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Dos Andes ao Atlântico

OESP, Especial, Planeta, p. H1-H11
22 de Mar de 2011

Na trilha do ''Deus que fala''

Nos mais remotos povoados do sul do Peru, os quéchuas, descendentes dos incas, costumam se referir ao Amazonas como o "deus que fala", por causa do estrondo de suas águas nos cânions e despenhadeiros. O rio que nasce na Cordilheira dos Andes e deságua no Golfão do Marajó, que abrange os litorais do Amapá e Pará, tem o maior curso em volume e extensão do mundo e representa 16% da reserva de água doce do planeta.
No Dia Mundial da Água, o Estado publica o relato da expedição realizada pelo repórter Leonencio Nossa e pelo repórter fotográfico Celso Junior da nascente à foz do Amazonas - material reunido no livro O Rio, que será lançado pela Editora Record em abril. Em oito viagens, eles percorreram 10 mil quilômetros a pé, a cavalo, de balsa e em barcos a remo e a motor para fazer um perfil do Amazonas e registrar a vida nos povoados e cidades às suas margens. O rio tem 7 mil quilômetros, mas a equipe repetiu trechos e incluiu no percurso lagos e afluentes que ajudam a entender a dinâmica e a complexidade da formação do Amazonas e de sua bacia, de 6,8 milhões de quilômetros quadrados.
A tradicional imagem do curso barrento que serpenteia o verde da floresta é apenas um retrato de um rio de muitas faces. Ele nasce cristalino nos Andes, desce azul pelo deserto marrom do altiplano, fica verde nos precipícios do início da selva, ganha a tonalidade amarelada ainda na mata peruana e corta a Amazônia como um imenso tapete da cor de chocolate.
É um gigante que desafia a ciência. Em tempos de Google Earth, o Amazonas tem trechos ignorados até nos mapas dos governos e Exércitos do Peru, da Colômbia e do Brasil, países banhados por suas águas.

Um gigante que nasce modesto no ar rarefeito
No trecho inicial, um dos córregos que formam o Amazonas tem 1 metro de largura e menos de 30 cm de profundidade

É preciso enfrentar o frio e o ar rarefeito para chegar ao início do Amazonas. As primeiras águas do rio brotam de uma fonte do Monte Queuisha, a 5.179 metros de altitude, no deserto do altiplano peruano, em Arequipa. Dali, um filete de água desce azul a montanha entre cascalhos e se junta a outros córregos da Cordilheira dos Andes.
A Quebrada (Córrego) Apacheta é considerada a origem do Amazonas pelos governos do Peru e do Brasil. Foi o polonês Jacek Palkiewicz quem, em 1996, apontou o Apacheta como nascente do rio. Mas moradores consideram outro ribeirão, que brota a 10 quilômetros do Apacheta, como curso inicial do rio: a Quebrada Carhuasanta, que nasce no Monte Mismi, de 5.772 metros, descrita em 1971 pelo inglês Loren MacIntyre.
O Carhuasanta desce a montanha e, embaixo, corta uma área plana. Na parte baixa, ele alimenta "bofedales", formações de musgo onde animais saciam a sede. Lá as mulas usadas pela equipe do Estado param para beber água - água do Amazonas, que aqui não atinge 1 metro de largura nem 30 centímetros de profundidade. Mais adiante o córrego se junta ao Apacheta para dar origem ao Rio Lloqueta. É com esse nome que o curso d"água vai atravessar o deserto peruano, entre montanhas sem vegetação, secas.
Não há estudos sobre o impacto das mudanças climáticas nas geleiras, mas muleiros e guias afirmam que os montes gelados estão menores a cada ano. Natividad Flores, de 55 anos, guia da equipe do Estado, diz que isso ocorreu com o Mismi e outras montanhas imponentes de Arequipa, como o Misti e o Ampato.
Por causa do degelo no Ampato, o arqueólogo americano John Reihard achou em 1995 uma joia: a múmia de uma garota imolada por sacerdotes incas em oferenda ao deus Wamani. Estima-se que tinha 14 anos quando foi morta. Juanita, como foi batizada, está numa urna climatizada no Museu Santuários Andinos, em Arequipa.
Funcionária do museu, Paola Vera diz que, nos últimos anos, foram achadas 14 múmias de crianças incas sacrificadas em épocas de terremotos e inundações para "acalmar" os deuses. Crianças da nobreza, as mais belas, eram escolhidas. Juanita tem rosto largo e cabelos negros. Do lado direito do crânio, está a marca do instrumento de pedra usado pelo sacerdote que a imolou. Hoje, as oferendas dos camponeses são alpacas e lhamas, cujos restos podem ser vistos numa caminhada pelo Mismi.

