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É o modelo, idiota!

OESP, Aliás, p. J6
Autor: AUGUSTO, Sérgio
28 de Jan de 2007

É o modelo, idiota!
Dizer que o aquecimento global é exagero propagandístico é posar de burro ou desonesto

Sérgio Augusto

Lula e Bush falaram à nação, quase que ao mesmo tempo. Tanto no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), anunciado pelo primeiro, como no State of the Union do segundo, muitas promessas, muita leréia, mas sobre a questão crucial do meio ambiente, boca-de-siri. Lula acredita que o Brasil deve e pode crescer sem uma política conservacionista intransigente; já o disse de viva voz, quando sobre a cabeça da ministra Marina Silva colocou, com perdão do clichê, uma espada de Dâmocles. Modelo que não consegue conciliar progresso e respeito à natureza não serve, não interessa.

A China, inveja e aspiração de todos os países em desenvolvimento, cresceu, só no ano passado, 10,7%, mas agredindo, intensa e irresponsavelmente, o meio ambiente. Se é com esse padrão de progresso à outrance que o nosso presidente sonha, estamos flitos. Se os países em desenvolvimento serão as maiores vítimas do aquecimento global, como na quinta-feira foi repetido no Fórum Econômico Mundial, em Davos, a China já é candidata ao duplo papel de algoz e vítima. E o mesmo se diga da Índia que deverá, nos próximos anos, consumir uma grande quantidade de serviços e mercadorias que provocam a emissão de gases que concorrem para o aumento do efeito estufa.

Nesse aspecto, já ameaçamos a China e a Índia: queimando e derrubando matas, somos, hoje, o quarto maior contribuinte ao aquecimento global. E em franca expansão: há dias, o IBGE mostrou que o arco de desmatamento e queimadas avança célere em pelo menos quatro frentes da Amazônia. É nisso que dá curvar-se aos interesses de pecuaristas, lavradores e mineradoras que estão pouco se lixando para o impacto que causam à floresta.

No seu "Estado da União", Bush não ofereceu substantivas propostas econômicas para conter o aquecimento global. O mais graduado opositor do Protocolo de Kioto desfiou vaguezas e platitudes sobre a reforma energética. Por pouco não repetiu, literalmente, a chorumela do ano passado, quando, contra todas as evidências, absteve-se de responsabilizar o ser humano pelo efeito estufa. Vai ver, não queria desagradar o ficcionista Michael Crichton, assíduo comensal da Casa Branca e fanático defensor da tese de que o aquecimento global é um delírio dos ecochatos. Em seu último best seller, Estado do Medo, uma das fantasias mais deletérias dos últimos tempos, as agressões ao ecossistema são atribuídas à ação de ecoterroristas high tech, exímios na fabricação de desastres ambientais.

Crichton é o de menos. Um ficcionista pode tudo, sua liberdade deve ser total, desde que não se utilize dela para uma forma de proselitismo que ponha em risco a vida alheia; no caso, a vida do planeta e seus habitantes. Mas com que palavrões qualificar quem chega diante das câmeras de televisão e, protegido pela credibilidade jornalística (sim, ainda há quem creia, pavlovianamente, em tudo o que sai da boca de um jornalista), desqualifica a questão do aquecimento global como uma tremenda cascata? Pois foi isso o que fez, há 11 dias, o telepicareta Neil Cavuto, apresentador do programa Your World, que só podia ser da Fox News, vulgo Faux News.

Num segmento que tinha por título "A nação sob o gelo: cadê o aquecimento global?", Cavuto exibiu imagens de nevascas no Texas, Arizona e Califórnia, como provas de que "essa história de aquecimento global é puro hype", ou seja, exagero propagandístico. E o que dizer dos 21 graus Celsius em Nova York, duas semanas atrás? Cavuto ou é desonesto ou é burro, pois nevascas em estados quentes como Texas, Arizona e Califórnia podem ser uma conseqüência do aquecimento global. Cavuto merecia ser enviado ao Pólo Ártico, para constatar com seus próprios olhos o colossal degelo provocado pelo efeito estufa e, suprema ironia, virar rango de ursos polares, já que estes, à falta de peixes para alimentar-se, já estão se comendo uns aos outros.

Periclitante é adjetivo brando para o que está acontecendo com o clima na Terra. "Se não tomarmos medidas enérgicas nos próximos 10 anos, não mais que 10 anos, o nível dos oceanos subirá 24 metros, provocando a extinção de várias espécies", voltou a alertar o principal climatologista dos EUA, James Hansen, da NASA, a quem Bush, no começo do mandato, encomendou um relatório, virtualmente jogado no lixo.

Hansen foi um dos 1.200 cientistas e climatologistas responsáveis pelo novo relatório do IPCC (sigla do Painel Intergovernamental Para as Mudanças Climáticas), cujo sumário de 12 páginas será divulgado, oficialmente, na próxima sexta-feira, em Paris. O trabalho completo resultou num catatau de 1.644 páginas, cujos tópicos mais palpitantes vazaram para a redação do jornal canadense Toronto Star. "A evidência incontestável está, definitivamente, sobre a mesa, e é constrangedora", comentou o climatologista Jerry Mahlman. Entenda-se por evidência incontestável (no original, smoking gun) a responsabilidade total do homem sobre as crescentes pirações da natureza: temperaturas extremas, inconstância climática, degelo, ondas térmicas, desertificação, etc.

Que efeitos práticos esse assustador relatório terá sobre aqueles com poder decisório para mitigar e sustar o apocalipse ambiental? Redobrem a interrogação. Na semana retrasada, a União Européia sugeriu aos seus 27 membros que reduzam a emissão de gás carbônico em 20%. O governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, propôs corte de 10% na emissão de gases das refinarias de petróleo e produtores de gasolina. Já é alguma coisa, um sinal de que a crise começa a ser entendida por quem já percebeu que o que está em jogo é a própria sobrevivência da humanidade. Mas terá alguém coragem de explicar ao seu eleitorado que respeitar as determinações do Protocolo de Kyoto é apenas um primeiro e modesto passo para a salvação?

O mais difícil e conseqüente, para não dizer eficaz, será convencer todos os seres humanos de que precisamos mudar drasticamente nossas maneiras de ser, fazer e consumir. O modelo que herdamos do modo de vida dos países ricos, insaciáveis consumidores de energia e recursos raros não renováveis, está no limite, irremediavalmente condenado. Se durar mais do que meio século, será muito. É o que estimam não só os climatologistas sem parti pris nem rabo preso com indústria poluidoras, mas também teóricos respeitáveis como Jean-Pierre Dupuy, engenheiro, filósofo das ciências e expert em nanotecnologias e catástrofes. Professor na Universidade de Stanford, Dupuy acredita que, para pôr termo ao aumento da concentração do gás carbônico na atmosfera, os países em desenvolvimento precisariam ser impedidos de seguir o modelo de crescimento voraz, perdulário e predador dos países industrializados.

Ou seja, precisamos, acima de tudo, de uma revolução nos hábitos. Todos eles.

OESP, 28/01/2007, Aliás, p. J6

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