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Efeito estufa agravará fome e sede pode atingir 1 bilhão de pessoas

OESP, Especial, p. H1-H4
Autor: NOBRE, Carlos Afonso; ABRANCHES, Sergio
07 de Abr de 2007

Efeito estufa agravará fome e sede pode atingir 1 bilhão de pessoas

Previsão para o século 21 é aumentar os casos de
doenças no mundo
Biodiversidade ameaçada com a extinção de um terço das espécies
Milhões de pessoas ficarão vulneráveis a enchentes
Ondas de calor podem matar milhares por ano
Documento admite savanização da Amazônia
EUA, China e Arábia Saudita conseguem abrandar termos do documento
Apesar de previsão sombria, gravidade dependerá de medidas adotadas hoje l Próximo documento das Nações Unidas trará alternativas para redução do efeito estufa

Andrei Netto

Em 2 de fevereiro, cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ligado às Nações Unidas, revelaram que o homem é responsável pelo aquecimento global, que traz efeitos colaterais que variam à medida que a temperatura média da Terra suba ao longo deste século, num processo irreversível. Ontem, em Bruxelas, o IPCC mostrou quantos e quão graves são estes efeitos. O cenário é o mais sombrio já projetado pelo grupo em quase 20 anos de atividade.

As populações mais pobres, estejam na África ou na Europa, são as mais vulneráveis. Milhares de pessoas já estão expostas à escassez de água e o número vai se converter em bilhão à medida que o aquecimento se agrave. As projeções sobre o impacto na saúde são imprecisas, mas é certo que o número de casos aumentará. Alterações são observadas nos ambientes terrestres e marinhos.

A produção de alimentos, num primeiro momento, pode ser beneficiada em latitudes mais altas. Contudo, o declínio é esperado após um acréscimo de 3oC na temperatura global em relação aos dias atuais. Além disso, a agricultura praticada em latitudes mais baixas sofrerá com variações bastante leves no clima - levando insegurança familiar a centenas de milhares de pessoas que vivem nestas áreas e dependem do cultivo de subsistência.

Com isso, regiões já assoladas pelo subdesenvolvimento sofrerão mais, pois a baixa capacidade econômica de adaptação se soma à força das alterações climáticas. Projetos de desenvolvimento sustentável podem não surtir efeito.

As transformações serão percebidas em todos os continentes e oceanos. Na América Latina, regiões semi-áridas vão ficar áridas e as nações que dependem da água que derrete dos Andes sofrerão com a falta do recurso. A região costeira pode sofrer erosão com a subida dos oceanos. O Brasil não é citado nominalmente, porém os modelos que indicam a tendência de savanização do leste da Amazônia, predominantemente brasileiro, foram confirmados pelo painel internacional.

Para a ministra brasileira Marina Silva, o relatório fortalece as posições da pasta do Meio Ambiente dentro do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ela diz que agora o problema não é mais somente técnico e científico, mas também econômico e social.

SÉRIES

O IPCC analisou dados coletados em cerca de 80 mil séries de estatísticas, componentes de 577 estudos realizados entre 1970 e 2004. O documento ainda classifica como "muito improvável" que as alterações climáticas sejam devidas exclusivamente a mudanças naturais da temperatura ou dos sistemas - seguindo a tendência de afastar questionamento dos céticos do aquecimento. Os números mais impressionantes - 1 bilhão de pessoas expostas à severa escassez de água e 600 milhões sujeitas à fome em razão de secas, à degradação dos ambientes e à salinização do solo - foram retirados da síntese divulgada ontem. Eles seguem impressos no relatório integral, de 1,4 mil páginas, mas não consta do resumo de 23 páginas voltado aos formadores de políticas públicas.

É neste ponto que emerge a grande controvérsia da reunião entre cientistas e delegações governamentais ao longo da última semana. O consenso científico duro e chocante, exposto em estatísticas no relatório de fevereiro, e que gerou reações de governos, organizações não-governamentais, imprensa e opinião pública, foi substituído por um tom mais ameno e menos preciso. E essa característica só veio à tona às 15h, horário local (12h em Brasília), com cerca de cinco horas de atraso em relação à previsão inicial dos organizadores.

O retardamento não foi acaso. A reunião técnica, que deveria ter se encerrado no início da noite de quinta na capital belga, estendeu-se pela madrugada e invadiu a manhã, avançando sobre o horário em que estava prevista uma entrevista, presenciada por centenas de jornalistas de todo o mundo. Às 10h18min, Rajendra Pachauri, coordenador do IPCC, improvisou, em pé, sobre uma cadeira de escritório, a declaração no saguão do Centro Carlos Magno, onde até poucos instantes antes transcorria o encontro. "Acabamos de concluir o relatório. Estou usando o mesmo terno de ontem, mas foi produtivo", disse, mantendo a aparência de harmonia, para reconhecer instantes depois: "Foi um exercício complexo, um documento difícil de se definir".

A razão: delegações políticas dos Estados Unidos, da China, da Rússia e da Arábia Saudita - países produtores de petróleo, gás ou em forte desenvolvimento econômico, e portanto grandes emissores de CO2, principal causador do efeito estufa - pleitearam a redução da ênfase terminológica. Designações como "muito provável", "provável" e "improvável" são chave para compreensão esforço científico e político que norteia os relatórios do painel e, assim, foram o alvo dos delegados governamentais. Talvez por ironia, a superficialidade do texto final se tornou flagrante em alguns pontos . Sobre o impacto do aquecimento global na América do Norte, por exemplo, o documento não traz efeitos negativos na economia da região e começa enumerando um efeito positivo: aumento de 5% a 20% da produção agrícola em determinados cultivos.

Saúde
600 milhões
de pessoas podem ser atingidas pela fome e pela desnutrição até o final do século como resultado das mudanças climáticas

Biodiversidade
20%
das espécies animais e vegetais, no mínimo, poderão ser extintas se a temperatura média do mundo subir entre 1,5oC e 2,5oC

Economia
4oC
de aquecimento na temperatura pode levar a uma perda média de 1% a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) global

Fenômenos extremos e menos qualidade de vida: é o novo clima
Capacidade produtiva do solo será reduzida a zero em novas regiões desérticas, entre outros efeitos adversos
Andrei Netto e Cristina Amorim, Bruxelas
Até 2050 o acesso à água potável e aos alimentos diminuirá, a capacidade produtiva do solo será reduzida a zero em novas regiões desérticas e oceanos sofrerão acidificação progressiva, com impacto na flora e fauna marinhas. Somada à maior concentração de CO2 na atmosfera, a nova geografia climática do planeta será marcada pela deterioração da qualidade de vida e fenômenos extremos, que ameaçarão o cotidiano do homem.

O que foi apresentado ontem, ao término de cinco dias de discussões intensas entre especialistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e representantes de diferentes países, em Bruxelas, está dividido em duas grandes linhas: o impacto geral e as conseqüências regionais. "O aquecimento global, causado pela atividade humana, tem provavelmente tido impacto perceptível em muitos sistemas físicos e biológicos", disse o britânico Martin Parry, doutor da Universidade de Westminster, co-responsável pelo grupo de trabalho.

O nível dos rios pode subir de 10% a 40% nas altas latitudes do planeta, e cair de 10% a 30% nas latitudes médias e nos trópicos, onde as regiões de seca serão mais comuns e mais inclementes que hoje. Em caso de elevação além de 3oC, a produção de alimentos cairá e a fome se agravará nas mesmas regiões.

Nas regiões costeiras, diz o relatório, "muitos milhões" de pessoas serão afetadas até 2080 por inundações, obras da elevação do nível dos oceanos. As tempestades tropicais vão se tornar mais freqüentes na Ásia, na África e nas pequenas ilhas do Caribe e do Pacífico. Os fenômenos extremos também trarão impacto à saúde de, mais uma vez, "milhões de pessoas". A desnutrição, desafio jamais vencido pela humanidade, ganhará impulso.