Tratores destroem 5 mil anos de história

Caminhões e homens de uniformes e capacetes cor de laranja se movimentam ao longo do Rio Apurimac, nome dado ao Amazonas nesse trecho. São funcionários de uma empresa contratada pelo governo do Departamento (Estado) de Cusco para construir um canal de irrigação, que vai desviar as águas do Apurimac no Peru. Abaixo do canteiro, o rio se estreita para cerca de 20 metros, espremido por paredões. Os camponeses chamam o lugar de Garganta del Diablo.
A obra preocupa arqueólogos, ambientalistas e Ivan Escalante, chefe do Departamento de Turismo da Província de Espinar. No momento em que operários colocam dinamite nas rochas da margem do Apurimac, Escalante aborda o encarregado da obra. Reclama do desmoronamento de urnas funerárias pré-incaicas e do desaparecimento de pinturas rupestres. "Estes desenhos têm 5 mil anos!".
"Não estamos passando máquinas nas rochas", garante Crisóstomo Lloclla. "Mas da última vez que estive aqui as urnas estavam de pé", reclama Escalante. O encarregado diz a um subordinado para evitar o uso de máquinas perto das urnas. O funcionário ri. Desolado, Escalante começa a tirar fotos das urnas e pinturas. Um dos desenhos retrata um caçador com uma lança e dois guanacos - animal da família das lhamas que desapareceu há séculos do altiplano.
Disputa. O canal é só um dos problemas de Escalante. O governo de Espinar iniciou uma campanha para impedir que o Departamento de Arequipa construa uma represa nas nascentes do Amazonas, perto do povoado de Angostura. Orçado em US$ 400 milhões, o projeto prevê o represamento dos Rios Apurimac, Siguas e Colca para a construção de usinas hidrelétricas.
Entidades ambientalistas dizem que a obra trará prejuízos diretos para 45 mil camponeses. "Ela teria impacto imediato no frágil ecossistema do cânion de Suykutambo, onde há corredeiras, reservas e sítios arqueológicos", afirma Escalante.
O governo de Arequipa divulga no rádio e na TV que a represa permitirá levar água a todos os habitantes do departamento. Em campanha contra o projeto, o jornal El Sol, editado em Cusco, denuncia que metade da água represada servirá à mineradora Cerro Verde, 30% irá para irrigação e só 20% para moradias.
Ronald Cordova, gerente do projeto, divulgou relatório para defender a construção da represa. Diz que o represamento tem por objetivo promover a agricultura de exportação. Prevê produção de cebola, uva e alho para a Colômbia, orégano e tomate para o Chile, cebola e alcachofra para Brasil, Estados Unidos e Europa e tomate e uva para China e Austrália. Nada para consumo dos moradores de Cusco ou Arequipa, onde quase 50% das pessoas estão na faixa da pobreza - e mais de 10% ficam abaixo dela.
Selva. Quilômetros abaixo das nascentes, o rio se separa da cordilheira e chega aos primeiros povoados da selva peruana. No distrito de Huanoquite, o Apurimac se junta ao Rio Santo Tomás. Seu cânion se agiganta em Tincocc, a mais de 350 km da nascente, no encontro com o Rio Mantaro. São 3.907 metros de altura.
A maior altitude do cânion do Apurimac, porém, fica a 495 km do Mismi, diante do Nevado Sacsarayoc: 4.691 metros. A 600 km da nascente, começa, de fato, a selva amazônica.

