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Efeitos do monopólio da soja vão além da destruição da floresta

Carta Maior
23 de Jan de 2005

Efeitos do monopólio da soja vão além da destruição da floresta

Fórum Pan-Amazônico

Êxodo rural, desemprego, trabalho escravo, aumento da violência, prostituição e problemas de saúde decorrentes do uso de agrotóxicos são testemunhados por ribeirinhos, trabalhadores rurais, movimento de mulheres e organizações ambientalistas no FSPA.
Patrícia Bonilha 23/01/2005
Manaus - Bastante discutido e polemizado na mídia nacional e internacional recentemente, o impacto do cultivo extensivo da soja na região amazônica foi também um dos temas de maior destaque, principalmente entre os movimentos de base, no Fórum Social Pan-Amazônico (FSPA), que se encerrou ontem (22) em Manaus. Ao contrário dos debates expostos na mídia - principalmente nos últimos dias, devido à divulgação de uma análise feita pelo Instituto de Pesquisas e Economia Aplicada (Ipea) que afirma que a soja não provoca desmatamentos no cerrado e na Amazônia - os moradores do Amazonas que sentem na prática os efeitos da interferência da soja nos seus cotidianos relatam de forma consensual o quanto vêm sendo prejudicados pela extensão dessa monocultura que, segundo eles, conta com a conivência do governo federal.

Devido à opção do governo de continuar a ter o superávit primário como base da economia agrícola, a soja é o produto de maior importância na balança comercial do país, representando cerca de 8 a 10% do total. De acordo com dados do Conselho Nacional de Abastecimento (CONAB), no período de 1990 a 2002 a produção anual de soja na Amazônia Legal (que abrange os estados de Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Tocantins e grande parte do Maranhão e Mato Grosso) aumentou de um para quatro milhões de toneladas e a área plantada de 300 mil para 1,3 milhão de hectares. O Brasil é o segundo maior produtor de soja do mundo e chega até mesmo a exportar para o mercado alternativo dos Estados Unidos (primeiro produtor mundial), que é resistente à soja transgênica.

Pior que Brasil colônia
Com um histórico desses se poderia presumir que a soja representasse hoje o mesmo que a cana-de-açúcar representou no Brasil colônia e o café na época do Império. Mas de acordo com Maurício Galinkin, presidente do Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (CEBRAC) e representante do Articulação Soja Brasil, que trabalha com a soja há cerca de dez anos, a realidade atual do monopólio é ainda pior devido ao tamanho da área (com um potencial muito grande de expansão) e da utilização de mais recursos naturais e água. "Na prática, a Amazônia funciona como um território anexado economicamente para garantir a soberania alimentar da população da Europa e de países asiáticos como o Japão, não para garantir a nossa soberania alimentar", afirma.

Ressaltando a importância da percepção de que o problema não é a soja em si, que a princípio é um excelente produto, Galinkin explica que quando produzida para a economia local ou dentro de programas de agricultura familiar, a soja não causa nenhum impacto, podendo até ser cultivada organicamente, sem a utilização de agrotóxicos, por exemplo: "Os graves impactos que a monocultura causa é que são o grande problema. A concentração de terras e renda é enorme. A geração de empregos no campo é ínfima, alguns poucos são criados na área de serviço, na cidade. Outros poucos empregos na área de técnicos mais especializados são preenchidos por pessoas que não são da região. Esta grande escala de plantação ainda traz um volume bastante significativo de poluição, pela utilização de agrotóxicos. E o capital gerado não é gasto na área do plantio, mas sim nas regiões mais ao sul do país".

Briga pela terra
Botando mais lenha na fogueira da já difícil questão fundiária da região amazônica, o cultivo extensivo da soja trouxe ainda mais tensão na disputa de terras entre fazendeiros, grileiros, posseiros e moradores de antigas comunidades. Nos municípios atingidos de Santa Maria das Barreiras, Santana do Araguaia, Redenção e Conceição do Araguaia, todos no sul do Pará e localizados em áreas planas que facilitam a utilização da tecnologia e do maquinário, inúmeras comunidades tradicionais foram destruídas: "Os agricultores são pobres e sem muita instrução. São presas bastante fáceis para os insistentes fazendeiros que vêm do Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso. Como ficam sem terra e não conseguem emprego na região, tornam-se favelados, trabalhadores escravos ou vão tentar o acesso à terra em áreas mais distantes", afirma José Cledson, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Pará.

Ele cita o caso do assassinato de oito trabalhadores escravos na Fazenda Primavera, localizada entre o rio Iriri e o rio Xingu, no final de 2003. Devido ao desemprego e à falta de perspectivas, famílias inteiras mudaram-se para uma grande área grilada por fazendeiros e madeireiros e se submeteram a trabalhar em regime de escravidão, num cenário de constantes conflitos armados. Pistoleiros de um grileiro maior mataram friamente os oito trabalhadores escravos de um grileiro menor. "Se não fosse pelo fato de que estávamos tendo uma reunião preparatória para o Tribunal Internacional dos Crimes de Latifúndio na cidade de São Félix do Xingu, os corpos seriam enterrados como se fossem de indigentes", declara Cledson.

