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''É fácil botar a culpa no índio''

JB, País, p. A8
Autor: TRAJBER, Zelik
13 de Mar de 2005

''É fácil botar a culpa no índio''

Entrevista / Zelik Trajber
Daniela Dariano

Um polonês de 58 anos naturalizado brasileiro é a voz do índio em Dourados, Mato Grosso do Sul. Único pediatra da reserva, Zelik Trajber admite: "Sou louco". Tem a loucura necessária para manter a objetividade da técnica e a sensibilidade de quem é movido por uma causa. Há quatro anos, mudou-se de São Paulo com mulher e filhos para trabalhar no programa da saúde da família indígena, da Funasa. Ao começar o atendimento na reserva, em 2001, viu serem enterrados pacientes que não chegaram a ser seus: "Me chamavam, mas eu ia só para carregar os corpos". Depois de rápida queda inicial, os índices de desnutrição e de mortalidade infantil voltaram a crescer. "Não está fácil", admite.
Formado em Cuba, onde ficou exilado durante a ditadura brasileira, Zelik só conhece a medicina branca. Gostaria de saber mais sobre ervas, mas muito do conhecimento foi perdido no tempo pelos índios. Com eles, aprendeu a aceitar e negociar com o diferente. Já foi consolado por um rezador diante de uma criança desnutrida que não respondia ao tratamento. "Eu falava: Não tenho mais o que fazer, essa criança só piora. O rezador bateu no meu ombro e falou: Doutor, tem hora que nem eu tenho o que fazer".
Crítico a programas mirabolantes, impostos "de cima para baixo" pelos governos, o pediatra enfrenta carência de medicamento, de pessoal, atrasos do salário, de cerca de R$ 5.500. Do grupo inicial de 18 médicos da Funasa que atuam com os índios em todo o estado, Zelik foi um dos quatro que persistiu. As dificuldades resultam numa imensa rotatividade de profissionais.
Zelik defende o diálogo com o índio. E põe em prática sua teoria. Atende seus pacientes de aldeia em aldeia, onde identifica a raiz do problema indígena: a terra, ou melhor, a falta dela. Em Dourados, 11 mil índios (cerca de 2 mil famílias), nem todos originários de lá, são confinados a 3.500 hectares. Para se ter idéia, a área, na reforma agrária, seria suficiente para, no máximo, 300 famílias.
- Qual a origem da desnutrição em Mato Grosso do Sul?
- O problema número um: terra. São grandes concentrações de pessoas em pequenos espaços, ao contrário da cultura deles. Tradicionalmente, quando havia projeções de novas lideranças, os índios se dividiam, iam cada um para um canto. Hoje, é impossível. Os grupos familiares são obrigados a conviver num espaço reduzido e numa imposição de lideranças que também vem da época do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, que precedeu a Funai), que inventou o capitão, por exemplo. Foi uma imposição do branco para ter uma interlocução com a sociedade. Hoje, novas lideranças começam a se projetar e a exigir espaço. Cada grupo tem seu líder e sua forma de ver. Não existe solução única para a reserva.
- Como surgiu o interesse em trabalhar com os índios?
- É um desafio trabalhar com outra etnia, outra cultura. Os índices de mortalidade infantil na época (2001) eram tenebrosos, acusavam 140 mortos por mil nascidos vivos. Com o andar do nosso trabalho - isso era o apaixonante - conseguíamos reduzir paulatinamente essas taxas. Chegamos a reduzir a mortalidade infantil na reserva de Dourados em 2002 até 46 por mil. Mas cada vez que se reduz o índice, tem que implementar outras ações, porque o problema vai se afunilando. Há medidas grosseiras que você toma e atinge o grosso da população. Depois, você tem refinar as ações para reduzir mais. Os países desenvolvidos, com índices beirando 8 mil, exigiram programas de saúde pública, de controle de puericultura. A gente estava conseguindo fazer o macro e a tendência era melhorar cada vez mais os índices. Houve uma estabilização em 2003 e, em 2004, um aumento significativo dos índices, para 64 mil, em Dourados.
- Independente da etnia?
- A população Guarani-Caiuá tem os maiores índices de desnutrição e de mortalidade infantil. É uma população que se manteve mais distante, sempre foi mais reprimida, expulsa de suas terras. Foram dominados, segregados e confinados a pequenas áreas de reserva que não eram compatíveis com sua forma de vida. Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do país, inclusive com outras etnias que foram trazendo de fora.
- Levadas pelos governos?
- Exatamente. Hoje convivem na reserva de Dourados três etnias: Guarani, Caiuá e Terena. Os Terena não são originários de Dourados, foram trazidos. Hoje, fazem parte. Há muita diferença de modo de vida entre eles. O normal não é se misturar. Entre os Terena, poucos são os que guardam o idioma, ao contrário do Guarani e do Caiuá. Eles mantêm o idioma e muitos com dificuldade de falar o nosso.
- O que mais fascinou o senhor nessa convivência com os índios?
