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E agora, presidente?

OESP, Vida, p. A22
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
06 de Out de 2005

E agora, presidente?

Marcos Sá Corrêa

Aconteça o que acontecer daqui para a frente com a transposição do Rio São Francisco, o presidente Lula já perdeu a batalha para d. Luiz Flávio Cappio. Cappio, em italiano, é laço. E em português será isso mesmo. O governo caiu num laço sem saída, no dia em que o bispo de Barra entrou em greve de fome contra esse projeto tardio, megalômano e tão mal explicado que, dias atrás, no segundo aniversário do Fome Zero, Lula voltou a dizer que, transpondo o São Francisco, dará de beber a "12 milhões de famílias da região mais pobre e mais seca do Nordeste".
Não era a primeira vez que, em defesa da empreitada, o presidente invocava esse número delirante. Usou-o em junho, numa entrevista coletiva no Palácio do Planalto. Voltou a sacá-lo na semana passada, reagindo ao ultimato de Cappio. Entre as três citações, passaram mais de três meses. E, pelo visto, nesse tempo todo não apareceu, no que restou de sua equipe, uma voz amiga para lhe explicar que, no Nordeste, 12 milhões de famílias são mais de 43 milhões de pessoas. Inclui praticamente todos os nordestinos. Até aqueles que doarão a água do São Francisco para Estados vizinhos. E os que integram a classe dos brasileiros indiferentes, na definição do próprio Lula, por terem garrafa de "Perrier na geladeira". O Fome Zero, que se intitula "o maior programa social do planeta", para cadastrar neste ano no país inteiro 7,5 milhões de famílias, teve de alargar tanto os critérios de seleção que, em cidades da Paraíba, houve romaria de mulheres para devolver cartões do Bolsa Família recebidos indevidamente. De onde, então, Lula tirou seus 12 milhões de famílias, senão do direito soberano de dizer em público qualquer coisa que lhe venha à cabeça?
Pois é esse o presidente que, contra Cappio, estará agora apostando sua credibilidade pessoal, numa disputa em que estão em jogo R$ 4,5 bilhões e custos ambientais imponderáveis, porque mal apurados. E não se deu ao trabalho de decorar a primeira tabuada do projeto.
O encarregado de tocar a obra, ministro Ciro Gomes, não chega a tanto. Ele tem declarado que 12 milhões de pessoas ganharão com os 720 quilômetros de canais, rasgados no Nordeste em ano de eleição. Com a simples troca de "famílias" por "pessoas", entre o presidente e o ministro cava-se um fosso de 360%. E nem assim dá para fechar o cálculo oficial. Nos 12 milhões de pessoas de Ciro Gomes entram praticamente todos os habitantes dos quatro Estados onde desaguará a transposição. Sem excluir os que têm piscina em casa. Ou, como diria Lula, quem nunca "carregou uma lata de 20 litros na cabeça por 6 ou 8 léguas". Convém esclarecer que 8 léguas são 52,2 quilômetros. E é a esses maratonistas da seca que o presidente dedicou, num discurso em Angicos, Rio Grande do Norte, a transposição. E, depois, Brasília ainda acha que nessa história quem está exagerando é o bispo.
O Brasil já viu de tudo em obras públicas. Mas a transposição é a primeira que começa superfaturando gente, a conta mais fácil de verificar no site do IBGE. Imaginem-se as outras, que fizeram o projeto parecer complicado para ser discutido pela opinião pública. Mas a greve de fome de Cappio tornou tudo mais simples, enquanto Lula treinava na crise driblar as confusões que ele mesmo criou. Diante do bispo de Barra, ele enfrenta uma situação inédita em sua carreira. Chegou ao palácio atirando para cima. Agora encara um opositor que dorme em quarto de chão batido. Ele pôs a fome coletiva no bolso do populismo assistencialista. Mas não tem remédio na farmacopéia da esperteza política quem se recusa a comer por convicção. Encurralou três CPIs em Brasília ensinando que política é assim mesmo, tudo igual. E a diferença se instalou em Cabrobó.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 06/10/2005, Vida, p. A22

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