Sentido em todo o globo, o impacto do aquecimento global será mais inclemente na África, parte da Ásia e da América Latina - na maioria das nações mais pobres do mundo. Serão elas as mais afetadas em razão de sua baixa capacidade de investimento em tecnologias de adaptação - que podem consumir de 5% a 10% do PIB - e pela maior vulnerabilidade às transformações do clima.

Só na África, entre 75 milhões e 250 milhões de pessoas padecerão com a seca e a falta de água potável e a redução de até 50% da produção agrícola e da pesca por volta de 2020. Na Oceania e na Europa, os efeitos, menos claros e impiedosos, transformarão a geografia física, derretendo picos de neve nas montanhas ou gerando secas, incêndios e perda de biodiversidade no sul e no leste da Austrália e da Nova Zelândia por volta de 2030. Nas regiões polares, o impacto tantas vezes divulgado se confirma: derretimento das calotas polares, erosão costeira e extinção de espécies.

Uma interrogação se forma à medida que o relatório avança sobre dados da América do Norte. Vago, o texto diz que a produção de determinadas culturas agrícolas, notadamente a de grãos, pode crescer de 5% a 20%. Os efeitos nocivos são citados de forma breve: redução dos recursos hídricos, pestes, doenças, fogo florestal e inundações costeiras.

O Brasil sentirá com vigor os efeitos. Embora o relatório não cite países - evitando acentuar o grau político da discussão -, as regiões leste e norte da floresta amazônica podem virar savana, com vegetação rasteira.

LOBBIES

A quantificação da perda desta área até meados do século, presente no texto original, não aparece na síntese. "Não há dúvidas sobre a savanização da Amazônia", afirmou o argentino Osvaldo Canziani, um dos autores do relatório.

Os dados sobre as Américas ilustram o jogo de forças disputado até o último instante. Após o sucesso na divulgação sobre a física do aquecimento em fevereiro, o painel foi encurralado pela interferência política.

Delegações dos Estados Unidos, Rússia, China e Arábia Saudita insistiram na supressão de definições e dados. A frase "danos econômicos e perturbações substanciais de seu sistema socioeconômico e cultural", relativa à América do Norte, acabou apagada da versão final. A oposição a este grupo - formado por exportadores ou grandes consumidores de petróleo e gás - foi liderada por delegações da União Européia e por cientistas empenhados em um alerta mais enfático.

O resultado foi um cisma. Líderes do IPCC, como o coordenador Rajendra Pachauri, defenderam o resultado. "Estamos satisfeitos", disse. Outros cientistas pensam em rompimento com o painel.

Para Jean-Pascal van Ypersele, do Instituto de Geofísica Georges Lemaître, da Bélgica, a negociação foi o preço a pagar pelo consenso. "O importante é que o relatório, tal como está, é assinado por todos os governos presentes. E não se pode afirmar que haja exageros." Em relação ao relatório de fevereiro, quando governos se mostraram atentos às constatações científicas, o clima de Bruxelas mudou drasticamente.

Agricultura

1oC
de elevação de temperatura pode ser o suficiente para levar a uma queda de produção agrícola em regiões de menor latitude

Projeções de impacto na saúde são incertas
Sem estudo próprio, País não conhece vulnerabilidade
Giovana Girardi
As projeções sobre qual impacto o aquecimento global terá em relação à saúde das pessoas ainda são pouco precisas, principalmente quanto à incidência de doenças. Mas uma coisa é certa: a maior freqüência de eventos climáticos extremos como secas e inundações vai deixar populações hoje já vulneráveis em situações de fragilidade ainda maior, de acordo com o pesquisador brasileiro Ulisses Confalonieri, da Fiocruz, que participou do segundo grupo de trabalho do IPCC.

O problema, segundo ele, é que os estudos são pouco específicos sobre os países que provavelmente serão os maiores afetados pelas mudanças climáticas - os pobres e em desenvolvimento. "O grosso das pesquisas avaliadas no grupo 2 foi feito no Hemisfério Norte e traz detalhes sobre os impactos nesses países, como, por exemplo, o aumento das ondas de calor e das doenças respiratórias", diz.

"Mas as previsões sobre desnutrição, aumento de moléstias ligadas à água, como diarréias, ou transmitidas por vetores e conseqüências à saúde dos eventos extremos são muito genéricas. Não há dúvidas de que haverá esse impacto na população, mas exatamente quando, onde e como não se sabe."

A exceção, afirma Confalonieri, é em relação à malária na África, o que faz sentido visto que essa é a região onde a doença faz mais vítimas. Para o continente há modelos específicos, mas suas conclusões são conflitantes. "Um diz que as áreas montanhosas ficarão mais suscetíveis ao mosquito. Com o aumento da temperatura, haveria condições climáticas para ele ocupar espaços que não ocupava. Mas o outro modelo não observou nada disso. A conclusão é: espera-se um efeito misto; em alguns lugares a malária pode aparecer, porque o mosquito migra, e em outros pode desaparecer porque se tornam muito secos, inviáveis para ele."

Para a região amazônica, que também é afetada pela doença, no entanto, não existem projeções específicas, só modelos globais. "Só que quanto mais abrangente for a a escala, mais incerto o trabalho é e acaba não servindo para gerar políticas públicas de saúde", pondera.

Quanto ao temor de que a doença se espalhe pelo resto do País com aumento das temperaturas, Confalonieri diz que é bobagem: "A malária não vai descer para São Paulo por causa de 1oC ou 2oC a mais. A reintrodução no Estado ocorre o tempo todo com pessoas que chegam doentes da Amazônia. Mas tratou, acabou. Com a urbanização houve extinção dos criadouros. Agora é claro que se houver uma migração em massa de gente doente, aí haverá um problema. Mas só pelo calor não."

Para o pesquisador, a maior preocupação do Brasil e de outros países em desenvolvimento deve ser em torno da escassez de água. Para as regiões tropicais o IPCC projeta indisponibilidade de alimentos. Isso deve afetar as populações que vivem da agricultura de subsistência. "Se o modelo do Inpe que prevê aumento de aridez no Nordeste se concretizar, a seca vai tornar a região inviável para milhares de pessoas, que vão migrar para o litoral e o Sul."

Isso pode gerar um impacto enorme na demografia, na economia, na segurança e principalmente nos serviços públicos de saúde. "Dependendo da velocidade desse movimento, podemos ter uma redistribuição de doenças endêmicas que serão carregadas pelos migrantes."

Por outro lado, mais chuvas e inundações podem causar uma explosão de doenças relacionadas à água e aumento da vulnerabilidade de áreas que hoje já são frágeis em grandes centros urbanos. O problema, diz, é que o Brasil nem sequer sabe ainda quais são essas áreas mais vulneráveis. "Precisamos urgentemente dos nossos próprios modelos climáticos."

'Caixa preta' está se abrindo, diz Marina
Para ministra, relatório fortalece posição no governo
Leonencio Nossa, BRASÍLIA
Mesmo dizendo que "a vida não fica mais fácil", a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, reconhece que os relatórios da ONU sobre a situação do meio ambiente no mundo fortalecem as posições da pasta nos debates internos do governo. Em entrevista ao Estado, após a divulgação do segundo relatório do IPCC, a ministra admitiu que a pressão da opinião pública tem peso, o que tem levado o presidente Lula a pedir informações para enfrentar o debate ambiental em fóruns internacionais.

