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Autor: Marco Piva
17 de Ago de 2020
Ameaça de despejo com arsenal de guerra fere a justiça e coloca em xeque opção política de Romeu Zema
O despejo de 450 famílias no Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio, sul de Minas Gerais, revela a face mais obscurantista de dois poderes que deveriam promover o desenvolvimento humano e as regras básicas de convivência: o executivo e o judiciário. Numa democracia, a regra de ouro é a harmonia entre os contrários, independentemente de suas origens sociais. Daí o sistema de pesos e contrapesos para que os pilares democráticos se mantenham em pé.
Ao contrário disso, o que se viu no Quilombo Campo Grande foi a "harmonia dos poderosos" contra famílias humildes que estão ali produzindo há 22 anos. Foi um ato de injustiça sob qualquer ponto de vista. Primeiro, por desobedecer a uma decisão do STF que impede ações policiais durante a pandemia (ADPF 635, de 5 de agosto). Segundo, porque o litígio das terras não abrange a totalidade da área. Terceiro, a atuação da Polícia Militar foi totalmente desproporcional e inutilmente onerosa em face do objetivo que se pretendia atingir.
Aos apelos de diferentes setores da sociedade civil e parlamentares, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais fez ouvidos moucos. O governador Romeu Zema (Novo) tentou dar uma "carteirada" anunciando que havia suspendido a desocupação quando, na prática, nada fez, permitindo que a PM, sob seu comando, realizasse uma operação de guerra no local.
Quem melhor expressou o apelo ao bom senso e à justiça foi dom Vicente Ferreira, bispo-auxiliar da Diocese de Belo Horizonte. Em vídeo, ele lamentou que no meio de uma pandemia exista tanto desprezo pelos mais humildes, justamente trabalhadores e trabalhadoras da terra que produzem um dos melhores cafés orgânicos do estado, o Guaií. "Despejo não é uma atividade essencial", disse ele ao demonstrar sua solidariedade à resistência dos assentados que lutam por "terra, moradias e vida digna". Na mesma linha foi a nota da Regional Leste 2 da CNBB, lembrando as palavras do Papa Francisco no Encontro Mundial de Movimentos Populares: "É necessário democratizar a terra com a Reforma Agrária Popular para que esta cumpra a sua função social, o que nos garantirá nesse atual contexto a segurança e a soberania alimentar e laboral às futuras gerações".
O interessante e ao mesmo tempo cruel é que o despejo obedece a uma ação da família de Jovane de Souza Moreira, antigo proprietário da Usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool S.A., que faliu em 1996, deixando uma dívida com os cofres públicos avaliada em quase 390 milhões de reais. Ainda por cima, os empregados da empresa nunca receberam indenização. Por isso, alguns deles decidiram ocupar aquelas terras e dali tirar o seu sustento na forma de produções orgânicas. A partir de 2002, a ocupação cresceu chegando às 450 famílias atuais.
A polícia usou o batalhão de choque, helicópteros e carros de bombeiro durante três dias. Ao final da operação, desalojaram apenas 14 das 450 famílias residentes no local, destruíram a Escola Popular Eduardo Galeano e um galpão onde a colheita de diferentes plantações era armazenada. Familiares do ex-proprietário da usina participaram da ação, ajudando a derrubar os muros da escola.
A pergunta que fica é uma só: onde está o critério de justiça que permite uma operação dessas contra uma comunidade organizada de forma ordeira e produtiva? O Quilombo já distribuiu algo em torno de duas toneladas de alimentos para as famílias carentes da região para dar sua cota de contribuição no combate à Covid-19.
O governador Romeu Zema foi eleito por um partido cujo nome é Novo. Mas, qual foi a novidade nesse caso se não a mentira de que iria suspender o despejo? Para atender a qual objetivo político deslocou por três dias tropas policiais e armamentos pesados contra famílias pobres e desarmadas?
A sociedade brasileira e a mineira em particular não pode aceitar como normal que famílias assentadas em terras improdutivas sejam vistas como criminosas enquanto uma única família, devedora do erário público, seja transformada em vítima. A reforma agrária é uma necessidade para todos. É dos agricultores familiares, das pequenas propriedades e dos assentamentos que vem o arroz, o feijão e as hortaliças que todos os dias temos em nossas mesas. Criminalizá-los é a maior injustiça que se pode cometer. O quilombo resistiu.
Marco Piva é jornalista, diretor de redação do canal youtube 'O Planeta Azul', apresentador do programa 'Brasil Latino', na Rádio USP, e colaborador do site Dom Total.
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