afirmaram que estavam desmatando para reflorestar e recolher lixo - conta o morador, que pediu para não ser identificado.
Os mesmos operários voltaram nos dias 9, 10 e 11 de janeiro, desta vez com uniformes verdes da prefeitura, e desmataram outra porção de mata, a cinco metros do muro dos prédios. Segundo moradores, a expansão da favela, que já vinha em direção aos prédios desde 2002, seguiu pelas clareiras abertas, com a construção de novos barracos.

Quase R$ 3 mil pagos por quinzena
O demonstrativo de pagamento a que O GLOBO teve acesso mostra que a SMH gastou, por quinzena, R$2.964 com os 13 operários, todos recrutados na própria comunidade. Um deles, Isaias Bruno Ferreira, que recebeu por quinzena R$ 286, é o presidente da Associação de Moradores do Morro da Babilônia e responsável por indicar os trabalhadores.
Os indícios de improbidade administrativa e a omissão da prefeitura levaram as quatro promotorias ambientais do Ministério Público estadual no Rio a instaurarem em conjunto o inquérito civil MA 1986. A pedido do MP, policiais da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) realizaram uma grande operação em 20 de abril, com apoio de um veículo blindado e de um helicóptero, para checar a situação. Peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) constataram a existência de 30 construções irregulares no Cemitério dos Vivos, sendo dez em fase inicial.
Em depoimento à promotora Denise Muniz de Tarin, da 2ª Promotoria de Meio Ambiente do MP, em 18 de abril, o presidente da Associação de Moradores do Morro da Babilônia afirmou que o reflorestamento tinha como objetivo coibir o surgimento de ocupações irregulares e reconheceu que, em razão da sua urgência, foi realizado sem projeto e sem acompanhamento técnico da SMH.
Numa reunião em 5 de maio, a secretária de Meio Ambiente, Rosa Fernandes, a coordenadora do projeto Favela-Bairro da SMH, Márcia Garrido, e o procurador coordenador da Procuradoria Administrativa do município, Ricardo Almeida Ribeiro da Silva, reconheceram perante o MP a existência de ocupações irregulares e prometeram iniciar, no dia 11 daquele mês, as demolições. Até a minuta de um decreto autorizando o embargo e a demolição das construções irregulares foi apresentada, mas até hoje o decreto não foi assinado pelo prefeito Cesar Maia.
- O que a prefeitura vem nos informando é que, apesar das nossas reiteradas cobranças, a minuta ainda está na Procuradoria Geral para análise. Ou seja, de efetivo, a prefeitura não fez nada até agora. Se não tivermos uma posição em breve, não restará outra alternativa senão ingressar com uma ação civil pública pedindo as demolições e a apuração de responsabilidades - disse a promotora Rosani.
Embora evite falar que a prefeitura possa ter estimulado a expansão da favela patrocinando o desmatamento, a promotora Rosani Cunha é taxativa ao afirmar que a omissão da administração municipal é responsável pela ocupação desordenada da encosta:
- A omissão da prefeitura em aplicar a lei e exercer seu poder de polícia vem acarretando a expansão (da favela). Existiu um projeto de reflorestamento com pessoas da própria comunidade e estamos apurando como esse trabalho foi feito e se houve fiscalização. É inaceitável que haja emprego de dinheiro público num projeto sem fiscalização.
Para o prefeito Cesar Maia, a situação no Morro da Babilônia é exatamente o contrário do afirmado pelos vizinhos. Segundo o prefeito, a favela está na verdade diminuindo de tamanho devido à retirada de vários invasores pela SMH nos últimos meses. A Associação de Moradores do Morro da Babilônia e moradores das ruas Gustavo Sampaio e Anchieta afirmam, no entanto, que apenas duas construções, vazias, foram demolidas este ano, em janeiro.
Em nota oficial, a SMH informou que já foi concluído o reflorestamento de uma grande área do morro, mas que algumas pessoas que ocupavam anteriormente a área continuam no local. Segundo o órgão, os moradores estão sendo cadastrados para serem removidos. A secretaria afirmou ainda que algumas tentativas de novas construções foram inibidas este ano, sem informar quantas. O órgão não comentou as denúncias de desmatamento, nem de que os trabalhadores contratados teriam atuado sem supervisão. A coordenadora do Favela-Bairro, Márcia Garrido, não quis falar. A Procuradoria-Geral do Município também não se manifestou.
A secretária de Meio Ambiente, Rosa Fernandes, que participou da reunião com o MP em maio, disse que o órgão não recebeu qualquer denúncia de desmatamento no Morro da Babilônia:
- Se pessoas contratadas pela SMH tivessem feito isso, certamente seriam punidas.
Ela atribuiu o atraso no início das demolições à detalhada análise que está sendo feita pela SMH:
- Segundo o levantamento que está sendo concluído, as cerca de 30 construções irregulares estão em terrenos particulares tombados no sopé do Morro de São João. A Secretaria de Meio Ambiente nem poderia atuar, por não se tratar de área de preservação ambiental.
Líder comunitário desmente vizinhos
Já o presidente da Associação de Moradores do Morro da Babilônia, Isaias Bruno Ferreira, classificou de maldosas as denúncias feitas por moradores dos prédios vizinhos:
- A população do asfalto não gosta de ter uma favela na sua janela. Produzi e apresentei ao MP material suficiente provando que a verdade não era bem o que eles estavam dizendo. Jamais haveria uma equipe da prefeitura desmatando uma área de proteção. Hoje já é possível ver as mudas que plantamos crescendo.
De acordo com Ferreira, as 30 construções irregulares flagradas pela Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) eram, na verdade, reformas de casas já existentes.
- Essas casas têm entre 30 e 40 anos e estavam passando por acréscimos ou obras de melhoria. As duas únicas construções de novas casas que havia naquela localidade foram demolidas pela prefeitura em janeiro - garantiu.
Outra visão tem uma médica moradora da Gustavo Sampaio.
- É triste saber que o nosso dinheiro de IPTU está sendo usado para pagar o salário de funcionários que estão desmatando uma área tombada - diz ela, já de mudança marcada para Petrópolis.