Numa sessão do filme Uma Verdade Inconveniente, do ex-vice presidente americano Al Gore, no Palácio da Alvorada, duas semanas atrás, Lula acertou com Marina a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento das Mudanças Climáticas. Segundo ela, o governo vai consolidar ações em andamento, adicionar propostas e rebater críticas externas de que o Brasil não estaria fazendo o "dever de casa" na questão do aquecimento global. Lula quer apresentar o plano no próximo encontro da cúpula do G-8, em junho, na cidade alemã de Heiligendamm. O Brasil é um dos cinco países em desenvolvimento convidados para o evento. A seguir, trechos da entrevista.

CAIXA PRETA

Quatro cientistas brasileiros participaram da elaboração do relatório da ONU. O problema apresentado é o que de fato está acontecendo. O aquecimento já é uma realidade há muito tempo para quem lida com a questão ambiental. O conteúdo da caixa preta do clima está se tornando público. Temos de nos adaptar e enfrentar o processo.

PRESSÃO DOS RICOS

O bom desses relatórios é que são feitos por pesquisadores com independência para apresentar suas conclusões à comunidade internacional. Não se pode tampar o sol com a peneira. Seria uma irresponsabilidade não se preocupar com o que pode ocorrer nos próximos anos. Isso não vai acontecer só daqui a décadas. O problema já atinge os seus filhos. Não queremos cometer os mesmos erros de países ricos, não queremos ter os mesmos direitos de destruição.

FORÇA NO GOVERNO

Neste momento, o setor ambiental tem responsabilidade grande, porque agora não se trata apenas de um problema técnico ou científico, mas de um problema econômico e social. Os segmentos estão se envolvendo, criando na opinião pública internacional um processo de alavancagem positiva do assunto nas políticas públicas e setores empresariais. Ganham força ações que vêm sendo feitas.

VIDA DE MINISTRA

Eu não iria por esse discurso (que ela passou a ter mais força no governo). Não é fácil a vida de nenhum ministro. É algo complexo. Fico feliz que tenhamos conseguido implantar um Plano Nacional de Combate ao Desmatamento.

CLIMA

O presidente Lula está sensibilizado. Em alguns meses poderemos apresentar um Plano Nacional de Enfrentamento das Mudanças do Clima, é assim que estou chamando. A Casa Civil poderá coordenar o trabalho, que juntará ações de diversos ministérios. O Brasil já tem um plano de biocombustível, de recursos hídricos e de combate ao desmatamento e à desertificação. Tudo isso que fizemos poderá ser juntado no plano do clima, e adicionaremos novas medidas. O plano não começa do zero.

DEVER DE CASA

Quando ele (Lula) foi para os Estados Unidos, no final de março, nos pediu que juntássemos as propostas de combate ao desmatamento. E na reunião do G-8+5, em junho, ele pretende enfatizar a questão do clima e propor medidas. Temos de liderar pelo exemplo. Quando o Brasil critica os países desenvolvidos na área ambiental não estamos fazendo discurso de retórica. Nos últimos dois anos, por exemplo, reduzimos a emissão de CO2 em 51%, o que representou 15% do que todos os países desenvolvidos deveriam reduzir no período.

REPERCUSSÃO

Jacques Chirac
Presidente francês

"A luta contra a mudança climática é uma das urgências absolutas de nosso tempo"

Ban Ki-moon
Secretário-geral da ONU

"Medidas adequadas podem aliviar algumas das piores
conseqüências"

Angela Merkel
Primeira-ministra alemã

"O relatório dos especialistas confirma que a mudança
climática é um fato"

Stavros Dimas
Comissário europeu do clima

"É urgente que se alcance um acordo mundial para reduzir a emissão dos gases-estufa"

James Connaughton
Conselheiro dos EUA

"O relatório insiste no que o presidente Bush vem dizendo, da gravidade desse desafio"

Paisagens do País serão alteradas
Floresta tropical úmida cederá lugar a vegetação rasteira, como na África
Andrei Netto e Ligia Formenti, Bruxelas
Em 2050, a geografia brasileira será bastante distinta da que conhecemos hoje. O resultado mais visível do aquecimento global na região em que o Brasil está situado deve ser a substituição progressiva da floresta tropical úmida, a Amazônia, por uma espécie de vegetação menos rica e estável que a savana, a vegetação rasteira da África e semelhante ao cerrado.

O relatório final do Grupo Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado na tarde de ontem, não aborda o quanto deverão ser elevadas as temperaturas para que a substituição se efetive, mas especialistas estimam que a variação de 2oC a 3oC poderá ser determinante para perdas que poderão variar de 30% a 60% da floresta. A alteração teria como efeito a redução drástica da biodiversidade. Hoje, ao menos 40 mil espécies vegetais e 427 de animais são classificadas na região.

As alterações na floresta também teriam impactos na estrutura hidrológica da região, um fator de equilíbrio do clima em toda a América Latina. A redução da cobertura vegetal reduzirá a emissão de umidade, alterando a freqüência e a intensidade das chuvas em grande parte do continente. Com isso, o nível dos rios também sofrerá rebaixamento e um volume menor de água doce desaguará no Oceano Atlântico, modificando a correlação de correntes marítimas, que também induzem a formação de massas de ar.

Para o climatologista brasileiro Carlos Nobre, autor de projeções sobre a savanização, a inclusão deste texto "reforça ainda mais as políticas públicas para Amazônia" e amplia a responsabilidade pela conservação do bioma. "Não adianta somente reduzir o desmatamento."

Além da Amazônia, o relatório do IPCC cita a tendência à desertificação das regiões semi-áridas da América do Sul, a exemplo do sertão nordestino. As novas áreas secas e semi-áridas sofrerão de salinização do solo e perderão em capacidade produtiva, ampliando o risco à segurança alimentar.

Com redução dos recursos hídricos, desde acesso à água potável e irrigação até a exploração energética de grandes bacias , o colapso em uma sociedade não adaptada seria não apenas social, mas também econômico. Enquanto regiões ao norte e ao nordeste brasileiro sofreriam com a seca, os centros urbanos litorâneos passariam a enfrentar risco de cheias e inundações imprevisíveis.

EMBAIXADOR

O Ministério das Relações Exteriores escolheu o embaixador que será designado para tratar de assuntos relacionados ao aquecimento global. A função será exercida pelo embaixador Sérgio Serra, que está em processo de desligamento da embaixada do Brasil em Wellington (Nova Zelândia). Ainda não está definido, no entanto, quando Serra assumirá o posto.

A designação de Serra para o cargo é um reflexo da atenção crescente que o País vem dispensando ao assunto, que agora também passa por questões estratégicas como economia e transferência de tecnologias.

'Vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto?'
Para pesquisador, Brasil perdeu tempo e agora
deve correr e se preparar para alterações causadas pelo aquecimento global

Entrevista: Carlos Nobre, climatologista

Cristina Amorim
O climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi um dos primeiros cientistas brasileiros a falar abertamente sobre efeitos do aquecimento global no País - antes mesmo de o problema ser diagnosticado como um caminho sem volta. Hoje revisor do capítulo sobre impactos na América Latina no relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), e chamado constantemente a Brasília para explicar a ciência do clima, ele afirma que o Brasil precisa correr para se adaptar a uma nova configuração da Terra.

Existe algum movimento interno para que projetos brasileiros de adaptação sejam levados adiante?

Só a partir deste relatório do IPCC começou-se a discutir. Temos algumas iniciativas, muito incipientes, mas pelo menos o jogo começou. No sentido político, o presidente Lula solicitou ao Ministério do Meio Ambiente um Plano Nacional de Combate às Mudanças Climáticas. Seria transversal e procuraria duas coisas. Primeiro, preparar o País para as mudanças climáticas, ou seja, adaptação ao inevitável. A outra perna é mitigação das emissões, para o Brasil se juntar aos esforços mundiais e aproveitar vantagens econômicas que se apresentam para este esforço. A mitigação avançou, pois vem no bojo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, então haveria uma aceleração da questão. No quesito adaptação, estamos na infância.