Os primeiros ribeirinhos e ruínas à espera de turistas

A quase 200 quilômetros das nascentes, chegamos a Apachaqo, sítio arqueológico a 3.800 metros de altitude, perto da margem do rio. Wilber Arenas, de 26 anos, que vive ali perto, cuida das ruínas. De graça. Sonha com a chegada de turistas, mas há oito meses o livro de visitas não registra a presença deles.
Numa casa de sillar, pedra clara, moram Cecílio Ala, de 34, a mulher e os três filhos. São os primeiros moradores da beira do rio. Vivem da pesca. Ala diz que a melhor época de fisgar sutis e trutas, espécies típicas de rios de altitude, vai de maio a dezembro. "A época de chuvas não é boa para pescaria."

Máfia paga US$ 2,5 por tora de mogno
Puerto Chata é um povoado perdido na região onde o Amazonas começa a cortar a selva. Fica nas margens do Perené, afluente do rio.

Leonencio Nossa - O Estado de S. Paulo

Puerto Chata foi fundada por Francisco Sanz, o Paco. Filho de uma índia ashaninca, ele recepciona a equipe do Estado. É piloto de um barco que faz a linha até Atalaya, primeira cidade da selva peruana na beira do Amazonas.
O baixinho Paco e a mulher, Filomena, mantêm um restaurante no barranco do Perené, frequentado por índios ashanincas, pescadores e pequenos negociantes de madeira. Na varanda, Paco aponta para uma balsa que transporta caminhões carregados de cedro e caoba (mogno). "Cada caminhão carrega 34 toras de até 1 metro de diâmetro. Os madeireiros pagam aos índios US$ 2,5 por tora de caoba, madeira nobre. Uma miséria."
Paco propõe levar a equipe do Estado até a cidade de Pucallpa. Estima que de Atalaya a Pucallpa serão quatro dias de viagem num barco pequeno. Propõe pernoites em aldeias indígenas e acampamentos de pescadores durante o trajeto.
No restaurante, dois jovens ashanincas chegam para almoçar. O povo ashaninca virou escravo nos seringais no fim do século 19 e início do 20, época de ouro da borracha. "Brasileiro matou muito ashaninca", diz Paco.
Os ashanincas têm uma relação de respeito com os Rios Ene e Tambo, outros nomes do Amazonas na selva. Acreditam que são abrigo de seres mágicos, os coshoscos ou kíatzis. "Do rio tem que ter temor", afirma Paco.
Um dos índios que almoçam na casa, Camacho Villa Lobos, balança a cabeça afirmativamente, mas se mantém calado. Os ashanincas são desconfiados. "Esse Paco fala demais", reclama, depois, Camacho.
O piloto explica a introspecção dos índios. "Eles ainda se assombram com os branquinhos que aparecem. Têm medo da volta dos terroristas." O grupo guerrilheiro Sendero Luminoso dominou a região nos anos 80. Os ashanincas sofreram nas mãos da guerrilha e do governo. Guerrilheiros mataram índios, soldados mataram índios. E os dois lados, aproveitando o desejo de vingança dos nativos, os usaram para caçar o inimigo.
Paco afirma que o povoado que criou desaparecerá em dois anos, quando vence o acordo que fez com os ashanincas, donos das terras. Pelo acerto, os moradores pagam uma taxa mensal aos índios por casa construída. Os nativos não querem mais renovar o acordo. Os moradores decidiram construir novas casas em Puerto Prado, na junção do Ene com o Perené.
De manhã, entramos no barco de Paco, que tem 26 metros de comprimento, 1,40 metro de largura e capacidade para 40 pessoas sentadas em área coberta. A embarcação inicia viagem com 70 passageiros e sem coletes para todos. "A gente parece animal de carga", reclama uma mulher.
