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Dorothy Stang e a impunidade

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: VANNUCHI, Paulo
07 de Jul de 2006

Dorothy Stang e a impunidade

Paulo Vannuchi

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na semana passada, em apertada votação de 3 a 2, conceder hábeas-corpus ao fazendeiro que estava preso desde abril de 2005, acusado de ser o principal mandante do assassinato de Dorothy Stang, religiosa americana que viveu 39 anos no Brasil, dedicando-se à defesa da população pobre e da Floresta Amazônica, no estado do Pará.
Os autos do processo registram que a missionária de 73 anos foi executada friamente no dia 12 de fevereiro do ano passado, em Anapu, com uma Bíblia na mão, pelos pistoleiros Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Batista, contratados pelo intermediário Amair Feijoli Cunha por R$ 50 mil, sob encomenda do fazendeiro agora libertado, Regivaldo Pereira Galvão, conhecido como "Taradão", e de Vitalmiro Bastos Moura, ainda preso.
A decisão do STF motivou forte reação das entidades vinculadas à defesa dos direitos humanos e do meio ambiente em nosso país, que viram a decisão judicial como novo sinal de tolerância frente à impunidade. A Comissão Pastoral da Terra lembrou que, nos 774 assassinatos ocorridos no Pará nos últimos 35 anos, em conflitos agrários, nunca ocorreu a condenação de um único mandante.
Ao protestar contra a atitude do Supremo, manifestam também sua legítima preocupação com a possibilidade de "Taradão" aproveitar os efeitos do hábeas-corpus para evadir-se da Justiça ou, pior ainda, utilizar seus recursos econômicos e sua fama de violento para corromper, fazer chantagem, pressionar e ameaçar, criando reais obstáculos ao livre desenvolvimento do processo judicial.
Vale recordar que neste mesmo espaço de imprensa, no dia 16 de junho, os irmãos de Dorothy Stang e a diretora do Robert F. Kennedy Memorial Center for Human Rights, de Washington, Emily Goldman, apelaram à Justiça e especialmente ao ministro César Peluzo, do STF, para que o acusado principal não fosse posto em liberdade. Solicitaram ainda ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a mim que nos manifestássemos publicamente sobre a questão, denunciando a impunidade como inaceitável.
A impunidade é inaceitável e estão cobertos de razão os autores daquele artigo. Todas as autoridades públicas, dos três poderes e dos três níveis federados, deveriam unir-se num pacto comum para erradicação dessa praga secular, que segue maculando o Judiciário brasileiro e nosso sistema público de segurança. Enquanto o cidadão comum sentir que existe notória desigualdade nas condições de aplicação da lei, conforme o grau de influência e segundo os recursos de que disponham os acusados, será difícil consolidar no Brasil a idéia de que o primado da lei rege a existência do Estado de direito.
Não se trata de fazer, aqui, uma polêmica rebaixada com ministros do Supremo, que certamente seguiram sua própria convicção jurídica em torno da excessiva duração da prisão preventiva de "Taradão". As decisões do STF precisam ser respeitadas e acatadas, mesmo quando se discorde delas.
O problema deve ser enfrentado por um enfoque amplo, de sistema. É preciso introduzir novos aperfeiçoamentos em nossas instituições jurídicas, como os já trazidos pela Reforma do Judiciário, que instituiu o Conselho Nacional de Justiça e abriu a possibilidade de federalização de processos relacionados à grave violação de direitos humanos.
Duas medidas urgentes podem ser adotadas imediatamente pelas autoridades públicas. A primeira é impedir, com os expedientes legais que limitam as ações de réus em crimes tão graves enquanto sub judice , que efetivamente fujam da Justiça e pressionem testemunhas e advogados.
A outra decisão compete ao Tribunal de Justiça do Pará, que tem em mãos a chance de confirmar a mudança que o Brasil aplaudiu em dezembro de 2005, quando em prazo recorde os dois pistoleiros que assassinaram Dorothy foram condenados a penas exemplares, de 27 e 17 anos de prisão em regime fechado, sendo o intermediário igualmente condenado a 18 anos em abril de 2006.
Condenados os dois mandantes a penas tão exemplares quanto as aplicadas aos três outros integrantes do consórcio assassino, o Brasil terá respondido positivamente aos irmãos de Dorothy Stang nesta página, quando desafiavam o sistema jurídico brasileiro a "demonstrar que pode proteger e protegerá os direitos humanos e honrará suas obrigações nacionais e internacionais de fazê-lo".

Paulo Vannuchi é secretário especial dos Direitos Humanos da Presidência da República

O Globo, 07/07/2006, Opinião, p. 7

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