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Donos da natureza

Veja, p. 94-95
26 de Jan de 2005

Donos da natureza
Empresários, agricultores e artistas transformam suas terras em reservas, hoje responsáveis pela preservação de dezenas de espécies de animais

André Rizek

Toda vez que o assunto é o meio ambiente, o Brasil é lembrado como destaque na mesma triste categoria: a da devastação. A última edição do Guinness Book, o livro dos recordes, apontou o país como campeão mundial de desmatamento. O último relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revela que, a cada ano, só na Amazônia, uma área do tamanho do estado de Sergipe vira fumaça. A velocidade da destruição é tamanha que já ameaça de extinção 398 espécies de animais terrestres. Se o poder público vem sendo derrotado na tentativa de frear esse processo, o mesmo não se pode dizer da iniciativa privada. Parte dela a mais bem-sucedida ação já empreendida no Brasil, no entender de especialistas, com o objetivo de proteger as florestas nacionais. As Reservas Particulares do Patrimônio Natural - áreas privadas transformadas em reservas ambientais por iniciativa de seus proprietários e com o aval do Estado - cresceram 86% nos últimos cinco anos, ocupam hoje uma área equivalente a quase quatro vezes a da cidade de São Paulo e vêm servindo de inspiração para países como a Costa Rica, que já adotou o modelo. "Se existe uma iniciativa para a conservação da biodiversidade que vem dando certo no país é essa", diz a consultora Maria Tereza Jorge Pádua, ex-presidente do Ibama e membro da comissão mundial de parques nacionais.
O Brasil possui 656 reservas particulares - 75% delas pertencentes a pessoas físicas: agricultores, profissionais liberais, empresários e artistas como o cantor Ney Matrogrosso e o fotógrafo Sebastião Salgado. Do tamanho de um campo de futebol ou com extensão equivalente à da cidade do Rio de Janeiro, elas têm o mesmo status de um parque nacional como o da Chapada Diamantina (BA) ou o dos Lençóis Maranhenses (MA). Ou seja: são indevassáveis, protegidas por fiscalização federal e só podem ser usadas para pesquisa científica ou visitação. Para o Estado, são um ótimo negócio: economizam o custo da desapropriação. Para os proprietários, a contrapartida vem na forma de isenções fiscais e prioridade na concessão de créditos e financiamentos federais destinados à área ambiental.
Uma das mais antigas reservas particulares do país pertence ao empresário fluminense Russell Coffin, 55. Filho de um industrial americano do ramo de refrigerantes, ele criou, em 1990, a Caraguatá - uma área de 4.300 hectares de Mata Atlântica e floresta de araucárias localizada em Santa Catarina. A reserva abriga cinco nascentes de rios que abastecem duas cidades da região, e a riqueza de sua mata é tamanha que dentro dela já foram avistados dois pumas. A presença do animal é, para especialistas, um atestado de "saúde" do ecossistema, já que o puma, em processo de extinção, só habita grandes áreas plenamente preservadas. Coffin diz já ter investido no projeto mais de 3 milhões de dólares ao longo de quinze anos. A maior parte do dinheiro foi usada na construção de postos de observação e compra de equipamentos de fiscalização, que incluem até câmeras de monitoramento noturno. No caso do empresário, trata-se de um investimento a fundo perdido. "Há milionários que gostam de usar a fortuna comprando jatinhos e jogando em cassinos. Eu sinto prazer em gastar meu dinheiro ajudando a preservar o meio ambiente", costuma dizer. A lei não impede, porém, que uma reserva particular seja lucrativa. O mineiro Evandro Ayer e sua mulher, Catarina, por exemplo, fizeram da sua um meio de vida. Aberta à visitação, a Vaga Fogo, na cidade goiana de Pirenópolis, tem apenas 17 hectares. Embora esteja localizada em uma região de cerrado, de vegetação rasteira, abriga uma rara mata ciliar: a floresta é densa e povoada por preciosidades como pés de jatobás de 20 metros de altura. No ano passado, 12.000 turistas pagaram 10 reais cada um para percorrer as trilhas da Vaga Fogo, apreciar suas corredeiras e praticar arvorismo. Com isso, os Ayer conseguem uma renda mensal de 10.000 reais.
Em 1990, quando as reservas particulares foram criadas, existiam apenas seis no país. Dez anos depois, elas já eram 350. Em 2000, no governo Fernando Henrique, uma alteração na legislação fez com que passassem a ter prioridade na fila para a obtenção de financiamentos de projetos ambientais. A mudança atraiu investimento maciço do terceiro setor, e o número de reservas particulares saltou para as atuais 656. "A grande vantagem para o país é que uma reserva privada não depende das complexidades nem da inoperância do poder público para ser estabelecida e se manter", diz a consultora Maria Tereza Pádua. Hoje, para que uma área possa virar reserva particular, o Ibama exige que ela tenha: 1) importância biológica, ou seja, uma variedade de fauna e flora a ser preservada; 2) beleza cênica (uma coleção de belas cachoeiras, por exemplo); 3) mata nativa preservada ou passível de regeneração. Em relação ao primeiro requisito, a reserva do Sesc Pantanal, em Mato Grosso, é prodigiosa. Com 106.000 hectares, área equivalente à de 128 000 campos de futebol, é a maior do Brasil e abriga 78 espécies de mamíferos - entre elas, dezenas ameaçadas de extinção, como a onça-parda e a onça-pintada, o lobo-guará e o cachorro-do-mato-vinagre. Cortada pelos rios Cuiabá e São Lourenço, a área foi comprada pelo Sesc em 1994. Antes disso, era ocupada por dezenove fazendas de gado - sua mata nativa estava devastada pelos pastos.
Hoje, com a floresta em processo de regeneração, a reserva transformou-se na maior área pesquisada do Pantanal Mato-Grossense. Duzentos exemplares de arara-azul já sobrevoam a região identificados por chips e há um ano uma equipe de biólogos contratada pelo Sesc monitora, por meio de transmissores, os hábitos de mamíferos da região ameaçados de extinção. Onças-pardas, onças-pintadas e lobos-guarás, por exemplo, têm os movimentos acompanhados por meio de colares que, instalados em seu pescoço, emitem ondas de rádio que permitem aos pesquisadores saber quantos quilômetros eles percorrem por dia e em que locais estão caçando.
O Brasil é, segundo a ONG Conservação Internacional, o campeão mundial em riqueza de biodiversidade. Do 1,7 milhão de espécies animais já catalogadas, 23% estão em território nacional. E, de cada cinco espécies vegetais do planeta, uma se encontra no Brasil. Só a reserva Caiman, pertencente ao empresário Roberto Klabin, no Pantanal Sul, abriga um número maior de espécies de aves do que as catalogadas em todo o continente europeu. É uma riqueza sem tamanho - e ainda inexplorada. Mais de 70% de todos os princípios ativos que a medicina usa na fabricação de remédios, incluindo a penicilina, foram revelados pela medicina botânica - e isso levando-se em conta que apenas 5% da flora mundial foi estudada até hoje. A preservação das matas brasileiras, portanto, é uma questão crucial para o futuro da biotecnologia. "A cada espécie extinta no país, o mundo perde um pequeno tesouro", afirma o professor doutor da Universidade de São Paulo Álvaro Fernando de Almeida, especialista em gestão ambiental. No Brasil, essa preservação hoje depende, em grande parte, das reservas particulares - e dos homens de boa vontade dispostos a embrenhar-se na floresta de burocracia exigida pelo governo para instalá-las. A tarefa requer paciência: o processo pode levar até quatro anos.