O Perené tem corredeiras. O barco, pesado, segue com dificuldade. Mais à frente, para num posto policial. É a chance de as mulheres reclamarem da superlotação. O militar apenas ouve.
Sem fiscalização. A aldeia Nueve de Octubre é ponto de pernoite de quem desce o rio, aqui chamado de Ucayali. Os moradores oferecem casas de tábua cobertas de palha, sem paredes, para viajantes amarrarem redes e mosquiteiros - sem eles a noite pode ser infernal. Em uma delas pernoita Oscar Navarro, de 48 anos, servidor do Instituto Nacional de Recursos Naturais, órgão de fiscalização ambiental do Peru. Diz que só ele e dois colegas atuam nesse trecho do rio, numa área do tamanho da França.
Navarro conta que em Pucallpa a madeira ilegal é "lavada" por meio de falsificação de documentos e segue para Lima, de onde é exportada. "Os madeireiros põem pessoas na cabeça do governo para protegê-los", afirma. Mogno e cedro são as árvores preferidas da máfia. "Os ribeirinhos vendem um tronco de árvore por 15% do valor pago na cidade. Eles dizem que fazem isso por necessidade."
Pescadores alertam que o trecho até Pucallpa é cheio de bandidos. Paco tenta amenizar. Diz que não há tanto risco assim. De manhã os homens voltam a alertar para assaltos. Um deles diz que não gostaria que os brasileiros sofressem qualquer problema na "grande pátria peruana".
Jangadeiros. É comum no verão amazônico encontrar ao longo do Ucayali grupos de 10 a 20 pessoas em grandes jangadas. Na manhã de sol intenso, 15 homens tentam, com água pela cintura, arrastar uma tora que se desprendeu da jangada em que viajavam, composta por outras 239. As toras têm cerca de 4o metros de comprimento por 1,5 metro de diâmetro.
O líder do grupo, Marden Vileacorta, de 36, conta que as famílias esperam o verão para cortar madeira, reunir dezenas de troncos em formato de jangada e revendê-las em Pucallpa. É uma atividade ilegal, admite. Os jangadeiros já estão viajando há quase sete semanas.
Enquanto cuida de um bebê de colo, Persi, e de Susi, de 3 anos, Luzmila, descendente de índios de 18 anos, prepara frangos num fogão a lenha em cima da jangada. Única adulta do grupo, é mulher de Roger, um dos 15 contratados para levar as toras.
Não há cobertura para aliviar o sol na cabeça e as duas crianças choram. O grupo ainda terá oito dias de viagem até Pucallpa. O dinheiro que eles vão receber, afirma Vileacorta, garantirá apenas um mês de sustento para cada um dos ocupantes da jangada.
Pescadores. Pucallpa está a mais de 2.300 quilômetros de distância das nascentes do Amazonas. É um dos principais mercados de peixes da região. No porto, o biólogo Roger Albitez, de 31, funcionário do governo peruano, faz anotações na sua prancheta. Verifica quais malhas estão sendo usadas, a quantidade e o tamanho dos peixes.
Na região, os pescadores utilizam dois tipos de redes, a trompera e a hondera. A primeira tem em média 60 metros de comprimento por 4 de altura. O problema, segundo o biólogo, é que um barco leva até 20 tromperas, formando uma "teia de aranha" na água e não deixando brecha para os filhotes escaparem. A formação dessas teias é proibida.
A hondera tem 160 metros de comprimento. É usada em forma de círculo, com uma ponta amarrada à outra. É uma rede autorizada, mas de uso ilegal quando o tamanho de seus quadrados é menor que 2 polegadas. Muitos pescadores usam redes com buracos de 1,5 polegada.
Quanto falta peixe, a colônia de pescadores se divide. "Tromperos" acusam "honderos" pela escassez e vice- versa. As discussões chegam a resultar em agressões e ameaças de morte.

