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E lá vamos nós outra vez, mas para onde?

OESP, Vida, p. A29
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
02 de Nov de 2006

E lá vamos nós outra vez, mas para onde?

Marcos Sá Correa

Nas favelas de Nova Délhi, é mais negócio comprar um litro de leite do que um litro de água. O leite, pelo menos, não está controlado pela máfia de atravessadores, que sangra as tubulações da rede pública para vender no mercado negro o que o governo pretendia entregar de graça. O governo, por sinal, promete entregar a cada pessoa 40 litros por dia, senão nas favelas, onde seus canos nem chegam, pelo menos no resto da cidade.

Mas nem essa cota se cumpre. Ainda que os seus 40 litros já sejam menos do que os 50 recomendados pelos padrões sanitários. E mal alcancem um décimo do mínimo per capita que se considera aceitável nos Estados Unidos. Lá, a conta começa em 400 litros diários.

É por causa dessas diferenças que Mahesh Chaturvedi, como fazem seus vizinhos num bairro residencial de Nova Délhi, acorda às 4 horas da manhã para encher sua caixa. Senão, adeus banho. E ele é hidrologista. Deu aula em Harvard. Agora ensina ciências ambientais e engenharia no Instituto Indiano de Tecnologia. Integra a elite intelectual que seu país, em vez de esconder como fino extrato da injustiça social, exibe como cacife nas apostas de crescimento econômico. Chaturvedi leva a sério a conversa de que, com pesquisa e cérebros, a Índia ainda acabará chegando à Lua. Mas também acredita que, com falta d'água, não irá longe.

Tudo isso pode soar como lamúria de ecochato. Ou, pior, de Chaturvedi. Mas está numa reportagem de Michael Specter na revista New Yorker.

Ela informa que metade das camas de hospital no planeta está ocupada neste momento por gente que a água ruim derrubou, eventualmente de uma vez por todas. A diarréia matou mais crianças nos últimos 50 anos do que todos os conflitos armados desde a 2ª Guerra Mundial.

Enfim, passou o tempo de dizer 'está bem, vamos buscar mais água' e cavar encrencas como as que mataram o Mar de Aral e secaram o Rio Colorado no México. Mas não passou o tempo de transpor o Rio São Francisco. O projeto está mais ou menos onde estava, quando caiu no poço sem fundo dos escândalos políticos. Pronto para voltar endossado pela aprovação tácita dos votos obtidos numa campanha eleitoral que, cuidadosamente, evitou mexer nas polêmicas do meio ambiente.

Dá até gosto ver, desde segunda-feira, o esforço dos repórteres, tentando arrancar das mais vagas reticências oficiais a prova de que vem aí outro governo Lula, e não mais do mesmo, como explicitamente pediu o eleitorado. Passada a eleição, só se fala em crescer. No mínimo, 5% ao ano, prevê o professor Delfim Netto, a nova reserva técnica do PT. Por acaso, no mesmo dia em que se começava a discutir lá fora se a economia mundial vai encolher 20% nas próximas décadas, por conta do aquecimento global.

As duas porcentagens saíram nos mesmos jornais. Seriam contraditórias, se não fossem previsões de economistas, tanto os 5% a mais de Delfim Netto, como os 20% a menos do inglês Nicholas Stern, postos num relatório sobre a saúde do clima para a conferência das Nações Unidas que começa no Quênia semana que vem. Os brasileiros já entenderam há muito tempo que previsões de economistas têm menos a ver com o futuro da economia do que com o futuro dos próprios economistas, tratando de acertar vagas no próximo ministério.

Não dá para chamar de pessimista o dossiê da ONU. Ele diz que um bilhão de pessoas pode ficar sem água potável. E a reportagem de Specter afirma que isso já aconteceu. Fala no desaparecimento da floresta amazônica. Mas, desde quando o Brasil precisa de mudança climática para acabar com a Amazônia? Dela cuidamos nós, como diz o chanceler Celso Amorim. O mundo é que parece andar meio sombrio. Tão sombrio que nele brilha como nunca o político Al Gore, do filme Uma Verdade Inconveniente. Seis anos atrás, Gore perdeu para George W. Bush a eleição para presidente dos Estados Unidos. Foi tratar de outros assuntos, como os computadores Apple, o site Google e o aquecimento global. Virou conselheiro para mudanças climáticas do governo inglês, sinal de que a Inglaterra não tem um ministro como Amorim para defendê-la de ataques à sua soberania ambiental.

Mais uma razão para sermos otimistas.

Marcos Sá Correa Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 02/11/2006, Vida, p. A29

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