Algum país está mais avançado?

Vários. Todos os países desenvolvidos trabalham a questão.

Por dinheiro sobrando ou percepção da gravidade do problema?

Começa com a percepção. No caso da Europa Ocidental, eles não precisaram do 4o relatório do IPCC para serem convencidos de que é um problema sério e de longo prazo. Inglaterra e Holanda estão implementando seus planos. No Brasil, vejo duas iniciativas. Dentro da Embrapa, essa discussão começou no ano passado para adaptar a agricultura brasileira - porém, ainda de maneira tímida, sem escala e experimentação. E, na semana retrasada, em uma reunião promovida pelo Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, começou a se discutir o que acontecerá no Rio. É muito pouco para um País com 180 milhões de habitantes.

Por que a demora?

Nas negociações da Convenção do Clima, o Brasil sempre teve a postura de chamar os países desenvolvidos à sua responsabilidade histórica. Filosoficamente é correto, pois não se resolve o problema das mudanças climáticas só com adaptação, temos também de reduzir emissões. O que faltou foi fazer a lição de casa. Houve uma confusão conceitual no seguinte sentido: avançar muito na área da adaptação seria o mesmo que jogar a toalha. "Não vai ter jeito mesmo, então vamos partir para a adaptação." Quinze anos atrás talvez a gente tivesse pouca certeza sobre impactos, mas a indefinição ficou velha.

Falta dinheiro?

Faltam programas de fomento para estudo sobre impacto e vulnerabilidade. O Brasil é mais atrasado do que muitos países em desenvolvimento porque não houve a promoção pelos órgãos de financiamento, que não tinham agenda nesta área. Estes estudos são raríssimos e o Brasil não os fez até hoje. Vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto?

O País realmente precisa de um investimento nesta área?

O Brasil é, pelos indícios, muito vulnerável. Tem uma economia baseada em recursos naturais, que depende do clima, do solo, da água. E apresenta índices de pobreza e desigualdade extremamente altos. É certo e líquido que sempre os mais vulneráveis são os mais pobres.

Há tempo para desenvolvermos nossa própria base de dados ou teremos de importar conhecimento e tecnologia de outras nações?

Os estudos de impacto podem ser feitos no Brasil. É só colocar recursos e induzir essa área do conhecimento que a comunidade cientifica responderá. Há preocupação no aspecto tecnológico. Sem saber os impactos, não se sabe quais tecnologias modernas devem ser agregadas. E, portanto, perde-se a corrida tecnológica dos países que estão na frente na adaptação. Quando os estudos mostrarem nossas vulnerabilidades, alguém de fora pode sim nos vender a solução. Somos melhores cientistas do que engenheiros, para usar um termo genérico para pessoas que encontram soluções práticas. Precisamos de mais do que elaborar políticas públicas. Por exemplo, quanto à elevação no nível dos oceanos, muda-se a legislação do uso do espaço do litoral. Mas não é a mesma coisa que desenvolver tecnologia para aterros, diques, saber o que mudar nos portos.

Então o Brasil não precisaria da transferência de tecnologia dos países ricos para os pobres?

Tecnologia não se transfere, se apropria. Ou você desenvolve ou compra tudo, inclusive a capacidade de depois replicar - se comprar bem. Esses aspectos da Convenção do Clima, que falam da transferência de tecnologia, foram os que menos avançaram desde 1992. Se os países ricos quiserem ajudar, têm de levar os pobres a desenvolverem suas próprias tecnologias.

Dá tempo de o Brasil desenvolver tecnologia a ponto de estarmos prontos para estas alterações?

Sim. As alterações que se prevêem até 2030 não são desprezíveis, porém ainda pequenas. E o ciclo de desenvolvimento tecnológico se acelerou muito: está entre cinco e dez anos. Isso permite ao Brasil se adaptar até 2030, quando teremos de 10 a 15 centímetros a mais na zona costeira - o que é bastante. O desafio maior é a dimensão, que não é normalmente enfrentada pelos órgãos públicos: cem anos. Não é muito diferente de planejar uma grande hidrelétrica. Mas, fora do setor produtivo, nunca se trabalhou numa escala tão grande. Será preciso uma profunda transformação cultural e institucional na maneira como se faz lei no Brasil e como governantes, deputados e vereadores encaram seus mandatos.

A política do IPCC

Sergio Abranches

A leitura política da segunda parte do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas é certamente mais negativa do que a ciência que ele contém. O relatório divulgado é uma versão política, feita em menos de 100 horas, de evidências científicas resultantes de anos de trabalhos de milhares de cientistas.

O fato de o segundo relatório do IPCC sobre os impactos da mudança climática global, adaptações e vulnerabilidades observados ser o mais grave já produzido é resultado apenas de investimento de capital científico ao longo dos anos no estudo do principal desafio global do século 21.

Representa um consenso avassalador e um alerta que chega a ser sóbrio diante do volume de evidências, especialmente das adaptações ecológicas ao aquecimento. Ele se sustenta a despeito e apesar das canetadas diplomáticas.

As dimensões políticas do relatório desse relatório são graves. Foram três dias e noites de tensas negociações entre diplomatas e cientistas. Uma leitura penosa, demorada e dificilmente justificável de um produto da ciência por censores políticos, que muitas vezes representavam apenas a visão minoritária de governos cuja legitimidade para decidir o que a humanidade pode ou não saber é no mínimo discutível.

Qual a legitimidade da monarquia absolutista dos Saud que deve sua longa vida ao petróleo, para determinar não só o que o povo da Arábia Saudita pode saber, mas todos os povos do mundo? Por que representantes do governo Bush devem ter direito de veto sobre a opinião científica, se a maioria da população do EUA se mostra mais consciente e mais preocupada com a mudança global? Um governo na última metade de seu segundo mandato, que sofre pesada investigação parlamentar por ter censurado relatórios de seus cientistas sobre o aquecimento global.

Repetiu-se em Bruxelas, em versão muito piorada, a queda de braço entre cientistas e políticos que havia sido denunciada por vários participantes da reunião de Paris, em fevereiro. Nas duas ocasiões, os cientistas foram forçados a aceitar uma versão mais aguada e "cautelosa", não para atender a interesses sinceros por maior eficácia na ação para mitigar a mudança climática e adaptar mais rapidamente as áreas mais vulneráveis a ela. Mas para fazer valer o interesse estreito e de curto prazo de governos específicos.

Está claro que esse modelo já passou de seus limites de eficácia. Nem a convenção do clima, nem o IPCC, serão instrumento à altura do desafio apontado pelos cientistas, se não forem radicalmente transformados, para assegurar a independência científica e definir limites precisos à interferência política nos resultados dos trabalhos técnicos científicos.

A atitude de muitas delegações, entre elas as do EUA e da China é um indicador preciso de que a política do clima está muito aquém da demanda por ação governamental suscitada pela evidência científica disponível.

A julgar-se por essa investida diplomática para impedir a plena divulgação das conclusões científicas, a disposição para adotar políticas de mitigação e adaptação com a extensão e intensidade recomendadas é, esta sim, desalentadora.

ESCASSEZ

A outra dimensão política grave do relatório é que ele aponta para um sistema sociopolítico de maior estresse e conflito, por causa do aumento da escassez de água e alimentos, das desigualdades entre regiões e dentro dos países, causadas pela mudança climática.

Indica um forçamento físico sobre os sistemas políticos que representará um enorme teste para a democracia e a paz. Creio que essas duas dimensões do contexto do relatório sobre mudança climática refletem um quadro político que inspira muito mais pessimismo e apreensão do que as evidências científicas em si.