- É um povo que luta há 500 anos para sobreviver e conseguiu manter sua identidade. Isso é apaixonante. Depois, você vê a situação de miséria. No primeiro ano, foi muito dolorido, porque me chamavam e, muitas vezes, eu chegava só para recolher o cadáver de crianças. Não teve, no primeiro ano, uma semana em que eu não tive que recolher ou um moribundo ou um defunto. Aí pensei: vamos tentar mudar isso. Eu precisava entendê-los. Quando se consegue entender e respeitar, chega-se a um nível de convivência. Hoje, tenho diálogo com os rezadores muito franco e muito aberto.
- A Funasa fala em incentivar mudanças culturais nos índios para evitar que as crianças sejam as últimas a se alimentar na família e que fiquem desnutridas. Isso é mito?
- Isso é loucura. É muito fácil botar a culpa no índio. Ninguém sabe tudo o que esse povo sofreu para sobreviver. O índio nunca viveu confinado. Então, é reduzir a nossa incapacidade de ação, jogando para o outro a responsabilidade. Dizer que o índio bebe, por exemplo. O branco não bebe nem fica embriagado? É uma falta de responsabilidade dar declarações desse tipo. O branco tem problemas, e a gente não fala que é culpa da cultura do branco. O índio tem que encontrar saída para o que oferecemos a ele por 500 anos. E você acha que uma mandioca mal-cozida, dura, um bebê de sete meses consegue comer? Hoje eles não têm o que caçar ou pescar. Na reserva não tem um rio. Mal e mal, de vez em quando tem um corregozinho, e com água contaminada pelas lavouras.
- Como conciliar a diferença?
- Se fosse simples, a gente faria um decreto e resolveria o problema. São sempre assim as ações dos brancos com os índios. Sempre o homem branco decreta ações de cima para baixo, sempre tem a solução milagrosa para os problemas: segurança alimentar, o Fome Zero, grandes projetos que nunca funcionam porque vêm de cima para baixo. Imaginam que podem transformar o índio, por exemplo, em um grande sojicultor. Não é esse o caminho.
- Qual o caminho?
- Todas essas discussões de projetos e programas têm de ser de baixo para cima. Dialogar com os índios, cada pequeno grupo pode ter uma solução para o que pretende. Não dá para o branco falar ''nós vamos fazer dessa forma''. Nunca vai dar certo. A coisa funcionou na saúde nos primeiros anos aqui porque rompemos o bloqueio de capitão, de hierarquia, e atingimos a última casinha da aldeia. Fomos casinha por casinha e dialogamos com cada família.
- Houve resistência à introdução da medicina branca?
- Houve e existe ainda por parte de algumas famílias. Mas não é por imposição. Há um diálogo com eles. A gente vai conseguindo pouco a pouco dar uma alternativa. Tanto que a gente chegou, num desespero, a montar um centro de recuperação. Ainda temos ele, mas o montamos com o objetivo de acabar com ele. À medida que tenho uma equipe melhor, com mais recursos, trabalhando lá dentro, cada vez preciso menos desse centro.
- É um hospital?
- Quando vimos a realidade da desnutrição, propusemos ocupar um espaço que existia no hospital da (ONG) Missão Kaiowá para tentar recuperar as crianças em piores condições. No começo, foi um desastre. Eu levava a criança e, no dia seguinte, a família fugia com ela. À medida que foram vendo o trabalho, foram ficando. Chegamos a ter 50 crianças internadas. A gente foi aprimorando o trabalho na ponta e diminuindo a necessidade de internação. Hoje, devo ter sete crianças internadas lá. Só que começaram a mandar crianças das outras regiões. Devem ser 37 crianças ao todo.
- A demarcação de mais áreas indígenas resolveria o problema?
- Uma boa parte. Mas é um processo longo. Exige um estudo antropológico para definir se era ou não terra indígena. O que é uma loucura, porque afinal isto tudo era área indígena. Bom, mas, definida como área indígena, vem o processo de demarcação. Há muitas áreas demarcadas que já deveriam estar no próximo passo, da homologação, ou seja a assinatura do presidente, mas aí não anda. Até a semana passada, índios de uma aldeia do Cerro Marangatu, cuja área já foi demarcada, estavam com ordem de despejo para reintegração de posse do fazendeiro. É uma área onde os índices de mortalidade infantil também são altos.
- Por que a situação em Dourados é tão crítica?
- Aqui o problema é mais concentrado do que no Amazonas, por exemplo. O conceito de terra é muito sério. Há várias áreas em litígio e a população é crescente. Além de ser uma região de fronteira. As famílias dos índios Guarani dessa área têm parentes do lado de lá. Para eles, fronteira, quem desenhou fomos nós, não eles. Se, em algum momento ele percebe que do lado de cá tem uma perspectiva melhor, ele vem. Não quer saber de fronteira.
- Há descaso?
- Quando a gente fala do aumento do índice de mortalidade infantil, é uma paulada. Mas números são números. Não sou contra a instituição, quero que funcione direito. Quero que os responsáveis tenham uma visão de saúde indígena. Essa é a nossa briga. Não quero que se leve para diferenças partidárias. Não adianta eu me divorciar de todo mundo (das instituições governamentais). Quando falo em saúde, estendo para outras áreas: agricultura, terra, educação. Mas com gente que esteja preocupada em ajudar de baixo para cima, não com programas mirabolantes ou propagandísticos.

JB, 13/03/2005, País, p. A8

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