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'Em 2021 não haverá avanço, mas contenção de retrocessos', diz diretora de organização de Direitos Humanos no Brasil

O Globo - https://oglobo.globo.com/celina
Autor: ARAUJO, Ana Valeria
11 de Jan de 2021

'Em 2021 não haverá avanço, mas contenção de retrocessos', diz diretora de organização de Direitos Humanos no Brasil
Para Ana Valéria Araújo, superintendente do Fundo Brasil, violações de direitos se amplificaram em 2020 em função da pandemia e do discurso de Jair
Bolsonaro

Leda Antunes
11/01/2021

RIO. O ano de 2020 ficará marcado na história. A Covid-19 assolou o Brasil e uma de suas inúmeras consequências foi o agravamento das violações de direitos humanos já vividas por muitas comunidades e populações tradicionais do país e o aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e classe. O desafio foi ainda maior em função do discurso governista antidireitos, avalia a advogada Ana Valéria Araújo.
Ela está à frente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma fundação instituída por Abdias do Nascimento, Margarida Genevois, Rosie Marie Muraro e Dom Pedro Casaldáliga em 2006 com o objetivo de encontrar formas alternativas para garantir a sustentabilidade de organizações que atuam na defesa dos direitos humanos Brasil afora. Desde sua criação, a organização já distribuiu R$ 29,5 milhões a mais de 550 projetos pelo país.
Para Araújo, o governo de Jair Bolsonaro atua não só fortalecendo uma narrativa que permite que a violência contra defensores dos direitos humanos e populações vulneráveis recrudesça no campo e na cidade, mas também promovendo o desmonte de estruturas institucionais criadas para assegurar o cumprimento desses direitos e a participação desses atores nos espaços de decisão.
Especializada em direitos indígenas e na defesa dos direitos socioambientais, a superintendente do Fundo Brasil ressalta as violações sofridas pelos povos indígenas durante a pandemia - de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 161 povos foram afetados pela doença, 44.261 casos foram confirmados e 921 indígenas morreram por causa da Covid-19.
Em entrevista à CELINA, ela falou sobre o que o ano de 2020 significou para os Direitos Humanos no Brasil, quais serão os desafios para 2021 e como o Fundo Brasil trabalha para apoiar organizações que atuam na ponta.
- A sociedade civil organizada, embora tenha sido precarizada em 2020, está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior e que não destruiu tudo. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não haja retrocessos.
CELINA: 2020 foi um ano bastante desafiador. As pessoas que já tinham seus direitos humanos violados ficaram ainda mais vulneráveis no Brasil?
Ana Valéria Araújo: Sem dúvida. A pandemia agrava a situação para toda a população brasileira, mas para população mais vulnerável, ela criou uma série de dificuldades de sobrevivência, acesso material à alimentação, à saúde e higiene, agravando situações que já eram mais difíceis. A gente tem um país onde direitos humanos são violados de formas muito diversas. Basta olhar para os povos indígenas que estão na Amazônia e fora dela e que estão em uma situação absolutamente difícil de disputa territorial, com questões que há anos tinham sido superadas voltando à tona nos últimos dois anos, fortalecidas pelo discurso do governo de que é preciso desenvolver a Amazônia a qualquer custo, fazendo com que os índios passem a ser vistos como um obstáculo. As queimadas e o desmatamento aumentaram nas terras indígenas, mas isso é absolutamente negado pelo governo. Com a pandemia, a doença entrou nas aldeias por agentes de fora. A situação dos índios é um demonstrativo de o quanto 2020 tornou aqueles que já tinham situações muito difíceis, ainda piores. Junto com os indígenas pode colocar os quilombolas, todas as comunidades tradicionais que vivem no campo. O panorama para essas populações é similar.
Todas essas populações que têm seus direitos recorrentemente violados, no ano de 2020 ficaram ainda mais vulneráveis, seja porque tiveram que brigar por outros direitos e se expuseram ainda mais, seja porque mal conseguiram colocar luz sobre suas lutas porque a pandemia tomou conta da pauta. E, para culminar tudo isso, essas pessoas organizadas em coletivos e pequenas organizações de base espalhadas país afora, que sempre fizeram com que a luta desses segmentos estivesse mais estruturada e mais forte, ficaram extremamente precarizadas pela falta de recursos e pelo impacto da pandemia. O pouco recurso que as organizações da sociedade civil tinham para implementar as lutas de defesa de direitos foram carreados necessariamente para aquilo que era emergencial, que era atender a saúde, a alimentação. Isso empobreceu as próprias organizações, que ficaram numa situação mais precária para reforçar a luta por direitos.
Historicamente, embora o Estado seja o maior responsável por garantir e assegurar os direitos humanos, ele também viola esses direitos. A senhora avalia que isso piorou nos últimos anos?
