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Dois sucos e a conta

O Globo, Revista O Globo, p. 8
Autor: SIRIDIWÊ, Jurandir
27 de Mai de 2007

Dois sucos e a conta

Jurandir Siridiwê olhou para o horizonte e pensou: "Não vou mais ter esse gosto." Ele tinha uns 7 anos, e havia sido chamado pouco antes pela mãe para uma conversa. "Filho, seu nome foi citado", ela disse, com um misto de orgulho e tristeza, enquanto fazia cafuné no menino. "Mas é para seu bem e da nossa cultura." Siridiwê tinha sido um dos oito garotos escolhidos para uma missão especial: viver com os brancos. A idéia de seu avô, batizada de Estratégia Xavante, baseava-se num princípio: "Ninguém respeita aquilo que não conhece. Se eles não entenderem nossa cultura, nunca vão nos respeitar."

As crianças índias tinham como objetivo estudar o mundo dos brancos, e, na volta, defender suas terras e suas tradições - uma história que está sendo contada em documentário por Belisário Franca. Os oito foram enviados para Ribeirão Preto (SP) porque, anos antes, o paulista Paulo Barbosa tornara-se amigo dos xavantes e arrumou famílias dispostas a adotar os meninos. A partir de 1970, eles saíram de sua aldeia no Mato Grosso. Siridiwê foi na última leva, em 1976, com o primo Paulo Cipassé. Dos oito, só ele não voltou. Mora hoje em São Paulo, num "apê", como diz.

Virou uma espécie de embaixador do povo xavante e tornou-se uma das mais atuantes lideranças indígenas do país.

...com Jurandir Siridiwê

Revista O Globo: O que foi a Estratégia Xavante?

Jurandir Siridiwê: Meu avô, o cacique Apoena, chamou seus filhos e disse: "Estamos encurralados. Quero os filhos de vocês, oito meninos, para ir à cidade." Foram escolhidos só primogênitos, de linhagem nobre. A idéia era defender nosso mundo. Para isso, tínhamos que entender o cerne de uma cultura que não era a nossa, voltarmos e depois discursarmos de igual para igual com os brancos. Meu pai me disse: "Você foi um dos escolhidos. Mas é uma coisa boa. Vocês são especiais. E é inevitável, porque os de fora estão chegando." Fomos em anos diferentes, para famílias de classes sociais diferentes. Éramos da aldeia Pimentel Barbosa, primeira reserva xavante que foi demarcada.

Como foi sair criança da aldeia para a cidade grande?

Siridiwê: Quando cheguei à cidade de Barra, achei o cheiro ruim, de restaurante. Deu enjôo, dor de cabeça, reação no nariz, a boca secou.
Em Ribeirão Preto, minha mãe de criação me agarrou. Achei estranho, não sabia o que acontecia, na nossa cultura não tem isso de abraço.
Quando bati com a cabeça no carro, ela me deu beijinhos, também estranhei. Na escola, minha turma ficou honrada, mas nas classes mais velhas havia quem debochasse. Conquistei as crianças porque desenhava bem. E enquanto elas faziam prédios e carros, eu desenhava rios, jacarés, bichos do cerrado. E ninguém ganhava de mim na educação física. Aqueles garotos não tinham liberdade. Eu estava acostumado a mergulhar, nadar, correr, subir em árvore, pular.

A estratégia de seu avô funcionou?

Siridiwê: Sim. Tivemos aumento demográfico e territorial, temos tecnologia, como internet, somos a aldeia mais antenada. Ao mesmo tempo, mantivemos valores e tradições. Os meninos que saíram, exceto eu, têm postos na comunidade e assumiram a administração. Fiquei na cidade, eu era muito bom nos estudos. Em 1982, cheguei a voltar para a aldeia, dei aulas, mas senti-me amarrado. Meus pais biológicos ficaram ao meu lado, firmes ante às pressões para que eu permanecesse na aldeia, achavam que na cidade eu contribuiria mais. Estudei geologia em La Paz, na Bolívia, e estou no curso de relações internacionais da Faculdade Integrada Rio Branco.
Tranquei matrícula, mas vou reabrir no segundo semestre. Não se usa mais borduna e arco e flecha, a linguagem atual é a da diplomacia. Sou presidente do Instituto das Tradições Indígenas (Ideti), atuo mais no lado político.

Você usa relógio, camisa pólo, calça jeans, tênis All Star. Após tanto tempo com os brancos, sente-se índio?

Siridiwê: Sou xavante. O DNA está gravado. Um americano veio conhecer nossa aldeia, olhou para mim e para o Zé Paulo, que também foi para Ribeirão Preto e hoje é motorista da Funai na comunidade, e pensou: "Que índios coisa nenhuma." No caminho, Zé Paulo deu um cavalo de pau, saltamos, entramos na mata cerrada e, numa fração de segundos, o Zé Paulo tinha matado uma anta imensa. O americano ficou chocado. A gente brincou dizendo que fez aquele show bizz todo só para ele.

O Globo, 27/05/2007, Revista O Globo, p. 8

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