Entre o medo de jacarés e a devastação do álcool
É madrugada em Parintins (AM). Às 5 horas, deixamos o cais numa voadeira alugada. O Amazonas, com águas paradas, é dourado nas primeiras horas do dia

Leonencio Nossa

Depois de 40 minutos, passamos pela comunidade Imaculada Conceição, também na margem esquerda, formada por dez casas de madeira ao redor de uma igreja. Mais à frente, fica a comunidade Menino Deus. Um menino rema com a canoa. A voadeira para ao lado de uma embaúba, árvore tomada de formigas. Ricardo de Souza Ramos, de 12 anos, está na 6.ª série. Acordou às 4 horas. Com malhadeira, pegou tambaquis e curimatãs. Geralmente, captura de 10 a 15 peixes por dia.
Uma mulher e uma menina pequena remam ali perto da comunidade. Os raios do sol iluminam a proa da canoa. A criança, uma menina morena, de cabelos amarrados, joga o remo para a frente. Dá uma curvada com os braços e mergulha o remo na água, como se fosse gente grande. Chama-se Jocinara e tem apenas 6 anos.
Laudicéia Silva Ribeiro, de 24 anos, é mãe de Jocinara e de outras duas meninas, Jociane, de 4 anos, e de Graziela, de 3. Conta que a escola da filha fecha em toda cheia do rio. Quando o nível do rio sobe, além de as crianças perderem aula, o alimento fica escasso, a vida, mais difícil. "No verão é só trabalho. A gente planta melancia, feijão e milho na várzea. E arrenda terras dos outros para aumentar a roça. Metade da plantação fica para a gente e metade para o dono da terra." O plantio começa em agosto, quando o nível do rio está baixo.
Laudicéia diz temer os grandes jacarés. Recentemente, moradores da comunidade mataram um animal de 6 metros de comprimento. Há três anos, um jacaré cortou a "cana" do braço de um menino.
O temor dos répteis já tinha sido registrado numa das descrições mais antigas da vida na Amazônia. No século 18, o padre João Daniel anotou em seu Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas que, para os nativos, "o jacaré é a pior cousa que cria o Amazonas".
"Se não matar, ele fica ajeitando, a gente tem de ter a prudência de matá-lo", diz Laudicéia. "Um casco como este em que estamos não é nada para ele."
Cunhado. Em minutos, a ribeirinha toma confiança e começa a falar de um drama que a assusta até mais que os grandes jacarés: o alcoolismo, que atinge várias famílias locais. Laudicéia conta que o pai abandonou sua mãe por causa da bebida. "Aqui, na comunidade, não se vende bebida. Mas quem gosta não acha distância. A bebida persegue a comunidade."
"A gente não está com o coração bom para suportar essas coisas. Um cunhado há pouco tempo saiu para pescar e morreu afogado", conta. "Tinha bebido. Um homem não morre afogado quando está bom da cabeça." O cunhado, Raimundo Graça Pantoja, tinha 31 anos. Deixou quatro filhos.
Laudicéia diz que o marido, Graciélio, de 28, não bebe. Ele, porém, sofre com o alcoolismo do pai. "Meu sogro é boa pessoa. Quando bebe aparece com um terçado querendo matar todo mundo. Não sabe o que está fazendo. A gente fica com medo. Graças a Deus, meu marido não bebe. Ele tem raiva do pai."
As mulheres e os líderes das comunidades da região não sabem como lidar com o problema, diz Laudicéia. "Quando falta dinheiro e começa o desespero, os homens tomam óleo diesel dos tambores nos barcos."