Estamos vivendo um quadro de aumento de violações de direitos humanos neste governo. Entre os maiores exemplos, se a gente olhar para o campo, a entidade que tem a obrigação constitucional de defender terra indígena, demarcar terra quilombola e proteger e buscar solucionar os conflitos no campo passou a ser uma entidade que incentiva esses conflitos. Desde que o Bolsonaro assume, a gente vê no campo um aumento exponencial da violência que vai, paralelamente, associado a uma tentativa desse governo de desmontar a legislação que os protege ou qualquer estrutura estatal que foi construída através de muita luta para que esses povos pudessem estar junto das instâncias de administração lutando por seus direitos. No discurso, o governo incentiva invasão de terra, invasão por garimpeiro, diz que não tem desmatamento, não tem queimada, e vai incrementando uma violência que já é forte. Além dos órgãos de participação, também teve desmonte no Ibama, no ICMbio, na Funai. Esse governo age dos dois lados: procura desmontar a estrutura de direitos e incentiva com o discurso que a violência recrudesça.
Isso na cidade também se reflete. Quando você tem um governo que é a absolutamente conservador, faz piada do racismo, das mulheres, das religiões de matriz africana e tem uma narrativa quase que oficial incentivando a população a fazer o mesmo, aqueles que já eram racistas, homofóbicos e machistas se sentem absolutamente liberados. A gente vê a coisa recrudescer de uma forma muito violenta. Além do discurso, existe uma ação do governo, não só uma omissão, de desconstrução dessas proteções de direitos às populações mais vulneráveis.
Qual papel devem exercer a sociedade civil organizada e o setor privado neste contexto, em 2021?
A sociedade civil organizada, embora tenha sido precarizada em 2020, está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior e que não se destruiu tudo. Existe um movimento grande de impedir que se passem leis ainda piores no Congresso, de levar às questões ao Judiciário. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não se ande para trás, para que não haja retrocessos. Isso esta sendo feito de uma maneira heroica, por organizações muito precarizadas por conta da situação econômica e da pandemia, mas conduzidas por lideranças muito fortes, que enfrentam essas ameaças e que estão lá, à frente dessas lutas.
Sem a sociedade civil organizada, não tem como imaginar que vamos avançar ou reagir a esse desmonte. Portanto, fortalecer essa sociedade organizada é fundamental. E quem é que pode fazer isso? A própria sociedade, enquanto cidadão, apoiando essas organizações, reconhecendo a importância delas e se colocando ao lado delas. E para que a sociedade como um todo possa se mobilizar, ela tem que ser mobilizada. A imprensa tem um papel fundamental nisso e o setor privado também. Até porque a luta da sociedade organizada precisa não só de apoio político, mas de recursos. O Fundo Brasil de Direitos Humanos faz isso, mobiliza esses recursos para destinar para organizações que atuam na ponta, selecionadas com muito cuidado e carinho, tentando identificar quem são esses atores que estão à frente de lutas dos mais diversos grupos e apoiá-los para que possam fazer a diferença nesse momento.
O que podemos esperar para 2021?
A pandemia continua sendo um desafio e algum apoio emergencial ainda será necessário. O Fundo Brasil teve um fundo emergencial em 2020 e distribuiu mais de R$ 2,5 milhões para ações emergenciais em todas as partes do país. Agora temos quatro editais - um específico para enfrentamento ao racismo, outro de justiça criminal, um terceiro para a população LGBTQIA+ e outro mais geral, que vai contemplar trabalhadores informais. Vamos apoiar cerca de 75 projetos nos próximos 18 meses, com cerca de R$ 3,5 milhões. Esses recursos são flexíveis para que as organizações coloquem nas suas maiores necessidades e 30% podem ser alocados para necessidades impostas pela Covid.
Para 2021, seria fundamental que a gente pudesse pensar na sociedade civil organizada dessa maneira. Ainda vai ser necessário algum aporte para resposta a pandemia, mas é preciso que esses recursos também possam ser utilizados para restruturar as organizações para que elas possam se reerguer enquanto movimento social e, com isso, apoiar se não os avanços, as ações necessárias para conter as tentativas de desmonte.
Na última década a defesa dos direitos humanos passou a ser questionada por uma parcela da sociedade, que a considerada 'mi mi mi' ou uma pauta de esquerda? Como reverter isso?
Eu fico me perguntando em como chegamos nesse ponto, com uma parte da população sendo capaz de ser "contrária" aos direitos humanos. Há uma desinformação muito grande sobre o que são os direitos humanos e uma necessidade enorme de comunicar para a população que eles são os direitos de todos e todas, enquanto indivíduos e enquanto grupo. A partir do momento que a sociedade compreender isso, ela vai ter mais empatia. A gente peca por uma falta de compreensão e ela historicamente ela se deu porque a sociedade civil organizada é pequena e faz três milhões de coisas ao mesmo tempo, então tinha pouca energia e recurso para investir em comunicação e diálogo com a sociedade.
As organizações que defendem direitos humanos estão defendendo direitos de grupos, mas sobretudo estão defendendo o avanço civilizatório do nosso país e o fortalecimento da nossa democracia. A gente vinha num processo crescente de educação e comunicação nesse sentido. Mas, de um tempo para cá, isso começa a retroceder em função desse novo governo, que tem um discurso radicalmente antidireitos. Há uma disputa de narrativa muito forte que nós traz para onde estamos agora. Estávamos avançando e fazendo o que era preciso em termos de comunicação e discurso, mas fomos, digamos assim, atropelados por essa contra narrativa.

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