Porque com essa atitude política, as previsões se tornarão uma profecia auto-realizável, um resultado inevitável da omissão política e de ações brutalmente insuficientes para evitar a catástrofe.

Sergio Abranches, é cientista político e diretor do site O Eco

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Em 2 de fevereiro, cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ligado às Nações Unidas, revelaram que o homem é responsável pelo aquecimento global, que traz efeitos colaterais que variam à medida que a temperatura média da Terra suba ao longo deste século, num processo irreversível. Ontem, em Bruxelas, o IPCC mostrou quantos e quão graves são estes efeitos. O cenário é o mais sombrio já projetado pelo grupo em quase 20 anos de atividade.

As populações mais pobres, estejam na África ou na Europa, são as mais vulneráveis. Milhares de pessoas já estão expostas à escassez de água e o número vai se converter em bilhão à medida que o aquecimento se agrave. As projeções sobre o impacto na saúde são imprecisas, mas é certo que o número de casos aumentará. Alterações são observadas nos ambientes terrestres e marinhos.

A produção de alimentos, num primeiro momento, pode ser beneficiada em latitudes mais altas. Contudo, o declínio é esperado após um acréscimo de 3oC na temperatura global em relação aos dias atuais. Além disso, a agricultura praticada em latitudes mais baixas sofrerá com variações bastante leves no clima - levando insegurança familiar a centenas de milhares de pessoas que vivem nestas áreas e dependem do cultivo de subsistência.

Com isso, regiões já assoladas pelo subdesenvolvimento sofrerão mais, pois a baixa capacidade econômica de adaptação se soma à força das alterações climáticas. Projetos de desenvolvimento sustentável podem não surtir efeito.

As transformações serão percebidas em todos os continentes e oceanos. Na América Latina, regiões semi-áridas vão ficar áridas e as nações que dependem da água que derrete dos Andes sofrerão com a falta do recurso. A região costeira pode sofrer erosão com a subida dos oceanos. O Brasil não é citado nominalmente, porém os modelos que indicam a tendência de savanização do leste da Amazônia, predominantemente brasileiro, foram confirmados pelo painel internacional.

Para a ministra brasileira Marina Silva, o relatório fortalece as posições da pasta do Meio Ambiente dentro do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ela diz que agora o problema não é mais somente técnico e científico, mas também econômico e social.

SÉRIES

O IPCC analisou dados coletados em cerca de 80 mil séries de estatísticas, componentes de 577 estudos realizados entre 1970 e 2004. O documento ainda classifica como "muito improvável" que as alterações climáticas sejam devidas exclusivamente a mudanças naturais da temperatura ou dos sistemas - seguindo a tendência de afastar questionamento dos céticos do aquecimento. Os números mais impressionantes - 1 bilhão de pessoas expostas à severa escassez de água e 600 milhões sujeitas à fome em razão de secas, à degradação dos ambientes e à salinização do solo - foram retirados da síntese divulgada ontem. Eles seguem impressos no relatório integral, de 1,4 mil páginas, mas não consta do resumo de 23 páginas voltado aos formadores de políticas públicas.

É neste ponto que emerge a grande controvérsia da reunião entre cientistas e delegações governamentais ao longo da última semana. O consenso científico duro e chocante, exposto em estatísticas no relatório de fevereiro, e que gerou reações de governos, organizações não-governamentais, imprensa e opinião pública, foi substituído por um tom mais ameno e menos preciso. E essa característica só veio à tona às 15h, horário local (12h em Brasília), com cerca de cinco horas de atraso em relação à previsão inicial dos organizadores.

O retardamento não foi acaso. A reunião técnica, que deveria ter se encerrado no início da noite de quinta na capital belga, estendeu-se pela madrugada e invadiu a manhã, avançando sobre o horário em que estava prevista uma entrevista, presenciada por centenas de jornalistas de todo o mundo. Às 10h18min, Rajendra Pachauri, coordenador do IPCC, improvisou, em pé, sobre uma cadeira de escritório, a declaração no saguão do Centro Carlos Magno, onde até poucos instantes antes transcorria o encontro. "Acabamos de concluir o relatório. Estou usando o mesmo terno de ontem, mas foi produtivo", disse, mantendo a aparência de harmonia, para reconhecer instantes depois: "Foi um exercício complexo, um documento difícil de se definir".

A razão: delegações políticas dos Estados Unidos, da China, da Rússia e da Arábia Saudita - países produtores de petróleo, gás ou em forte desenvolvimento econômico, e portanto grandes emissores de CO2, principal causador do efeito estufa - pleitearam a redução da ênfase terminológica. Designações como "muito provável", "provável" e "improvável" são chave para compreensão esforço científico e político que norteia os relatórios do painel e, assim, foram o alvo dos delegados governamentais. Talvez por ironia, a superficialidade do texto final se tornou flagrante em alguns pontos . Sobre o impacto do aquecimento global na América do Norte, por exemplo, o documento não traz efeitos negativos na economia da região e começa enumerando um efeito positivo: aumento de 5% a 20% da produção agrícola em determinados cultivos.

Saúde
600 milhões
de pessoas podem ser atingidas pela fome e pela desnutrição até o final do século como resultado das mudanças climáticas

Biodiversidade
20%
das espécies animais e vegetais, no mínimo, poderão ser extintas se a temperatura média do mundo subir entre 1,5oC e 2,5oC

Economia
4oC
de aquecimento na temperatura pode levar a uma perda média de 1% a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) global

Fenômenos extremos e menos qualidade de vida: é o novo clima
Capacidade produtiva do solo será reduzida a zero em novas regiões desérticas, entre outros efeitos adversos
Andrei Netto e Cristina Amorim, Bruxelas
Até 2050 o acesso à água potável e aos alimentos diminuirá, a capacidade produtiva do solo será reduzida a zero em novas regiões desérticas e oceanos sofrerão acidificação progressiva, com impacto na flora e fauna marinhas. Somada à maior concentração de CO2 na atmosfera, a nova geografia climática do planeta será marcada pela deterioração da qualidade de vida e fenômenos extremos, que ameaçarão o cotidiano do homem.

O que foi apresentado ontem, ao término de cinco dias de discussões intensas entre especialistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e representantes de diferentes países, em Bruxelas, está dividido em duas grandes linhas: o impacto geral e as conseqüências regionais. "O aquecimento global, causado pela atividade humana, tem provavelmente tido impacto perceptível em muitos sistemas físicos e biológicos", disse o britânico Martin Parry, doutor da Universidade de Westminster, co-responsável pelo grupo de trabalho.

O nível dos rios pode subir de 10% a 40% nas altas latitudes do planeta, e cair de 10% a 30% nas latitudes médias e nos trópicos, onde as regiões de seca serão mais comuns e mais inclementes que hoje. Em caso de elevação além de 3oC, a produção de alimentos cairá e a fome se agravará nas mesmas regiões.

Nas regiões costeiras, diz o relatório, "muitos milhões" de pessoas serão afetadas até 2080 por inundações, obras da elevação do nível dos oceanos. As tempestades tropicais vão se tornar mais freqüentes na Ásia, na África e nas pequenas ilhas do Caribe e do Pacífico. Os fenômenos extremos também trarão impacto à saúde de, mais uma vez, "milhões de pessoas". A desnutrição, desafio jamais vencido pela humanidade, ganhará impulso.

Sentido em todo o globo, o impacto do aquecimento global será mais inclemente na África, parte da Ásia e da América Latina - na maioria das nações mais pobres do mundo. Serão elas as mais afetadas em razão de sua baixa capacidade de investimento em tecnologias de adaptação - que podem consumir de 5% a 10% do PIB - e pela maior vulnerabilidade às transformações do clima.

