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É melhor um xikrin produzir vídeo a mel de abelha

Valor Econômico
Autor: GORDON, Cesar
05 de Jun de 2007

"É melhor um xikrin produzir vídeo a mel de abelha"

De São Paulo

O antropólogo Cesar Gordon acompanhou bem a crescente circulação de dinheiro e mercadoria entre os índios xikrin. Em 1998, quando pisou na aldeia pela primeira vez, pretendia estudar o parentesco de um grupo indígena. Mudou de idéia ao perceber como os índios gastavam tempo e energia elaborando estratégias para aumentar o poder aquisitivo e o consumo de bens industrializados. No ano passado, lançou o livro "Economia Selvagem", baseado em sua experiência. É hoje quem mais entende da lógica econômica xikrin. A seguir, sua entrevista:

Valor: Os xikrin hoje usam jeans, celular, têm TV, caminhonete, casas de alvenaria e até máquina de lavar roupa. Eles deixaram de ser índios? Não preservam mais sua cultura?

Cesar Gordon: Antes de tudo, é preciso lembrar que a idéia de "deixar de ser índio" é herdeira de uma tradição intelectual. Durante muito tempo, brasileiros pensaram a respeito dos índios por meio de noções oriundas do evolucionismo e do positivismo progressista. Acreditava-se que eles seriam assimilados à nação brasileira e se tornariam civilizados (isto é, deixariam de ser índios ou selvagens). Por outro lado, a idéia de "preservação da cultura" é herdeira de outra tradição, em boa medida contrária à primeira. Suas raízes são o romantismo alemão e sua versão moderna: o culturalismo antropológico. Defendia-se a manutenção de certos elementos culturais, supostamente genuínos e responsáveis pela singularidade dos povos. As sociedades, idealmente, deveriam se conservar, em algum grau, imunes à história e à mudança. Agora, veja a situação dos índios. Primeiro: deveriam deixar de ser índios para serem sujeitos de direitos. Depois, eles não podem deixar de ser índios. Ocorre que tais preocupações não são preocupações tradicionais dos xikrin. Sua herança intelectual e política é muito diferente. Eles nunca conceberam sua própria cultura como algo imutável, imune a transformações históricas. Reconhecem um modo correto de estar no mundo (o modo xikrin), mas vêem esse modo como algo em constante transformação. No fim das contas, quem deve dizer se eles estão deixando de ser índios? Nós? Ou eles?

Valor: O acesso ao dinheiro os tornou materialistas demais?

Gordon: O interesse dos xikrin pelo dinheiro é meramente instrumental. Eles não acumulam, não se capitalizam. Isso fica evidente com a quantidade de dívidas que eles costumam contrair. O interesse é pelos objetos produzidos pelos "brancos", mas não se pode dizer que o interesse pelos bens industrializados seja materialista. Quando estive entre os xikrin, percebi que a lógica que rege o consumo de bens entre eles é uma lógica ritual. As mercadorias entraram na vida xikrin para cumprir funções rituais e para aumentar a produção de rituais e auxiliam na reprodução da cultura e da sociedade xikrin. O grande problema é que quando o combustível do maquinário ritual xikrin passou a ser dinheiro e mercadorias, efeitos inesperados aconteceram. Um deles é um certo aquecimento do sistema ritual, que começou a necessitar de mais e mais combustível. Surge, portanto, uma demanda que cresce indefinidamente.

Valor: O fato de a Vale ter passado a dar os recursos diretamente para as associações indígenas a partir de 1999 foi um erro?

Gordon: Não. O erro foi o modo abrupto como a mudança ocorreu e a falta total de planejamento. Até 1999, o repasse dos recursos à Funai causava dificuldades. O processo de compras era burocratizado e havia o risco de que os recursos fossem misturados e utilizados para custos administrativos ou com outros povos indígenas. Às vezes, por demora em licitações, os xikrin ficavam sem medicamentos durante semanas. A solução foi transferir os recursos diretamente, mas não houve preparação, não houve muita discussão com os índios, nem treinamento de pessoal para assumir a gerência da associação. Apesar dos problemas, ainda penso que os recursos devem ser geridos pelos próprios índios. Mas que isso seja feito com apoio da Funai e de especialistas. Pode existir, por exemplo, um conselho administrativo, com participação da Vale. É necessário estabelecer um planejamento para o convênio, que não existe até hoje, investir na capacitação, achar interlocutores qualificados independentes para auxiliar o diálogo. É um direito dos índios gerenciar esses recursos. Eles são os beneficiários. A Funai deve auxiliá-los, não tutelá-los.

Valor: O acordo em discussão entre a Vale e os Xikrin prevê a instalação de projetos produtivos, como criação de peixes e apicultura. A estratégia terá sucesso?

Gordon: Projetos baseados exclusivamente no extrativismo e na criação de animais não são adequados. Podem ser implementados, mas não mobilizarão a comunidade. Projetos ligados à produção cultural e audiovisual, que permitam acesso a tecnologias, por exemplo, têm mais chance de funcionar. Mais de 80% da população xikrin tem menos de 30 anos. São jovens. Foram criados sob intenso contato com a sociedade brasileira. Têm enorme interesse por tudo que se relaciona com o "mundo dos brancos", principalmente a tecnologia. Querem aprender a fotografar e a usar vídeo, conhecem internet, as músicas da moda, querem aprender inglês. Não se pode dizer para um jovem xikrin de 16 anos que fique o tempo todo na floresta pescando e caçando. Isto é irreal. Por outro lado, é preciso compatibilizar esse interesse com a vida dos mais velhos, seus saberes e valores. Por isso as atividades "culturais" são estratégicas - permitem fazer a ponte entre as gerações. Podemos ter uma garotada operando filmadoras digitais para registrar cerimônias elaboradas, que só são do conhecimento dos velhos. Ou jovens manuseando computadores para elaborar um acervo de canções rituais. Isso permite a inserção dos índios no mercado capitalista de forma menos subordinada, com produtos de maior valor econômico e simbólico. É curioso constatar que, em algumas regiões, os índios já têm a cabeça na era da informação, mas a Funai insiste em pecuária, extrativismo. É uma visão ingênua.

Valor: Por que a Vale tem de compensar os índios, se não opera em área indígena?

Gordon: A CVRD não opera dentro da terra indígena, mas em área contígua. Tem obrigação de prestar assistência aos xikrin, fornecendo a contraprestação pelo uso da área que é hoje a Floresta Nacional de Carajás e que faz divisa com a área xikrin na altura do rio Itacaiúnas. Fora o aspecto legal, há o moral. Sem desconsiderar sua importância econômica e excelência, a Vale ainda deve uma participação mais ativa e responsável no que toca ao desenvolvimento da região da Serra de Carajás. (RB)

Valor Econômico, 05/06/2007

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