Vila investe em educação, mas padre rejeita aula em igreja
Comunidade que passou a atrair crianças de localidades vizinhas não tem mais espaço para abrigar todo mundo

Leonencio Nossa

Depois de percorrer igarapés e um trecho do Rio Paraná de Ramos, na região de Parintins, a voadeira entra no Aicurapá. É marcante o contraste das águas no encontro do barrento Ramos com o negro Aicurapá. Num trecho da margem esquerda deste último, no alto de um barranco, está a comunidade do Maranhão, onde vivem 130 famílias.
Na comunidade, há um esforço dos adultos pela educação. Foi o que bastou para receber crianças vindas das cabeceiras, dos pequenos igarapés, dos furos, dos trechos mais distantes da várzea, dos lugares onde não se sabia ter moradores. Elas apareceram, com os pais ou sozinhas, em canoas, às vezes duas ou três na mesma embarcação.
Oito professores trabalham em turmas de 1.ª a 8.ª séries no colégio local. Vanderléia Valente, funcionária da escola, leva a equipe do jornal até a igreja da comunidade, que virou sala de aula. "Num sermão, o padre disse que não quer mais saber de estudante na igreja, que igreja é lugar de rezar. Ele é enjoado."
A professora de português Miracir Ribeiro trabalha há 18 anos em escolas do interior do Amazonas. "A água aqui determina o período letivo. Há aulas na várzea enquanto a água permitir", diz.
Miracir usa textos de Cecília Meireles, Marina Colasanti e Jorge Amado nas aulas. Nesta tarde, faz com uma turma de 6.ª série a leitura do texto O Sofá Estampado, de Lygia Bojunga Nunes. Mãe de quatro filhos, Miracir fala das dificuldades na cheia. "Acho que falta uma política de governo para amparar o ribeirinho. Por mais que ele esteja preparado, é sempre complicado: as plantas morrem, os animais fogem para não morrer ou são mortos pelas sucurijus."
Um grupo de homens trabalha na construção de um novo galpão de madeira para abrigar as crianças. Valdo Rodrigues de Oliveira, de 38 anos, lidera o grupo e a comunidade. Ele pertence à elite local, formada pelos donos de barco de pesca. Hoje, só duas famílias dispõem de embarcações que podem ficar semanas no rio, em pescarias de rede. Cada barco tem cerca de 15 metros e pesa 8 toneladas. Dezenas de homens trabalham com eles.
Espaço. "A dificuldade é espaço físico. A gente não cuida só de nossos filhos, cuida dos meninos de outras comunidades, que não são avançadas como a nossa", afirma Valdo. Ele diz que há 270 matriculados na escola, o triplo do número de meninos e meninas da comunidade. "Foi para atender a demanda de fora que colocamos crianças na igreja."
O líder comunitário fala das reivindicações feitas a prefeitos e parlamentares, sem sucesso. "Precisamos de escola mais digna para os nossos filhos. Tenho quatro estudando na escola. Mas logo depois eles não vão ter mais ensino. A gente ainda não tem o 2. grau."
Por três meses a prefeitura não pagou o salário dos quatro barqueiros que transportam crianças para o Maranhão. "Os barqueiros continuam no serviço por amor às crianças."

Decisão de preservar árvores irrita madeireiros

A comunidade do Maranhão abriu uma nova frente de roças e extração de recursos naturais, de 100 hectares. Cada família tem direito a trabalhar num lote. Partiu dos próprios moradores a ideia de fazer reflorestamento com mudas de andiroba e a aprovação da regra de não derrubar uma única árvore nativa de grande porte. A medida, tomada em assembleia, causou a revolta de madeireiros da região. Eles investem agora nas comunidades próximas de Icurupá e Momurá.
"Toda semana descem balsas carregadas de madeira. Teve serraria que propôs urbanizar toda a comunidade em troca de nossa floresta. Mas ninguém aqui abre mão, nem as famílias que têm barco, nem as famílias que vivem do trabalho na colônia", diz o líder comunitário Valdo Rodrigues de Oliveira. "A nossa floresta é para uso próprio. Só retira madeira para fazer casa, canoa, escola, Isso quando não dá para aproveitar madeira antiga."
Valdo reclama das pressões. "Tem momento em que a gente tem de ser firme para aguentar. No meu governo e depois como comunitário, vou apitar contra as serrarias", garante. "Aqui a gente tem maçaranduba, itaúba, louro, cedrinho, acupiúba, tudo madeira de lei. Há maçaranduba que cinco homens de mãos dadas não abraçam."
A maioria dos moradores do Maranhão vive da mandioca, de vendas de verduras na feira do fim de semana em Parintins, da coleta de açaís na floresta, dos doces e vinhos de ixi, xi coroa e ixi liso, frutas no formato de um ovo de galinha, de sabor adocicado. O cheiro da fruta é tão forte que atrai pacas, antas e tatus. O caçador faz gaiolas perto de árvores de ixi para capturar os bichos nos meses de abril e maio, época de colheita.