Só na África, entre 75 milhões e 250 milhões de pessoas padecerão com a seca e a falta de água potável e a redução de até 50% da produção agrícola e da pesca por volta de 2020. Na Oceania e na Europa, os efeitos, menos claros e impiedosos, transformarão a geografia física, derretendo picos de neve nas montanhas ou gerando secas, incêndios e perda de biodiversidade no sul e no leste da Austrália e da Nova Zelândia por volta de 2030. Nas regiões polares, o impacto tantas vezes divulgado se confirma: derretimento das calotas polares, erosão costeira e extinção de espécies.

Uma interrogação se forma à medida que o relatório avança sobre dados da América do Norte. Vago, o texto diz que a produção de determinadas culturas agrícolas, notadamente a de grãos, pode crescer de 5% a 20%. Os efeitos nocivos são citados de forma breve: redução dos recursos hídricos, pestes, doenças, fogo florestal e inundações costeiras.

O Brasil sentirá com vigor os efeitos. Embora o relatório não cite países - evitando acentuar o grau político da discussão -, as regiões leste e norte da floresta amazônica podem virar savana, com vegetação rasteira.

LOBBIES

A quantificação da perda desta área até meados do século, presente no texto original, não aparece na síntese. "Não há dúvidas sobre a savanização da Amazônia", afirmou o argentino Osvaldo Canziani, um dos autores do relatório.

Os dados sobre as Américas ilustram o jogo de forças disputado até o último instante. Após o sucesso na divulgação sobre a física do aquecimento em fevereiro, o painel foi encurralado pela interferência política.

Delegações dos Estados Unidos, Rússia, China e Arábia Saudita insistiram na supressão de definições e dados. A frase "danos econômicos e perturbações substanciais de seu sistema socioeconômico e cultural", relativa à América do Norte, acabou apagada da versão final. A oposição a este grupo - formado por exportadores ou grandes consumidores de petróleo e gás - foi liderada por delegações da União Européia e por cientistas empenhados em um alerta mais enfático.

O resultado foi um cisma. Líderes do IPCC, como o coordenador Rajendra Pachauri, defenderam o resultado. "Estamos satisfeitos", disse. Outros cientistas pensam em rompimento com o painel.

Para Jean-Pascal van Ypersele, do Instituto de Geofísica Georges Lemaître, da Bélgica, a negociação foi o preço a pagar pelo consenso. "O importante é que o relatório, tal como está, é assinado por todos os governos presentes. E não se pode afirmar que haja exageros." Em relação ao relatório de fevereiro, quando governos se mostraram atentos às constatações científicas, o clima de Bruxelas mudou drasticamente.

Agricultura

1oC
de elevação de temperatura pode ser o suficiente para levar a uma queda de produção agrícola em regiões de menor latitude

Projeções de impacto na saúde são incertas
Sem estudo próprio, País não conhece vulnerabilidade
Giovana Girardi
As projeções sobre qual impacto o aquecimento global terá em relação à saúde das pessoas ainda são pouco precisas, principalmente quanto à incidência de doenças. Mas uma coisa é certa: a maior freqüência de eventos climáticos extremos como secas e inundações vai deixar populações hoje já vulneráveis em situações de fragilidade ainda maior, de acordo com o pesquisador brasileiro Ulisses Confalonieri, da Fiocruz, que participou do segundo grupo de trabalho do IPCC.

O problema, segundo ele, é que os estudos são pouco específicos sobre os países que provavelmente serão os maiores afetados pelas mudanças climáticas - os pobres e em desenvolvimento. "O grosso das pesquisas avaliadas no grupo 2 foi feito no Hemisfério Norte e traz detalhes sobre os impactos nesses países, como, por exemplo, o aumento das ondas de calor e das doenças respiratórias", diz.

"Mas as previsões sobre desnutrição, aumento de moléstias ligadas à água, como diarréias, ou transmitidas por vetores e conseqüências à saúde dos eventos extremos são muito genéricas. Não há dúvidas de que haverá esse impacto na população, mas exatamente quando, onde e como não se sabe."

A exceção, afirma Confalonieri, é em relação à malária na África, o que faz sentido visto que essa é a região onde a doença faz mais vítimas. Para o continente há modelos específicos, mas suas conclusões são conflitantes. "Um diz que as áreas montanhosas ficarão mais suscetíveis ao mosquito. Com o aumento da temperatura, haveria condições climáticas para ele ocupar espaços que não ocupava. Mas o outro modelo não observou nada disso. A conclusão é: espera-se um efeito misto; em alguns lugares a malária pode aparecer, porque o mosquito migra, e em outros pode desaparecer porque se tornam muito secos, inviáveis para ele."

Para a região amazônica, que também é afetada pela doença, no entanto, não existem projeções específicas, só modelos globais. "Só que quanto mais abrangente for a a escala, mais incerto o trabalho é e acaba não servindo para gerar políticas públicas de saúde", pondera.

Quanto ao temor de que a doença se espalhe pelo resto do País com aumento das temperaturas, Confalonieri diz que é bobagem: "A malária não vai descer para São Paulo por causa de 1oC ou 2oC a mais. A reintrodução no Estado ocorre o tempo todo com pessoas que chegam doentes da Amazônia. Mas tratou, acabou. Com a urbanização houve extinção dos criadouros. Agora é claro que se houver uma migração em massa de gente doente, aí haverá um problema. Mas só pelo calor não."

Para o pesquisador, a maior preocupação do Brasil e de outros países em desenvolvimento deve ser em torno da escassez de água. Para as regiões tropicais o IPCC projeta indisponibilidade de alimentos. Isso deve afetar as populações que vivem da agricultura de subsistência. "Se o modelo do Inpe que prevê aumento de aridez no Nordeste se concretizar, a seca vai tornar a região inviável para milhares de pessoas, que vão migrar para o litoral e o Sul."

Isso pode gerar um impacto enorme na demografia, na economia, na segurança e principalmente nos serviços públicos de saúde. "Dependendo da velocidade desse movimento, podemos ter uma redistribuição de doenças endêmicas que serão carregadas pelos migrantes."

Por outro lado, mais chuvas e inundações podem causar uma explosão de doenças relacionadas à água e aumento da vulnerabilidade de áreas que hoje já são frágeis em grandes centros urbanos. O problema, diz, é que o Brasil nem sequer sabe ainda quais são essas áreas mais vulneráveis. "Precisamos urgentemente dos nossos próprios modelos climáticos."

'Caixa preta' está se abrindo, diz Marina
Para ministra, relatório fortalece posição no governo
Leonencio Nossa, BRASÍLIA
Mesmo dizendo que "a vida não fica mais fácil", a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, reconhece que os relatórios da ONU sobre a situação do meio ambiente no mundo fortalecem as posições da pasta nos debates internos do governo. Em entrevista ao Estado, após a divulgação do segundo relatório do IPCC, a ministra admitiu que a pressão da opinião pública tem peso, o que tem levado o presidente Lula a pedir informações para enfrentar o debate ambiental em fóruns internacionais.

Numa sessão do filme Uma Verdade Inconveniente, do ex-vice presidente americano Al Gore, no Palácio da Alvorada, duas semanas atrás, Lula acertou com Marina a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento das Mudanças Climáticas. Segundo ela, o governo vai consolidar ações em andamento, adicionar propostas e rebater críticas externas de que o Brasil não estaria fazendo o "dever de casa" na questão do aquecimento global. Lula quer apresentar o plano no próximo encontro da cúpula do G-8, em junho, na cidade alemã de Heiligendamm. O Brasil é um dos cinco países em desenvolvimento convidados para o evento. A seguir, trechos da entrevista.