Uma favela que cresce para baixo
Limitados por área militar, barracos avançam em direção a prédios

Escondida atrás dos prédios das ruas Gustavo Sampaio e Anchieta, a favela da Babilônia mal pode ser vista pela maioria dos moradores do Leme. Dados do Censo 2000 do IBGE mostram que a comunidade tinha 381 domicílios e 1.426 moradores. Em depoimento prestado este ano à promotora Denise Muniz de Tarin, o presidente da Associação de Moradores do Morro da Babilônia, Isaias Bruno Ferreira, afirmou que a entidade já conta com 600 associados, representando cerca de 2.600 pessoas.
A origem do nome não é conhecida. Sabe-se apenas que a ocupação surgiu nas primeiras décadas do século passado. O site "Favela tem memória", da ONG Viva Rio, arrisca uma versão: o nome teria se originado da comparação da bela vegetação nativa com os míticos Jardins Suspensos da Babilônia.
O Morro da Babilônia é vizinho a uma outra favela, a do Chapéu Mangueira, que tinha, segundo o IBGE, 311 domicílios e 1.146 moradores em 2000. O tráfico nas duas comunidades não é considerado violento como em outras da região, como o Pavão-Pavãozinho, em Copacabana.
Os primeiros sinais de expansão da Babilônia foram percebidos por moradores de prédios da Rua Gustavo Sampaio ainda em 2002, quando começou a ser implantado o projeto Bairrinho, da Secretaria municipal de Habitação. Até então, a comunidade ocupava apenas o terço médio do morro.
Sem poder crescer para o alto - acima da cota de 80 metros a área é militar - a favela iniciou uma expansão para baixo, em direção aos edifícios. A primeira denúncia à prefeitura foi realizada em outubro de 2004 e protocolada sob o número 02/003429/2004.

Quando barracos invadem as matas

A omissão da prefeitura em combater o avanço da favelização em áreas de mata é criticada até por representantes das comunidades carentes. 0 presidente da Associação de Moradores da Vila Pereira da Silva, conhecida como Morro do Pereirão, em Laranjeiras, Pedro Paulo Silva, foi um dos que pediram, sem sucesso, providências à administração municipal para conter a expansão da favela pela Área de Proteção Ambiental (APA) de São José.
Em reportagem publicada no Globo dia 10, Silva afirmava que a comunidade não tinha mais condições de receber novos moradores. Pelo menos oito lajes estavam em construção na APA naquela ocasião.
Uma auditoria realizada no final de 2004 pelo Tribunal de Contas do Município descobriu que 17 favelas, entre elas o Morro da Babilônia, ocupavam áreas de preservação ambiental.

O Globo, 01/07/2006, Rio, p. 14

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