No Seculus, a viagem de 14 horas rumo ao estuário de 340 km
O barqueiro Jeová Gomes da Costa, de 34 anos, é o único no porto de Santana, cidade próxima a Macapá, a aceitar fazer a viagem até o arquipélago do Bailique, a 150 km dali, onde o Amazonas termina

Leonencio Nossa

O trajeto, de 14 horas, é arriscado, de pororocas, diz Jeová, antes de mostrar o barco, chamado Seculus, de 13 metros de comprimento. O piloto conta que, aos 16 anos, ganhou de uma tia um relógio da marca Seculus. Perdeu o presente quando jogava uma rede. Mais tarde, quando comprou o primeiro barco, batizou-o com o nome da marca.
Jeová vivia no interior do Amapá. A mãe, lavadeira, cansada da vida que levava com o marido, pôs os quatro filhos num barco e se mudou para Santana. Jeová começou a trabalhar cedo. Garoto, ficava horas olhando pilotos atracarem. "Sou agora um dos melhores, me orgulho de ser." As conversas regadas a cachaça no cais dos pescadores e pilotos foram úteis para o menino. "Tem de conhecer o vento, a lua."
Lembra do "sufoco mais feio" que enfrentou como piloto. Viajava à noite quando uma tora entrou por baixo do barco, que ficou por cima do tronco, sem rumo. Desceu quilômetros até ser resgatado por uma embarcação.
Depois de quase 14 horas de viagem e quatro tempestades, o Seculus entra num canal do Bailique. A primeira parada é na comunidade de Itamatatuba. No cais, pescadores mostram surpresa. Dizem não acreditar que um barco tão pequeno tenha feito o trajeto desde Macapá.
Últimas porções de terra banhadas pelo Amazonas, as oito ilhas do arquipélago ficam numa ponta do grande delta do rio, um estuário de 340 quilômetros de boca. Mais de 700 pessoas vivem em Bailique, Faustino, Meio, Curuá, Franco, Marinho, Brigue e Parazinho. Trabalham na construção de barcos, na pesca de cação no mar, do tamuatá (peixe típico da Amazônia) nos igarapés e do camarão, na extração de palmito e açaí e na coleta de mel. Vendem ainda grude, bexiga do peixe gurijuba, usado no preparo de colas como Superbonder.
A comunidade não tem médicos permanentes. Em caso de emergência, é preciso fazer a viagem até Macapá. Escolas funcionam de forma precária e não há eletrificação. Geradores garantem luz até as 23 horas.
No inverno, as águas transformam cada casa em uma ilha. Elevadas a pelo menos 2 metros do chão, as casas de madeira são interligadas por pontes e travessas. Galinheiros, banheiros e hortas também são suspensos.
Numa casa espaçosa mora a professora Itaciara Isacksson, de 38, filha de brasileira com sueco. Ela vivia na cidade de Ferreira Gomes antes de se mudar para o Bailique para lecionar. "Queria viver longe da cidade onde tive um casamento infeliz." No arquipélago conheceu José de Paula Guedes, de 44, construtor de casas. Casaram-se há três anos.
Itaciara conheceu no Bailique outro tipo de criança, da civilização da água. A maioria nunca saiu de lá. Há pouco um helicóptero do serviço de saúde pousou em Itamatatuba. As aulas tiveram de ser suspensas. "Não teve quem segurasse os meninos nas salas." Algumas crianças passaram mal, de tanta emoção. "A vida delas é no rio", diz. "Os estudantes costumam levar até uma hora para chegar à escola. Há dois anos duas crianças voltavam da escola quando uma onda virou a canoa. Elas morreram."