O gerente de projetos do Greenpeace no Amazonas, Nilo D´Ávila, também acredita que o maior custo da soja hoje é o social - já que os impactos ambientais são sentidos mais a longo prazo. Segundo ele, os relatórios de trabalho escravo na Amazônia Legal, no período de 1993 a 2003, mostram que 50% dos trabalhadores estavam em áreas de desmatamento para pasto ou lavoura, 25% com pecuária e 6% trabalhando diretamente com o cultivo de soja. O percentual pode parecer pequeno, mas representa milhares de trabalhadores escravos. De acordo com D´Ávila, a forte relação de dependência entre o desmatamento e a venda de madeiras com a implantação do cultivo de soja também não pode ser desconsiderada.

Outro fenômeno bastante comum utilizado neste esquema de acumulação agrária é a queima dos barracos e casas dos pequenos agricultores, geralmente acompanhada de ameaças de morte, com o objetivo de amedrontá-los e convencê-los a vender suas terras. Demarcações de tribos indígenas também não são respeitadas nesta luta pela terra.

Outras feridas
Inúmeras cidades como Redenção, no Pará, atualmente com 80 mil habitantes, tiveram suas populações duplicadas em um período de dez anos. Além do inchaço e do desemprego, outras severas conseqüências do êxodo dos moradores de pequenas comunidades para centros maiores são a prostituição, o aumento da violência, do alcoolismo e do uso de drogas.

Representante da Frente em Defesa da Amazônia, Roberta Santos tem 23 anos e nasceu na comunidade de Membeca, no Pará, que ainda hoje não tem energia elétrica. Morando atualmente em Santarém, ela afirma que das 94 famílias que moravam na comunidade até o ano passado só restam cerca de 50: "A desestruturação social é imensa e a quantidade de meninas se prostituindo é muito triste. Perto do porto de Santarém você vê muitas, de 11 a 23 anos, que vendem banana frita. Mas se elas conseguirem quem pague cinco, três ou até dois reais por um programa, elas aceitam. Isso é mais do que elas ganham vendendo banana frita, às vezes", afirma.

Segundo Roberta, com a idade de 14 ou 15 anos, muitas dessas meninas já têm um ou dois filhos. Outro fator preocupante é que o número de casos de AIDS na cidade aumentou vertiginosamente nos últimos anos: "E o povo sofrido por ver tanta mudança em suas vidas, muitas vezes cai no álcool, na cola e na maconha. As pessoas não conseguem enxergar nenhuma possibilidade de melhorar, de resolver seus problemas", lamenta Roberta.

Destruição direta
Assunto de recente polêmica na mídia, a questão de que o cultivo extensivo da soja provoca ou não desmatamento da floresta Amazônica não se justifica, segundo Maurício Galinkin. Para ele, o processo de avanço à fronteira agrícola está todo concatenado. O madeireiro tira a cobertura vegetal de uma área que antes era usada praticamente só para a pecuária. O gado avança para outras regiões e essa mesma área pode ser utilizada para o cultivo de culturas como o arroz, com o objetivo de melhorar a terra e prepará-la para as plantações em larga escala de soja. "Hoje, não há mais necessidade de utilizar todo este processo. A tecnologia já permite a entrada direta da soja nas áreas recém-desmatadas", garante Galinkin.

Com a mesma linha de raciocínio, Nilo D'Ávila afirma que a soja tornou-se uma febre na região amazônica. E que, repetindo o mesmo modelo de massificação da produção utilizado no Mato Grosso, o estado mais atingido pelos impactos ambientais de toda a Amazônia Legal, as conseqüências serão bastante graves: "E a tendência tem sido essa. A soja vem com um amplo projeto de expansão do transporte, seja através do sistema hidroviário ou rodoviário para o escoamento da produção", ressalta ele.

Motivo de incredulidade há décadas atrás, a possibilidade de desertificação da Amazônia é bastante real. Especialistas explicam que cortada a cobertura vegetal, a tendência é a de que o solo torne-se cada vez mais arenoso e solto. Extensas áreas de cultivo promovem graves alterações no micro-clima. No Mato Grosso, por exemplo, algumas áreas chegam a ter 30 mil hectares de soja cultivados em plantio contínuo. De acordo com Galinkin, no Piauí, 50 mil hectares, área que corresponde a 500 quilômetros quadrados, o equivalente a um terço da área de todo o município de São Paulo, estão cultivados continuamente por soja: "Não existe uma árvore em toda essa extensão. Você pode imaginar o que é isso, um terço do município de São Paulo sem uma única árvore?", questiona.

O desaparecimento de milhares de espécies da fauna e da flora da maior biodiversidade do planeta, de igarapés, a contaminação do solo, subsolo e da água pela utilização de agrotóxicos são outros resultados da substituição irresponsável da cobertura vegetal da floresta amazônica pelo cultivo extensivo da soja.

Agência Carta Maior, 23/01/2005

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