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Em nome do ouro

Ciência Hoje n. 304, jun. 2013, p. 32-37
17 de Jun de 2013

Em nome do ouro
Legislação inócua ou política ambiental suicida? Às margens do rio e da lei, o garimpo de ouro é uma labuta que historicamente flerta com a clandestinidade - e vem do Amazonas uma iniciativa que, pela primeira vez no Brasil, estabelece normas estaduais para regulamentar o ofício. A decisão, entretanto, incita questionamentos entre cientistas e legisladores. Afinal, libera a utilização de mercúrio - um dos metais pesados mais tóxicos ao ser humano - quando o mundo todo se movimenta para banir ou impor restrições severas ao uso desse perigoso elemento químico.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/RJ

A saga do garimpeiro já foi enredo de contos, cobiça e violência. De conflitos de terra a pecados ambientais, histórias de garimpagem têm quase sempre um coadjuvante em comum: o mercúrio - um dos metais pesados mais tóxicos para a saúde humana. Para o cientista, é um elemento químico de 86 prótons. Mas, para o garimpeiro, é mais do que isso: é o líquido prateado responsável pela alquimia da sobrevivência. Explica-se: como agulhas em um palheiro, os minúsculos fragmentos de ouro ficam aleatoriamente espalhados pelo cascalho arenoso que o minerador retira do sub-solo ou do leito dos rios. A esse material bruto é adicionado mercúrio. Líquido à temperatura ambiente - é o único metal conhecido com tal propriedade -, ele agrega os pequeníssimos grãos dourados e forma uma liga metálica. Essa mistura é então aquecida; o mercúrio evapora; e assim o ouro puro chega às mãos do minerador. Tecnologia deveras rudimentar. Mas, onipresente na mineração artesanal de ouro, o mercúrio tem preocupado a comunidade científica desde fins da década de 1960, quando se intensificaram os estudos sobre a toxicologia desse metal. "Danos irreversíveis ao sistema nervoso, inclusive o comprometimento de áreas do cerebelo associadas a funções motoras, auditivas e visuais, são alguns dos males que o mercúrio costuma causar em seres humanos", diz o biólogo Wanderley Bastos, da Universidade Federal de Rondônia (Unir). "Uma vez lançado no ecossistema, o mercúrio foge totalmente de nosso controle; e ainda não temos tecnologias para frear os processos biogeoquímicos de sua disseminação."

Garimpo revisitado A relação entre mercúrio e garimpo é tema clássico para polêmicas ambientais. E a última delas - que reavivou um debate adormecido - veio à tona em maio de 2012, quando a Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS) publicou uma desvairada resolução que causou celeuma entre cientistas e legisladores. Trata-se da Resolução 11/2012. Na contramão da história, o documento regulamenta o uso de mercúrio no garimpo artesanal - quando o mundo todo se movimenta para banir ou impor restrições severas no emprego desse perigoso elemento químico. Delicado impasse. Pois há na iniciativa da SDS uma boa intenção - pôr ordem na casa e disciplinar o garimpo no estado. Pelos rincões da Amazônia, afinal, a lavra do ouro é uma labuta que historicamente flerta com a clandestinidade. Há gerações o valioso metal dourado é via de sobrevivência para famílias que habitam as remotas paragens da planície amazônica. Mesmo assim, os estados da região jamais se engajaram na tarefa de legislar sobre a atividade. "O garimpo, portanto, acontece há décadas sem qualquer tipo de controle legal ou critério", contextualiza o procurador da República Leonardo Macedo, do Ministério Público Federal (MPF). Eis que entra em cena a Resolução 11/2012. Com ela, o Amazonas tornou-se o primeiro estado do país a rezar uma legislação específica sobre garimpo. Nada mal, em princípio. Mas o texto desagradou a muitos. A comunidade científica não tardou a se manifestar; a sociedade civil fez-se ouvir; e o próprio MPF não deixou barato. Lei manca "Regularizar a atividade garimpeira e re- tirá-la da clandestinidade é algo louvável, mas isso não pode acontecer à custa da liberação do despejo de mercúrio nos rios e no ambiente", lê-se na carta aberta assinada pelo físico Ennio Candotti, diretor do Museu da Amazônia (Musa), em Manaus (AM), e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. "Desejamos alertá-lo, senhor governador, que o mercúrio é um metal extremamente tóxico, fato que não é mencionado na resolução." O documento foi acusado de ser permissivo - além de sugerir procedimentos de segurança pouco específicos e de duvidosa eficácia. Em linhas gerais, ele afirma que as regiões de garimpo devem ser previamente sujeitas a estudos de impacto ambiental; a origem do mercúrio deve ser comprovada; as áreas de lavra devem ser monitoradas por técnicos do estado; os rejeitos do mercúrio devem ser encaminhados à sede municipal, onde serão devidamente acondicionados; e o garimpeiro deve, obrigatoriamente, usar um equipamento chamado retorta (ou cadinho). É um aparato metálico assemelhado a um forno, que aquece o amálgama e separa o ouro de forma segura, pois, sendo um sistema fechado, evita que o vapor de mercúrio seja emitido à atmosfera ou inalado pelo trabalhador. A retorta permite ainda reaproveitar o mercúrio que seria despejado no solo ou nas águas. À primeira vista, a resolução soa bem razoável. Mas o preocupante não é o que o texto diz; e sim o que ele não diz. "Pois estão ausentes os mecanismos adequados de controle ambiental", critica Macedo. Um exemplo: "Apesar de obrigar o garimpeiro a utilizar retorta, o texto ignora o processo de certificação necessário para garantir a eficiência do equipamento", alerta o procurador. Além disso, a resolução não proíbe o garimpo em áreas já degradadas ou em territórios onde a presença de mercúrio é naturalmente alta (ver 'Natural ou antrópico'). "Diante das críticas, o estado do Amazonas abriu-se para o diálogo", conta o procurador. Semestre agitado para os amazonenses: foram organizados debates, encontros e palestras para discutir o polêmico texto. "Assim conseguimos alterar a Resolução 11/2012 e substituí-la pela Resolução 14/2012", atualmente em vigor.

Íntegra em PDF.

Ciência Hoje n. 304, jun. 2013, p. 32-37

http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/304/em-nome-do-ouro/?sear…

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