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As duas mortes de Apoena

CB, Opinião, p. 20
Autor: MACEDO, Carlos
16 de Out de 2004

As duas mortes de Apoena

Carlos Macedo

O branco Apoena não tinha nome de índio por acaso. Foi batizado pelo pai, o sertanista Francisco Meireles, em homenagem a um antigo líder xavante. Apoena carregava no sangue a necessidade de entendimento com os legítimos donos do Brasil. Era sertanista desde criancinha: acompanhava o pai nas aberturas de trilhas por lugares considerados inacessíveis ao colonizador. Em 1967, Apoena fez os primeiros contatos com os índios cintas-largas. Tempos depois, conseguiu a mesma proeza com outra tribo isolada, os suruís.
Presidente da Fundação Nacional do índio (Funai) por apenas seis meses nos anos 1980, Apoena Meireles tentou descentralizar a autarquia. Como não conseguiu, voltou para o mato. Há dois anos, aceitou convite para coordenar o centro de documentação da autarquia e, assim, ajudar na preservação da memória de povos tratados historicamente na base da dominação e subjugação. Pela experiência em Rondônia, também topou intermediar o acordo de paz entre os cintas-largas e os garimpeiros depois do conflito que culminou em massacre em abril. Sua missão, ainda em andamento, foi bruscamente interrompida, na noite de sábado, por dois tiros disparados por um menor após assalto na agência central do Banco do Brasil em Porto Velho. Apoena, que nasceu numa aldeia e vivia com os índios, morreu como os brancos, vítima de um crime típico dos grandes centros urbanos.
A morte de Apoena Meireles não é apenas mais um óbito. Desaparece com ele toda uma experiência de vida, de valor incomensurável, que jamais poderá ser dimensionada - nem recuperada - em sua plenitude.
Eles representam parte do vasto e descuidado patrimônio imaterial brasileiro. Não há peça de reposição para um profissional com o perfil de um sertanista calejado como Apoena - como não haverá ninguém para o lugar de Sidney Possuelo, Cláudio Romero e mais alguns poucos que insistem em continuar em suas missões. Os persistentes recebem salário ínfimo - um sertanista com nível superior ganha, em média, R$ 1.300 - e correm risco permanente: um dos mais importantes sertanistas em atividade, José Carlos Meireles, já levou flechadas; outro, Francisco Bezerra, foi alvejado por garimpeiros em Roraima. Se "o melhor do Brasil é o brasileiro", cabe ao governo e à sociedade civil valorizar o trabalho desses homens, que dedicam a vida à tarefa de preservar o futuro dos que foram usurpados do próprio passado.

CB, 16/10/2004, Opinião, p. 20

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