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Autor: Andreia Fanzeres
12 de Set de 2008
Só quando sete de dez empreendimentos hidrelétricos que transformarão 110 quilômetros do Rio Juruena numa seqüência de lagos já têm licença de instalação e grupos indígenas afetados pelo complexo negociam compensações financeiras milionárias a Fundação Nacional do Índio (Funai) resolveu acordar.
Depois de ser criticada por omissão no licenciamento das usinas pelo Ministério Público Federal, a fundação escolheu um de seus técnicos para analisar a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) feita pelos empreendedores em 2006, tratando dos impactos cumulativos do complexo energético que integra o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
Na época, a Funai fechou os olhos para a avaliação, que serviu como base para renovação das licenças das usinas, emitidas a partir de diagnósticos simplificados. Dois anos depois, um técnico da autarquia esmiúça a AAI em trinta páginas, constatando leviandades e erros grosseiros em cada uma delas, num parecer que O Eco obteve com exclusividade. Procurada pela reportagem, a Funai não respondeu porque demorou tanto para se manifestar, nem se o trabalho tardio terá conseqüências sobre a continuidade das obras.
O parecer identificou inconsistências como falta de padronização nas pesquisas de campo de fauna e meio limnológico (algas, plâncton etc) feitos pela JGP Consultoria e Participações Ltda, contratada pelos empreendedores para elaborar a AAI. O documento da Funai destaca, entre outros pontos, que os levantamentos no Rio Juruena não foram feitos durante um ciclo hidrológico completo. \"As variações sazonais não foram levadas em conta, o que é de praxe nestes estudos\".
Além disso, apenas para aves e peixes a AAI menciona o esforço amostral total em dias, o que fez o parecerista concluir que \"não foram levantados dados necessários para responder à pergunta proposta sobre a capacidade de suporte da Bacia do Alto Juruena, tampouco quais seriam os impactos dos empreendimentos nestes grupos\". Sem falar nessas lacunas na metodologia de pesquisa e na divulgação das informações, o parecer técnico mostra exemplos de erros primários, como incluir o tamanduá bandeira (Myrmecophaga tridactyla) numa lista de tatus tirada de dados secundários e identificar erroneamente uma ave no registro fotográfico, evidenciando que nenhum especialista revisou o documento.
Conclusões precipitadas
O trabalho apresentou em diversos itens dados incompletos, mas isso não impediu a JGP Consultoria de tirar conclusões, que, conforme a Funai, algumas vezes são até contraditórias. Quando a AAI aborda os impactos do complexo hidrelétrico sobre os sistemas aquáticos o estudo considera \"benéfico\" o aumento de nutrientes provenientes da decomposição de matéria orgânica submersa e pela redução de vazão em alguns trechos do rio, já que o Juruena carrega naturalmente poucos nutrientes. \"Trata-se de uma afirmação no mínimo leviana\", considera o parecer. Ele rebate dizendo que a comunidade de peixes e outros organismos do manancial são obviamente adaptados ao rio, em equilíbrio ecológico. \"A alteração descrita deverá favorecer espécies em detrimento de outras, alterando a cadeia trófica existente. Além disto, existe o risco de eutrofização de alguns trechos e lagoas marginais, fenômeno causado exatamente pelo aumento de nutrientes, causando a mortandade de peixes e o bloom de algas, com conseqüente degradação da qualidade dos corpos d\'água\", diz o técnico da Funai.
A AAI também afirma que a riqueza de peixes migratórios não sofrerá impacto significativo com os empreendimentos hidrelétricos por causa da existência de uma cachoeira de cerca de 25 metros no rio. Ela, por sua vez, será aproveitada pela usina hidrelétrica Cachoeirão, ainda sem licença de instalação. Essa desculpa, aliás, tem estado na ponta da língua de representantes da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso: corroborando com a tese de que, se os peixes já não passam por essa barreira natural, a instalação de novas barragens não alterará esse padrão.
Ocorre que a cachoeira não impede a descida de nutrientes e material orgânico, tão necessários rio abaixo, e o parecer mostra que mudanças qualitativas e quantitativas acontecerão em função das usinas rio acima. A avaliação aceita pelo governo de Mato Grosso indica que lagoas marginais à montante e à jusante do complexo serão impactadas. Como elas são importantes criadouros de peixes, o parecer reafirma que varias populações serão afetadas pela implementação das usinas, independentemente da existência da citada cachoeira de 25 metros.
Outra crítica em destaque se refere aos levantamentos de fauna terrestre, que se prenderam à análise de mamíferos de Cerrado, menosprezando outros tipos de vegetação. Também se ressalta que o afugentamento de animais no momento de construção das usinas não foi levado em consideração. E os impactos desse problema já estão sendo sentidos. De acordo com a Funai, os índios Enawene Nawe, cujo território é o mais próximo da área das usinas, relataram o aumento da fauna herbívora em suas terras, com prejuízos às áreas de cultivo.
O parecer cita que diversos outros pontos da AAI mereceriam estudos mais detalhados e considera que \"a margem de dúvida sobre a viabilidade ambiental dos empreendimentos em conjunto continua muito grande\" e por causa disso não se pode desprezar possíveis mudanças na qualidade da água e seus impactos, mesmo com as medidas apontadas como mitigadoras. \"Fica bastante evidente pelo estudo de que haverá um aporte muito grande de sedimentos com a implementação de vários empreendimentos, é isso que deve modificar a qualidade da água de forma significativa, afetando tanto a biota silvestre e campestre quanto as populações humanas dependentes destes recursos, à montante e, em especial, à jusante dos empreendimentos. Nunca é demais lembrar que os impactos que tanto se discutem são referentes a nove terras indígenas, que representam a maioria absoluta de áreas protegidas no noroeste de Mato Grosso.
O parecer da Funai termina dizendo que o risco ambiental dos empreendimentos não foi devidamente mensurado, com a recomendação de que seja suspensa a outorga do direito de uso dos recursos hídricos para fins de aproveitamento do potencial hidrelétrico das usinas. Também sugere que sejam realizados estudos para determinar a viabilidade ambiental dos empreendimentos, lembrando que a Funai e o Ibama deveriam acompanhar esse processo de licenciamento.
Só que a essas alturas é grande o risco do trabalho não passar de um lamento tardio, porque as obras e o licenciamento andam a todo o vapor. Até o fim de setembro, cinco grupos indígenas apresentarão à Maggi Energia S/A e à Juruena Investimentos e Participações Ltda uma contraproposta de compensação financeira pelos empreendimentos que já têm licença para construção, sacramentando mais uma etapa deste processo que arrisca, às cegas, a saúde de um rio importante como o Juruena.
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