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Educação Escolar Indígena: entre a lei e a prática

Cimi -Brasília-DF
10 de Dez de 2003

Reunida durante os dias 06 a 10 de dezembro de 2003, em Luziânia-GO, a Articulação Nacional de Educação do Conselho Indigenista Missionário - ANE/Cimi, refletiu sobre a situação da Educação Escolar Indígena enquanto política desenvolvida pelo Estado brasileiro junto aos povos indígenas. Diante do diagnóstico apresentado pelos Regionais que acompanhamos, que revelou um caótico quadro de ações por um lado, fragmentadas e por outro, verticalizadas, sentimo-nos na obrigação de vir a público apresentando as seguintes denúncias, uma vez que esses fatos demonstram um grave desrespeito aos direitos assegurados pela legislação vigente no país.

Aplicabilidade da resolução 03/99 - CEB/CNE

Decorridos três anos desde a publicação desta resolução, grande parte dos Estados brasileiros ainda não regulamentou a categoria de Escola Indígena e nem incorporou efetivamente estas escolas aos seus sistemas de ensino, garantindo a especificidade que lhes é própria.

Mesmo naqueles em que ocorreu a estadualização das escolas, a participação das comunidades não foi contemplada como prescreve a Resolução, acontecendo pseudoconsultas, como no caso de Mato Grosso, onde a SEDUC enviou uma carta às comunidades, perguntando se queriam que as escolas ficassem nas esferas estadual ou municipal.

A grave situação que decorre do fato de os Estados não assumirem suas responsabilidades se reflete na condição de a imensa maioria das escolas indígenas estarem submetidas ainda à esfera municipal. Isso faz com que as secretarias municipais de educação imponham modelos de currículos, calendários, gestão, formas de avaliação, etc, iguais aos das escolas não-índias, como transpareceu no estarrecedor relato da situação vivida pelos povos indígenas da região de Altamira, PA, num total desrespeito ao princípio da autonomia estabelecido pela legislação. Situação mais dramática ainda é a vivenciada pelas escolas indígenas consideradas como "salas anexas" da escola pólo da cidade mais próxima que ficam completamente submetidas às imposições da direção não índia da escola.

As exigências burocráticas das escolas dos não índios, tais como boletins, diários, folhas de presença, etc, são transferidas para as escolas indígenas.

Continua a situação dos alunos indígenas só terem escolas nas aldeias até a primeira fase do ensino fundamental. Para continuarem os estudos os/as alunos/as indígenas precisam se deslocar para cidade mais próxima onde ficam expostas/os a vários tipos de problemas que vão desde a discriminação, alcoolismo, doenças venéreas até o distanciamento de sua realidade sócio-cultural.

A situação dos professores e professoras indígenas
É de total perplexidade a situação dos professores e professoras indígenas que, diante da não regularização da sua situação profissional, vêem seus direitos trabalhistas usurpados, sendo submetidos a contratos temporários, sem direito a férias remuneradas, nem décimo terceiro e outros direitos assegurados aos demais trabalhadores da educação. Esta insegurança faz com que fiquem submetidos à vontade dos políticos de plantão, que usam de coerção e/ou cooptação utilizando os cargos como instrumentos de barganha política. Assim, muitos professores/as vêem seus anos de trabalho e dedicação serem sugados pelo descaso do poder publico.

Há situações onde os concursos públicos para preencher as vagas nas escolas indígenas não são realizados de acordo com os preceitos da legislação vigente, como, por exemplo, o caso da Prefeitura de Parintins-AM que ao realizar recentemente um concurso permitiu que fossem inscritos índios e não-indios, resultando que metade das vagas fossem ocupadas por professores não indígenas em escolas indígenas.

Em muitos Estados não existem políticas de formação específica, inicial e continuada, para professores/as indígenas, que atenda às demandas da educação escolar nos diversos povos. Os que conseguiram realizar cursos de magistério indígena como os casos do MT, MG, AM, MS, AC, MA seus projetos encontram-se paralisados ou com sérias limitações financeiras para desenvolver as ações planejadas. O que vem acontecendo efetivamente é a realização de processos descontínuos, as chamadas "capacitações", que não contribuem para uma prática pedagógica condizente com as realidades culturais dos diversos povos envolvidos. Além disso, as pessoas que vão ministrar essas capacitações, via de regra, são despreparadas para trabalharem com a diversidade cultural.