Florestas privês
Entenda o que são e como funcionam as reservas particulares
O que são - Terras particulares que, por iniciativa do proprietário, se tornam áreas de conservação da natureza protegidas por lei
Onde ficam - São 656 unidades espalhadas por todos os estados, totalizando uma área de 519 000 hectares
Quem são os donos - Empresários, profissionais liberais, artistas, empresas e ONGs
Vantagens que oferecem ao País
Desoneram o Estado da aquisição de terras destinadas à preservação ambiental
Ajudam na preservação de espécies em extinção
Vantagens que oferecem aos proprietários
Proteção da Polícia Federal e Florestal e do Ibama
Facilitação na obtenção de crédito junto ao terceiro setor e ao governo
Isenção de impostos rurais

Pagos para preservar
Foi graças à ação de uma organização não-governamental que os Estados Unidos se transformaram no país com a maior extensão de áreas preservadas nas mãos da iniciativa privada: quase 1% de seu território é composto de reservas particulares semelhantes às existentes no Brasil. Desde os anos 50, a ONG The Nature Conservancy lidera um pool de entidades ambientalistas cuja missão é arrecadar fundos para pagar proprietários que se comprometam a não desmatar suas terras. "A diferença em relação ao modelo brasileiro é que, nesse caso, a iniciativa da preservação não parte dos donos das terras", diz o engenheiro florestal Roberto Mesquita, que estudou as reservas ambientais da Costa Rica. Lá, entre públicas e privadas, elas ocupam 26% do território nacional. No Brasil, essa porcentagem é de 6% (incluindo as reservas particulares), o que deixa o país na lanterna do ranking da preservação na América Latina: é o 17o colocado entre 22 países. "Além de existirem em número reduzido, as áreas de preservação brasileiras estão em situação precária", afirma Adriana Ramos, coordenadora do Instituto Socioambiental, com sede em São Paulo. Segundo o Fundo Mundial para a Natureza, para cada 10 000 quilômetros quadrados de área de conservação, são necessários 27 funcionários. O Brasil tem uma média de quatro - o que faz com que parques nacionais como o da Chapada Diamantina, na Bahia, atualmente não tenham nem sequer portaria para controle de visitantes.

Veja, 26/01/2005, p. 94-99

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