CAIXA PRETA

Quatro cientistas brasileiros participaram da elaboração do relatório da ONU. O problema apresentado é o que de fato está acontecendo. O aquecimento já é uma realidade há muito tempo para quem lida com a questão ambiental. O conteúdo da caixa preta do clima está se tornando público. Temos de nos adaptar e enfrentar o processo.

PRESSÃO DOS RICOS

O bom desses relatórios é que são feitos por pesquisadores com independência para apresentar suas conclusões à comunidade internacional. Não se pode tampar o sol com a peneira. Seria uma irresponsabilidade não se preocupar com o que pode ocorrer nos próximos anos. Isso não vai acontecer só daqui a décadas. O problema já atinge os seus filhos. Não queremos cometer os mesmos erros de países ricos, não queremos ter os mesmos direitos de destruição.

FORÇA NO GOVERNO

Neste momento, o setor ambiental tem responsabilidade grande, porque agora não se trata apenas de um problema técnico ou científico, mas de um problema econômico e social. Os segmentos estão se envolvendo, criando na opinião pública internacional um processo de alavancagem positiva do assunto nas políticas públicas e setores empresariais. Ganham força ações que vêm sendo feitas.

VIDA DE MINISTRA

Eu não iria por esse discurso (que ela passou a ter mais força no governo). Não é fácil a vida de nenhum ministro. É algo complexo. Fico feliz que tenhamos conseguido implantar um Plano Nacional de Combate ao Desmatamento.

CLIMA

O presidente Lula está sensibilizado. Em alguns meses poderemos apresentar um Plano Nacional de Enfrentamento das Mudanças do Clima, é assim que estou chamando. A Casa Civil poderá coordenar o trabalho, que juntará ações de diversos ministérios. O Brasil já tem um plano de biocombustível, de recursos hídricos e de combate ao desmatamento e à desertificação. Tudo isso que fizemos poderá ser juntado no plano do clima, e adicionaremos novas medidas. O plano não começa do zero.

DEVER DE CASA

Quando ele (Lula) foi para os Estados Unidos, no final de março, nos pediu que juntássemos as propostas de combate ao desmatamento. E na reunião do G-8+5, em junho, ele pretende enfatizar a questão do clima e propor medidas. Temos de liderar pelo exemplo. Quando o Brasil critica os países desenvolvidos na área ambiental não estamos fazendo discurso de retórica. Nos últimos dois anos, por exemplo, reduzimos a emissão de CO2 em 51%, o que representou 15% do que todos os países desenvolvidos deveriam reduzir no período.

REPERCUSSÃO

Jacques Chirac
Presidente francês

"A luta contra a mudança climática é uma das urgências absolutas de nosso tempo"

Ban Ki-moon
Secretário-geral da ONU

"Medidas adequadas podem aliviar algumas das piores
conseqüências"

Angela Merkel
Primeira-ministra alemã

"O relatório dos especialistas confirma que a mudança
climática é um fato"

Stavros Dimas
Comissário europeu do clima

"É urgente que se alcance um acordo mundial para reduzir a emissão dos gases-estufa"

James Connaughton
Conselheiro dos EUA

"O relatório insiste no que o presidente Bush vem dizendo, da gravidade desse desafio"

Paisagens do País serão alteradas
Floresta tropical úmida cederá lugar a vegetação rasteira, como na África
Andrei Netto e Ligia Formenti, Bruxelas
Em 2050, a geografia brasileira será bastante distinta da que conhecemos hoje. O resultado mais visível do aquecimento global na região em que o Brasil está situado deve ser a substituição progressiva da floresta tropical úmida, a Amazônia, por uma espécie de vegetação menos rica e estável que a savana, a vegetação rasteira da África e semelhante ao cerrado.

O relatório final do Grupo Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado na tarde de ontem, não aborda o quanto deverão ser elevadas as temperaturas para que a substituição se efetive, mas especialistas estimam que a variação de 2oC a 3oC poderá ser determinante para perdas que poderão variar de 30% a 60% da floresta. A alteração teria como efeito a redução drástica da biodiversidade. Hoje, ao menos 40 mil espécies vegetais e 427 de animais são classificadas na região.

As alterações na floresta também teriam impactos na estrutura hidrológica da região, um fator de equilíbrio do clima em toda a América Latina. A redução da cobertura vegetal reduzirá a emissão de umidade, alterando a freqüência e a intensidade das chuvas em grande parte do continente. Com isso, o nível dos rios também sofrerá rebaixamento e um volume menor de água doce desaguará no Oceano Atlântico, modificando a correlação de correntes marítimas, que também induzem a formação de massas de ar.

Para o climatologista brasileiro Carlos Nobre, autor de projeções sobre a savanização, a inclusão deste texto "reforça ainda mais as políticas públicas para Amazônia" e amplia a responsabilidade pela conservação do bioma. "Não adianta somente reduzir o desmatamento."

Além da Amazônia, o relatório do IPCC cita a tendência à desertificação das regiões semi-áridas da América do Sul, a exemplo do sertão nordestino. As novas áreas secas e semi-áridas sofrerão de salinização do solo e perderão em capacidade produtiva, ampliando o risco à segurança alimentar.

Com redução dos recursos hídricos, desde acesso à água potável e irrigação até a exploração energética de grandes bacias , o colapso em uma sociedade não adaptada seria não apenas social, mas também econômico. Enquanto regiões ao norte e ao nordeste brasileiro sofreriam com a seca, os centros urbanos litorâneos passariam a enfrentar risco de cheias e inundações imprevisíveis.

EMBAIXADOR

O Ministério das Relações Exteriores escolheu o embaixador que será designado para tratar de assuntos relacionados ao aquecimento global. A função será exercida pelo embaixador Sérgio Serra, que está em processo de desligamento da embaixada do Brasil em Wellington (Nova Zelândia). Ainda não está definido, no entanto, quando Serra assumirá o posto.

A designação de Serra para o cargo é um reflexo da atenção crescente que o País vem dispensando ao assunto, que agora também passa por questões estratégicas como economia e transferência de tecnologias.

'Vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto?'
Para pesquisador, Brasil perdeu tempo e agora
deve correr e se preparar para alterações causadas pelo aquecimento global

Entrevista: Carlos Nobre, climatologista

Cristina Amorim
O climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi um dos primeiros cientistas brasileiros a falar abertamente sobre efeitos do aquecimento global no País - antes mesmo de o problema ser diagnosticado como um caminho sem volta. Hoje revisor do capítulo sobre impactos na América Latina no relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), e chamado constantemente a Brasília para explicar a ciência do clima, ele afirma que o Brasil precisa correr para se adaptar a uma nova configuração da Terra.

Existe algum movimento interno para que projetos brasileiros de adaptação sejam levados adiante?

Só a partir deste relatório do IPCC começou-se a discutir. Temos algumas iniciativas, muito incipientes, mas pelo menos o jogo começou. No sentido político, o presidente Lula solicitou ao Ministério do Meio Ambiente um Plano Nacional de Combate às Mudanças Climáticas. Seria transversal e procuraria duas coisas. Primeiro, preparar o País para as mudanças climáticas, ou seja, adaptação ao inevitável. A outra perna é mitigação das emissões, para o Brasil se juntar aos esforços mundiais e aproveitar vantagens econômicas que se apresentam para este esforço. A mitigação avançou, pois vem no bojo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, então haveria uma aceleração da questão. No quesito adaptação, estamos na infância.

Algum país está mais avançado?

Vários. Todos os países desenvolvidos trabalham a questão.

Por dinheiro sobrando ou percepção da gravidade do problema?