Outro problema que decorre da formação ser entendida apenas como capacitações ocasionais é a falta de uma terminalidade dos cursos que assegurem titulação, e isso faz com que os/as professores/as indígenas fiquem sempre numa situação de inferioridade frente aos/as não índios/as, inclusive no que se refere aos ganhos salariais.

A rede física

A despeito da exigência legal em ter prédios escolares construídos na perspectiva cultural dos povos indígenas, o que verificamos é uma rede física nos modelos de escolas rurais, muitas vezes deterioradas ou construídas sob critérios das salas padrões Fundescola. Na grande maioria dos casos, as crianças indígenas estão estudando em escolas muito precárias, sem bibliotecas, sem sanitários, sem salas de secretarias, etc.

O quadro fica ainda mais preocupante diante dos desvios de verbas que se tem verificado em muitos municípios, cujos prefeitos utilizam o dinheiro das construções escolares para outros fins.

Mecanismos de controle social
Mesmo que a legislação garanta que a participação dos povos indígenas nos diversos processos educacionais seja requisito para definição e execução da política pública de educação, o que encontramos é a ausência de mecanismo de controle que funcionem e garantam a participação efetiva dos povos indígenas. Os NEEIs - Núcleos de Educação Escolar Indígena - instâncias de reflexão e proposição sobre os processos de escolarização dos indígenas encontram-se inativos na maioria dos Estados. Por outro lado, naqueles em que há os Conselhos Estaduais de Educação Escolar Indígena, a sua composição repete os mesmos modelos e obedece aos mesmos critérios dos conselhos existentes em nossa sociedade. Dessa forma, a real participação dos representantes dos povos fica bastante limitada, primeiro porque nunca todos os povos de um Estado são representados; segundo, porque a definição de paridade entre os membros índios e não índios no Conselho não assegura os direitos das minorias étnicas. Não se pode tratar de maneira igual direitos de pessoas secularmente discriminadas.

Constatamos ainda, que o fato de as pautas virem sempre prontas e em português, além de desrespeitar os direitos lingüísticos dos povos indígenas, compromete também a efetiva participação dos seus representantes, que, na maioria das vezes, se limitam a ouvir a discussão dos não-indios. Acresce-se a isso o fato de que os assuntos levados pelos conselheiros indígenas não são considerados nas discussões, pois as pautas preparadas previamente são muito extensas e nunca sobra tempo para os assuntos trazidos das aldeias. Além disso, a falta de recursos para garantir o funcionamento dinâmico desses conselhos impossibilita o cumprimento de seu papel e de sua agenda.

Financiamento da Educação Escolar Indígena

Nos orçamentos estadual e municipal não há rubrica específica destinada à manutenção da educação escolar indígena. Isso faz com que "as sobras" do que se gasta com as escolas dos não índios é que são destinadas para as escolas indígenas. Como não há rubrica própria, as secretarias se limitam a fazer projetos para o MEC. Caso não sejam aprovados ou de atraso de verbas, os Estados ficam sem implementar nenhuma ação, alegando sempre falta de recursos.

As escolas indígenas, para participarem do Programa Dinheiro Direto na Escola, necessitam se submeter aos mesmos critérios das escolas não indígenas. O número de alunos, a criação de Unidades Executoras, as prestações de contas extremamente complexas, são fatores que dificultam o acesso das comunidades indígenas a esse programa do governo.

No que se refere à produção de material didático específico, esse programa de responsabilidade do MEC encontra-se paralisado. Estranha-nos, sobretudo, o fato da Coordenação de Apoio às Escolas Indígenas do MEC estar apenas empreendendo esforços no sentido de fazer chegar às escolas indígenas livros didáticos destinados às escolas dos não índios.

Conclusão

Diante desse quadro reafirmamos que o modelo de administração pública do Estado brasileiro tem se mostrado ainda muito inerte para atender as necessidades da educação escolar indígena no Brasil. Para sair dessa inércia propomos uma elaboração de um sistema próprio de educação que respeite a diversidade territorial, lingüística, as pedagogias próprias dos povos, suas formas de organizar, sistematizar, registrar saberes, e também suas regras e normas administrativas.

Só a existência de um sistema próprio para tratar da educação escolar indígena desde a educação básica até ao ensino superior poderá efetivamente garantir os princípios da especificidade, diferenciação e autonomia, subvertendo o modelo de escola colonialista e homogeneizadora.

Resgatar a divida social para com os povos indígenas é resgatar a nossa própria história e dignidade e esse governo tem a oportunidade única de não repetir os erros de um passado não muito distante.

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