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Dom Luiz e o São Francisco

FSP, Dinheiro, p. B2
Autor: BATISTA JR, Paulo Nogueira
15 de Mar de 2007

Dom Luiz e o São Francisco

Paulo Nogueira Batista Jr

Retomo um tema que sempre me causa certa angústia. Anteontem, o governo publicou no "Diário Oficial" o edital para o início das obras do projeto de transposição de águas do rio São Francisco. Estão previstos gastos de R$ 3,3 bilhões para as obras. O governo estima que a despesa total alcance R$ 6,6 bilhões, incluindo, além da construção de canais, gastos com projetos executivos, supervisão das obras e aquisição de equipamentos, entre outros. Desde o início da semana, centenas de representantes de movimentos sociais estão acampados em Brasília, reivindicando a retomada do diálogo com o governo, a revitalização do São Francisco e o arquivamento do projeto de transposição.
A minha atenção para o drama do São Francisco e das populações que dele dependem foi despertada pela greve de fome realizada pelo bispo Luiz Flávio Cappio em outubro de 2005, em Cabrobó. A greve foi suspensa por acordo negociado pelo então ministro Jaques Wagner, atual governador da Bahia. O ponto mais importante do acordo foi a promessa do governo de "prolongar o debate" sobre a transposição das águas do São Francisco, "ainda na fase anterior ao início de obras, para o esclarecimento amplo de questões que ainda suscitem dúvidas e divergências", conforme documento negociado com dom Luiz pelo ministro Wagner e aprovado pelo presidente Lula.
Pelo que sei, esse debate apenas começou. O ano de 2006, dominado pelas eleições, não foi propício ao aprofundamento da discussão. A polêmica é intensa e o projeto vem dividindo o Nordeste. Em artigo publicado há poucos dias pela "Agência Carta Maior", Leonardo Boff advertiu que, se o governo levar adiante o projeto sem levar em conta a existência de alternativas que muitos especialistas consideram mais baratas e socialmente mais eficazes, "podemos contar com nova greve de fome do bispo". E acrescentou: "Entre o povo que não quer a transposição e as pressões de autoridades civis e eclesiásticas, dom Luiz ficará do lado do povo. E irá até o fim. Então a transposição será aquela da maldição, feita à custa da vida de um bispo santo e evangélico. Estará o governo disposto a carregar essa pecha pelo futuro afora?".
Um bispo "santo e evangélico". Em minha vida, já conheci homens de grande espírito público (Octavio Gouvêa de Bulhões e meu pai, por exemplo), já conheci figuras heróicas (Dilson Funaro), mas devo dizer que nunca havia conhecido um santo, o que não é de espantar dada a extraordinária raridade do fenômeno. No ano passado, contudo, tive a honra de me encontrar diversas vezes com dom Luiz. Quem sou eu para dizer quem é ou não é santo? Mas Leonardo Boff tem autoridade e conhecimento para tal. Conhece dom Luiz há muito tempo, foi seu professor no seminário de teologia em Petrópolis, no início dos anos 70, e tornou-se seu amigo e admirador. Desde aquele tempo, relembrou Boff em artigo escrito na época da greve de fome, ele se destacava por "uma aura de simplicidade e santidade".
No final de fevereiro, dom Luiz esteve em Brasília para protocolar carta ao presidente da República. Nessa carta, ele observa que a Agência Nacional de Águas propõe 530 obras para solucionar os problemas de abastecimento hídrico até 2015 em todos os núcleos urbanos com mais de 5.000 habitantes do semi-árido. "Essas obras", escreveu dom Luiz, "beneficiariam as populações mais necessitadas e custariam R$ 3,6 bilhões, sendo portanto mais baratas, mais abrangentes, mais eficientes do que qualquer obra de transposição hídrica".
Dom Luiz não faz ameaças. Pede apenas "que se retome o diálogo e que se garanta que seja amplo, transparente, verdadeiro e participativo, incluindo toda a sociedade do São Francisco e do semi-árido, conforme foi pactuado em Cabrobó em outubro de 2005".
Se as dúvidas são tantas, se há tanta incerteza sobre os méritos do projeto de transposição, esse apelo precisa ser atendido. O governo deve ter argumentos fortes, suponho, que podem ser apresentados à opinião pública e debatidos com os críticos do projeto. Trata-se de cumprir o que foi acordado pelo governo, em negociação difícil e até dramática, graças à qual se preservou a vida de dom Luiz e se abriu a perspectiva, ainda não concretizada, de uma discussão profunda sobre a transposição e as alternativas.

Paulo Nogueira Batista Jr., 51, economista e professor da FGV-Eaesp, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).

FSP, 15/03/2007, Dinheiro, p. B2

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