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Elite enlutada

Agência Carta Maior-Brasília-DF
Autor: ELIAKIN RUFINO
05 de Mai de 2005

A elite política e econômica de Roraima está enlutada. Ninguém morreu. O motivo do luto é a nova demarcação da área indígena Raposa-Serra do Sol. Os povos indígenas que vêm sendo escravizados e dizimados há 300 anos nunca estiveram de luto

A elite política e econômica de Roraima está enlutada. Ninguém morreu. O motivo do luto é a nova demarcação da área indígena Raposa-Serra do Sol. A maioria dos políticos e empresários de Roraima, junto com seus correligionários, familiares e amigos, adotou um exagerado e acintoso luto. A sociedade mestiça de Roraima não está de luto. Quem está de luto é quem sempre esteve na luta contra a demarcação das terras indígenas. Quem está de luto são aqueles que não poderão mais apontar a incerteza fundiária como responsável pelo atraso econômico. Quem esteve, durante todo esse tempo, na luta pelos direitos indígenas, não está de luto.
Os povos indígenas de Roraima vêm sendo escravizados, dizimados, humilhados e desrespeitados há pelo menos trezentos anos. E nunca estiveram de luto. Mesmo em desvantagem, sempre estiveram na luta. Os 26 anos de espera pela demarcação definitiva da Raposa-Serra do Sol são menos de 10% do tempo total de luta. Embora tenham morrido aos milhares, os índios nunca mereceram por parte dos não-índios nenhum luto como reverência.

Creio que esse luto adotado pela elite política e econômica de Roraima é uma tentativa patética de estragar a festa daqueles que esperaram trezentos anos para receber de volta uma pequena parte da terra que um dia pertenceu inteiramente aos seus ancestrais. É o direito ancestral sobre a terra. É a ligação material e espiritual com aquele pedaço de chão. São as forças telúricas. Isso é difícil de ser compreendido pelo chamado homem moderno e civilizado. O homem do arame farpado. O homem da escopeta.

A invasão das terras indígenas em Roraima começa com a chegada dos primeiros rebanhos de gado a partir de 1789. A Coroa Portuguesa, após promover, apoiar e patrocinar o tráfico de mão-de-obra indígena, instala no final do século XVIII as chamadas Fazendas Nacionais. É neste momento que tem início um conflito que só agora, com a nova demarcação da reserva, é parcialmente resolvido. Quando o luto acabar, a luta continua.

No Brasil o luto sempre esteve na moda. E Roraima não está fora do Brasil, como muita gente pensa. Recentemente o país enlutou-se pela morte do Papa João Paulo II. Mas não foi decretado luto nacional nem tampouco estadual pela morte da missionária Dorothy Stang assassinada no Pará por pistoleiros contratados por fazendeiros. Usa-se luto não por pesar, nem por consciência, e sim por conveniência.

Espero que este período de luto, adotado por alguns políticos e empresários de Roraima, seja um momento de reflexão. Creio que chegou a hora de desfazer alguns equívocos. A verdadeira causa do atraso de Roraima sempre foi e continua sendo a corrupção e o desvio do dinheiro público. Não são os índios. Não assusta mais ninguém o velho discurso de que estas terras demarcadas ocultam tesouros em seu subsolo e que a demarcação da reserva é só um passo para a internacionalização da Amazônia. O que ameaça Roraima são maus brasileiros. A principal ameaça não vem de fora.

A demarcação da área indígena Raposa-Serra do Sol veio em boa hora. Pela proximidade da data, chegou como um presente do Dia do Índio. As autoridades políticas e o empresariado roraimense serão obrigados agora a repensar o modelo vigente de desenvolvimento. A parcela mais racista da sociedade roraimense, que sempre viu os índios como escravos, como escória e como empecilho ao desenvolvimento, será obrigada agora a engolir o seu próprio veneno. A demarcação é boa porque obriga a pensar novas formas mais solidárias de convivência humana. Demarcação é cidadania.

Roraima possui mais de 200 mil quilômetros quadrados de terra. Há terra para todos. Não faltará terra para quem quer trabalhar e produzir. Em vez de luto, é preciso ir à luta. É preciso ter coragem e dignidade para arregaçar as mangas e começar um trabalho de parceria com os índios que sempre foram excluídos do projeto político. Demarcação não é só política de inclusão, é uma questão de justiça.

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