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Autor: Luiza Greenhalgh Jungmann
03 de Nov de 2024
Ecocídio e genocídio privados na Terra Indígena Yanomami
Luiza Greenhalgh Jungmann
3 de novembro de 2024, 6h31
O Instituto Socioambiental aponta: 80% das áreas mais preservadas no mundo estão em territórios indígenas [1].
Em tempos de emergência climática, e considerando que a Terra indígena Yanomami (TIY), localizada em áreas do Amazonas e de Roraima, é o maior território indígena do Brasil e do mundo, a conclusão não poderia ser outra que não agradecermos os yanomami por terem mantido, a duríssimas penas, a maior quantidade de floresta em pé possível em seu território demarcado pelo Estado brasileiro em 1992.
Ocorre que referido agradecimento (e respeito mínimo) não ocorre, pelo contrário: os yanomami, que tiveram seu primeiro contato com outras etnias entre 1910 e 1940, desde os anos 1970 de ditadura militar convivem com uma violência gananciosa pelas jazidas minerais na sua região: apelidada de "Corrida do Ouro", essa exploração chegou a ser tão rápida que, já entre 1987 e 1990, havia cinco vezes mais garimpeiros na terra yanomami do que seus residentes [2].
Com a demarcação da TIY na década de 1990, o garimpo (agora incontestavelmente ilegal) diminuiu, mas, no início do século 21, com o chamado Massacre de Haximu, único crime reconhecido como genocídio pela Justiça brasileira [3], e entre os anos de 2018 a 2022 de Bolsonaro, o garimpo passou a matar os yanomami como nunca: matou ainda mais os residentes que protegem esse importante território, pois os rios e os peixes, fonte de sua subsistência, foram contaminados com mercúrio (material usado para separar e obter o ouro ali encontrado).
A Fiocruz apontou os riscos do mercúrio no organismo humano: pode afetar o cérebro, o sistema nervoso central, danificar os rins, fígado e sistema cardiovascular, aumentar a pressão arterial e provocar infarto [4]. Nas crianças e gestantes, os danos podem ser irreversíveis, pois o mercúrio ultrapassa a placenta e atinge o feto, podendo causar abortamento e deformidade, além de retardo no neurodesenvolvimento dos bebês [5].
O garimpo ilegal desestabilizou socialmente os yanomami, pois, nos últimos anos, cooptou jovens indígenas, prometendo itens como celulares e armas aos mesmos, e violentou mulheres, algumas tragicamente negociadas em troca de cachaça. Além disso, roças dos yanomami foram invadidas por garimpeiros, deixando famílias sem alimentos [6], e os animais de caça passaram a fugir mais por conta barulho das máquinas do garimpo - barulho este que não deixa os indígenas dormirem [7].
Provocada por um parasita e transmitida a humanos por mosquitos, a malária também aumenta quando há mais garimpo ilegal na TIY, com graves riscos ao fígado das crianças: e isso porque o garimpo altera o meio ambiente pela mineração a céu aberto e com buracos, facilitando a multiplicação de criadouros de mosquitos [8].
Neste cenário, é igualmente horrível saber pelo Ministério Público Federal que, em novembro de 2022, medicamentos adquiridos com recursos públicos para o tratamento de malária estavam sendo desviados e vendidos por garimpeiros na TIY, a qual sofria ainda mais por receber cerca de 90 remédios essenciais abaixo da quantidade declarada ao poder público pela empresa de saúde contratada (evidentemente corrupta), resultando no aumento do tratamento de casos de média e alta complexidade entre os indígenas [9].
Garimpo ilegal e revenda
Outra página deplorável na história do garimpo ilegal na TIY é que investigações mostram que quem tem lucrado com essa atividade são empresas com faturamentos milionários e bem distantes de Roraima, estado de onde são extraídos ouro e cassiterita.
No caso do ouro, tais empresas supostamente compram os minérios obtendo uma declaração falsa de que suas aquisições foram legais, promovem a mistura desse material com ouro legal em refinarias, e o produto dessa operação é revendido na ponta para empresas como Google, Apple, Microsoft e Amazon, já que tais minérios estão presentes em joias, filamentos de celulares, computadores e câmeras.
As maiores empresas/elos dessa cadeia acabam saindo impunes de suas ações, pois a Lei 12.844/13 que regula a aquisição e o transporte do ouro no país determina que é de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas, presumindo-se a boa-fé da empresa compradora [10].
No caso da cassiterita, supostamente revendida na ponta para gigantes como a Disney, Amazon e Starbucks, o método é semelhante, com a "lavagem" do minério ilegal, havendo a venda do mesmo a uma mineradora, para somente então chegarem às poderosas transnacionais [11].
Importante ressaltar que tal caso ocorreu no atual governo Lula, o qual, muito embora tenha conseguido a desintrusão de mais de 85% do garimpo ilegal na TIY no primeiro semestre de 2023, ainda não conseguiu retirar os garimpeiros mais violentos (ligados a grupos armados que se instalaram na área), havendo, ademais, informações de que alguns garimpeiros voltaram ao território desde então, ante à redução da atividade de controle Estado (sobretudo das Forças Armadas) [12].