Começa com a percepção. No caso da Europa Ocidental, eles não precisaram do 4o relatório do IPCC para serem convencidos de que é um problema sério e de longo prazo. Inglaterra e Holanda estão implementando seus planos. No Brasil, vejo duas iniciativas. Dentro da Embrapa, essa discussão começou no ano passado para adaptar a agricultura brasileira - porém, ainda de maneira tímida, sem escala e experimentação. E, na semana retrasada, em uma reunião promovida pelo Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, começou a se discutir o que acontecerá no Rio. É muito pouco para um País com 180 milhões de habitantes.

Por que a demora?

Nas negociações da Convenção do Clima, o Brasil sempre teve a postura de chamar os países desenvolvidos à sua responsabilidade histórica. Filosoficamente é correto, pois não se resolve o problema das mudanças climáticas só com adaptação, temos também de reduzir emissões. O que faltou foi fazer a lição de casa. Houve uma confusão conceitual no seguinte sentido: avançar muito na área da adaptação seria o mesmo que jogar a toalha. "Não vai ter jeito mesmo, então vamos partir para a adaptação." Quinze anos atrás talvez a gente tivesse pouca certeza sobre impactos, mas a indefinição ficou velha.

Falta dinheiro?

Faltam programas de fomento para estudo sobre impacto e vulnerabilidade. O Brasil é mais atrasado do que muitos países em desenvolvimento porque não houve a promoção pelos órgãos de financiamento, que não tinham agenda nesta área. Estes estudos são raríssimos e o Brasil não os fez até hoje. Vai adaptar o quê, se não sabe qual é o impacto?

O País realmente precisa de um investimento nesta área?

O Brasil é, pelos indícios, muito vulnerável. Tem uma economia baseada em recursos naturais, que depende do clima, do solo, da água. E apresenta índices de pobreza e desigualdade extremamente altos. É certo e líquido que sempre os mais vulneráveis são os mais pobres.

Há tempo para desenvolvermos nossa própria base de dados ou teremos de importar conhecimento e tecnologia de outras nações?

Os estudos de impacto podem ser feitos no Brasil. É só colocar recursos e induzir essa área do conhecimento que a comunidade cientifica responderá. Há preocupação no aspecto tecnológico. Sem saber os impactos, não se sabe quais tecnologias modernas devem ser agregadas. E, portanto, perde-se a corrida tecnológica dos países que estão na frente na adaptação. Quando os estudos mostrarem nossas vulnerabilidades, alguém de fora pode sim nos vender a solução. Somos melhores cientistas do que engenheiros, para usar um termo genérico para pessoas que encontram soluções práticas. Precisamos de mais do que elaborar políticas públicas. Por exemplo, quanto à elevação no nível dos oceanos, muda-se a legislação do uso do espaço do litoral. Mas não é a mesma coisa que desenvolver tecnologia para aterros, diques, saber o que mudar nos portos.

Então o Brasil não precisaria da transferência de tecnologia dos países ricos para os pobres?

Tecnologia não se transfere, se apropria. Ou você desenvolve ou compra tudo, inclusive a capacidade de depois replicar - se comprar bem. Esses aspectos da Convenção do Clima, que falam da transferência de tecnologia, foram os que menos avançaram desde 1992. Se os países ricos quiserem ajudar, têm de levar os pobres a desenvolverem suas próprias tecnologias.

Dá tempo de o Brasil desenvolver tecnologia a ponto de estarmos prontos para estas alterações?

Sim. As alterações que se prevêem até 2030 não são desprezíveis, porém ainda pequenas. E o ciclo de desenvolvimento tecnológico se acelerou muito: está entre cinco e dez anos. Isso permite ao Brasil se adaptar até 2030, quando teremos de 10 a 15 centímetros a mais na zona costeira - o que é bastante. O desafio maior é a dimensão, que não é normalmente enfrentada pelos órgãos públicos: cem anos. Não é muito diferente de planejar uma grande hidrelétrica. Mas, fora do setor produtivo, nunca se trabalhou numa escala tão grande. Será preciso uma profunda transformação cultural e institucional na maneira como se faz lei no Brasil e como governantes, deputados e vereadores encaram seus mandatos.

A política do IPCC

Sergio Abranches

A leitura política da segunda parte do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas é certamente mais negativa do que a ciência que ele contém. O relatório divulgado é uma versão política, feita em menos de 100 horas, de evidências científicas resultantes de anos de trabalhos de milhares de cientistas.

O fato de o segundo relatório do IPCC sobre os impactos da mudança climática global, adaptações e vulnerabilidades observados ser o mais grave já produzido é resultado apenas de investimento de capital científico ao longo dos anos no estudo do principal desafio global do século 21.

Representa um consenso avassalador e um alerta que chega a ser sóbrio diante do volume de evidências, especialmente das adaptações ecológicas ao aquecimento. Ele se sustenta a despeito e apesar das canetadas diplomáticas.

As dimensões políticas do relatório desse relatório são graves. Foram três dias e noites de tensas negociações entre diplomatas e cientistas. Uma leitura penosa, demorada e dificilmente justificável de um produto da ciência por censores políticos, que muitas vezes representavam apenas a visão minoritária de governos cuja legitimidade para decidir o que a humanidade pode ou não saber é no mínimo discutível.

Qual a legitimidade da monarquia absolutista dos Saud que deve sua longa vida ao petróleo, para determinar não só o que o povo da Arábia Saudita pode saber, mas todos os povos do mundo? Por que representantes do governo Bush devem ter direito de veto sobre a opinião científica, se a maioria da população do EUA se mostra mais consciente e mais preocupada com a mudança global? Um governo na última metade de seu segundo mandato, que sofre pesada investigação parlamentar por ter censurado relatórios de seus cientistas sobre o aquecimento global.

Repetiu-se em Bruxelas, em versão muito piorada, a queda de braço entre cientistas e políticos que havia sido denunciada por vários participantes da reunião de Paris, em fevereiro. Nas duas ocasiões, os cientistas foram forçados a aceitar uma versão mais aguada e "cautelosa", não para atender a interesses sinceros por maior eficácia na ação para mitigar a mudança climática e adaptar mais rapidamente as áreas mais vulneráveis a ela. Mas para fazer valer o interesse estreito e de curto prazo de governos específicos.

Está claro que esse modelo já passou de seus limites de eficácia. Nem a convenção do clima, nem o IPCC, serão instrumento à altura do desafio apontado pelos cientistas, se não forem radicalmente transformados, para assegurar a independência científica e definir limites precisos à interferência política nos resultados dos trabalhos técnicos científicos.

A atitude de muitas delegações, entre elas as do EUA e da China é um indicador preciso de que a política do clima está muito aquém da demanda por ação governamental suscitada pela evidência científica disponível.

A julgar-se por essa investida diplomática para impedir a plena divulgação das conclusões científicas, a disposição para adotar políticas de mitigação e adaptação com a extensão e intensidade recomendadas é, esta sim, desalentadora.

ESCASSEZ

A outra dimensão política grave do relatório é que ele aponta para um sistema sociopolítico de maior estresse e conflito, por causa do aumento da escassez de água e alimentos, das desigualdades entre regiões e dentro dos países, causadas pela mudança climática.

Indica um forçamento físico sobre os sistemas políticos que representará um enorme teste para a democracia e a paz. Creio que essas duas dimensões do contexto do relatório sobre mudança climática refletem um quadro político que inspira muito mais pessimismo e apreensão do que as evidências científicas em si.

Porque com essa atitude política, as previsões se tornarão uma profecia auto-realizável, um resultado inevitável da omissão política e de ações brutalmente insuficientes para evitar a catástrofe.

Sergio Abranches, é cientista político e diretor do site O Eco

OESP, 07/04/2007, Especial, p. H1-H4

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