Água do Amazonas se mistura com o mar e chega ao sul da Flórida
Caminho até farol da última ilha banhada pelo rio é infestado de aranhas e lagartos

Leonencio Nossa

Depois de uma breve parada no povoado de Macedônia, o Seculus segue para a ilha do Parazinho, que tem um farol. Lá, segundo moradores, o Amazonas termina. Falam em 15 minutos até o local exato do farol. Mas só depois de duas horas de navegação, enfrentando marolas, é possível avistar a ilha. A ideia do piloto era desembarcar em frente da casa do faroleiro, mas a maré está baixa. Ele segue, então, até uma ponta da ilha. O trecho até o farol terá de ser percorrido a pé.
É preciso tirar os calçados e caminhar com água nos joelhos até uma praia. A areia está tomada de mururés, planta que flutua no rio, com flores roxas. Distante da margem, um petroleiro solta uma fumaça negra, que contrasta com a brancura do cenário. Lá, a água ainda é apenas salobra. Numa ilhota próxima, os arbustos parecem estar mais escuros. Bate um vento, e tudo se move. São gaivotas, milhares delas.
Para chegar até o farol é preciso percorrer um riacho estreito e raso, de 4 metros de largura. Cardumes de um peixe fino e transparente com olhos para fora da água nadam rente à superfície. São tralhotos, espécie com a retina bipartida, que, segundo alguns, enxerga debaixo e por cima da água ao mesmo tempo, sempre atenta a predadores. "O tralhoto gosta desse tipo de água, quentinha e um pouco salobra", diz o barqueiro Jeová.
O barulho que vem das margens, semelhante a de uma pessoa correndo atabalhoada pela vegetação rasteira, é de lagartos. A lama cobre as canelas. Temos de andar agachados, quase rastejando, por entre cipós e aturiás com espinhos. Aranhas e caranguejos estão por toda a parte.
A 50 metros, está o farol da ilha, infestado de cabas, abelha ferroenta que causa intensas dores no corpo e gosta de picar olhos. Do alto se avista o rio se aproximando do mar. O rio descendo, o mar esperando. O mar subindo, o rio aceitando.
Em imagens de satélite é possível ver o ponto exato em que as águas barrentas do rio perdem espaço definitivamente para o mar. Calcula-se que 3 milhões de toneladas de sedimentos são lançadas no mar pelo Amazonas todo dia; num mês é como jogar um Pão de Açúcar nas águas salgadas. Elas servem de adubo para plantios de arroz nas Guianas, a quase 2 mil quilômetros dali. As águas do rio passam pelo Caribe, chegam ao sul da Flórida. O Amazonas lança 214 milhões de litros no mar por segundo. Duas horas desse fluxo seriam suficientes para abastecer São Paulo ou Nova York por um ano.

OESP, 22/03/2011, Especial, Planeta, p. H1-H11

http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,na-trilha-do-deus-que-fala,695…
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110322/not_imp695356,0.php
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110322/not_imp695357,0.php
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110322/not_imp695359,0.php
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,mafia-paga-us-25-por-tora-de-m…
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,entre-o-medo-de-jacares-e-a-de…
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,vila-investe-em-educacao-mas-p…
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110322/not_imp695342,0.php
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,no-seculus-a-viagem-de-14-hora…
http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,agua-do-amazonas-se-mistura-co…

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