Cerne da tragédia
A pequena amostra dos casos corporativos de revenda de minérios ilegais na TIY nos provoca a pensar, em primeiro lugar, que a legislação brasileira precisa mudar, para que todos os elos de uma cadeia de valor tenham a obrigação de respeitar os direitos humanos e o meio ambiente, prestem conta das suas atividades (informando inclusive quem são seus fornecedores), e sem que leis setoriais isentem a responsabilidade de importantes atores (sobretudo atores com poder político e econômico e que podem usar este poder para os fins mais egoísticos, voltados à exploração de pessoas e da natureza). Um Marco Nacional de Empresas e Direitos Humanos é imperioso, portanto, e a expectativa neste sentido é que o PL 572/2022 entre em vigor o quanto antes!
A amostra da atuação da iniciativa privada e o relato social acima nos fazem concluir, ainda, que o garimpo ilegal é o cerne do genocídio e do ecocídio na TIY, precisando haver a erradicação total dessa atividade e a punição das autoridades ou ex-autoridades do poder público que de qualquer maneira o permitirem/permitiram ou, - o que é ainda pior -, o incentivem/incentivaram. Note-se, neste sentido, que se considerarmos um período de 37 anos (1985-2022), 62.3% de todo o garimpo existente em terras indígenas na Amazônia foi aberto em apenas cinco anos (entre 2018 e 2022) [13], o que indica que o governo Bolsonaro contribuiu consideravelmente para a tragédia narrada neste artigo.
Deixam claro que a demarcação da TIY não está sendo respeitada, razão pela qual o Estado precisa estar presente de forma permanente na fiscalização dessa área, a qual é, repita-se, de importância crucial para o equilíbrio climático do mundo.
'Corpo mole' dos militares e adoecimento da floresta
O conteúdo acima nos faz indagar, ainda, se as Forças Armadas brasileiras estão realmente comprometidas com o combate ao garimpo legal, já que havia militares contra a demarcação da TIY nos anos 90, e há militares que desmobilizaram o posto para o abastecimento de aeronaves do Ibama, órgão que passou a fazer o controle aéreo do garimpo na região, ante a alegado "corpo mole" da corporação frente até mesmo ao seu chefe (o presidente Lula) [14], por exemplo.
Nos faz pensar finalmente que, para responsabilizar atores pelo ecocídio na TIY e pelo genocídio aos yanomami, é preciso considerar o quase inimaginável sofrimento das vítimas yanomami, as quais, nos últimos anos, ora foram contaminadas por mercúrio, ora tiveram sua base alimentar subtraída, ora contraíram malária, ora tiveram as suas seguranças ameaçadas ou vidas ceifadas, mas todas sofreram ou sofrem pela brutal violência de ver seu território, constitucionalmente protegido - e essencial para a manutenção de seus costumes, língua, crenças, tradições e perpetuação de saberes-, invadido pelo garimpo ilegal.
Neste sentido, a floresta onde residem (e que para os yanomami é uma entidade viva), está adoecendo a olhos vistos junto com eles, mas por uma doença (a ganância) de outros, sendo que todas as pessoas do planeta as padecerão pela supressão dela. É muita dor, de um lado, e estupidez, de outro.
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[1] Instituto Socioambiental, Podcast Vozes do Clima, Episódio 1 referente aos Povos Indígenas.
[2] Instituto Socioambiental, Povos Indígenas no Brasil. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami
[3] MAIA, Luciano Mariz. Foi genocídio! Instituto Socioambiental, set 2000. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_verbetes/yanomami/foi_gen…
[4] SOUZA, JESSÉ. Nova pesquisa apontará extensão da contaminação do mercúrio nos rios de Roraima. Folha de BV, 28 ago 2024. Disponível em: https://www.folhabv.com.br/colunas/nova-pesquisa-apontara-extensao-da-c….
[5] PALHARES, Isabela. Contaminação por mercúrio causa graves deficiências cognitivas em crianças yanomamis. Folha de S. Paulo, 4 abr 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/04/contaminacao-por-mercur…
[6] CAUX, Camila de. A cicatriz da terra. Quatro cinco um, 1 set 2024. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/meio-ambiente/a-cicatriz-da-terra/
[7] CASTRO, Marcia. A crise yanomami contada pelas vítimas. Folha de S. Paulo, 17 jul 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcia-castro/2024/07/a-crise-yan…
[8] SVARICK, Leonardo. Impulsionada por garimpo, malária avança entre yanomamis um ano após emergência em saúde. Folha de S.Paulo, 19 jan 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/01/impulsionada-por…
[9] MARUGAL, Alisson. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Recomendação n.23 de 2022. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/rr/sala-de-imprensa/docs/Recomendao232022.pdf
[10] MAGALHÃES, Ana; JUNQUEIRA. Esquema de ouro ilegal Yanomami envolve empresas milionárias acusadas de lavagem de recursos no Pará. Repórter Brasil, 3 fev 2023. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2023/02/esquema-de-ouro-ilegal-yanomami-e…
[11] SERAPIÃO, Fabio; GABRIEL, João. Amazon e Disney compram minério de empresa alvo da PF por esquema de garimpo ilegal. Folha de S.Paulo, 3 mar 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/03/amazon-e-disney-compram…
[12] O ASSUNTO, Podcast do G1. Episódio de 1fev 2024. CAFÉ DA MANHÃ, Podcast da Folha de S.Paulo, Episódio de 16 jan 2024.
[13] CASTRO, Marcia. A crise yanomami contada pelas vítimas. Folha de S. Paulo, 17 jul 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcia-castro/2024/07/a-crise-yan…
[14] O ASSUNTO, Podcast do G1. Episódio de 1fev 2024. CAFÉ DA MANHÃ, Podcast da Folha de S.Paulo, Episódio de 16 jan 2024.
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