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Dois pesos e duas medidas na dívida ambiental

O Globo, Economia, p. 36
10 de Jun de 2007

Dois pesos e duas medidas na dívida ambiental
Nos EUA há 3 vezes mais informações sobre empresas brasileiras do que aqui. Passivo só está em 29% dos balanços

Cássia Almeida e Liana Melo

A questão ambiental ainda é um tabu entre as empresas. Das 500 maiores, só 29% declaram seus passivos em balanço, segundo o "Anuário Gestão Ambiental". Não bastasse isso, levantamento de Aracéli Ferreira, doutora em Ciências Contábeis da UFRJ e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Contabilidade Ambiental e Relatórios Sociais em parceria com o CNPq, mostra que há mais informações ambientais nos relatórios para o investidor americano do que para os brasileiros. Em alguns casos, como nos riscos e custos ambientais, há apenas cinco citações nos balanços brasileiros encaminhados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) contra 19 nos relatórios apresentados à bolsa americana.

- O investidor normal é que sofre com a diferença na divulgação dos dados. Trata-se de uma desigualdade que pode favorecer investidores estrangeiros em detrimento dos do próprio país. Isso é inaceitável.

Essa assimetria de informação só não atinge os analistas de mercado, porque eles são versados em contabilidade e tratam o assunto de forma profissional - afirma Aracéli.

Empresa define o que é ou não passivo ambiental
Para impedir dois pesos e duas medidas nos balanços, a CVM obriga as empresas a enviarem ao órgão regulador o mesmo relatório fornecido à bolsa americana, traduzido em português. Além disso, desde 2005, está em vigor uma deliberação que obriga as empresas a declararem passivo ambiental, seja ele provável, possível ou remoto. Só que cabe ao administrador da empresa considerar que esse ou aquele dano é um passivo ambiental.

Há um esforço para fazer as informações serem iguais em todas as bolsas - disse Wagner de Aquino, inspetor da CVM.

Aracéli analisou informações financeiras referentes a 2004 de 11 empresas: Aracruz Celulose, Braskem, Cemig, Companhia Paranaense de Energia (Copel), Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Vale do Rio Doce, Gerdau, Petrobras, Ultrapar e Votorantim Celulose e Papel (VCP). Foram contabilizadas 124 informações ambientais nos formulários americanos, os chamados 20-F, enquanto, no Brasil, esse número cai para 85:
- A questão da falta de informação pode causar prejuízos até para as próprias empresas nesse momento atual de fusões e aquisições. Um exemplo é a a compra da argentina Pérez Companc pela Petrobras, iniciada em 2002, por US$ 338,4 milhões.

Depois de verificados passivos ambientais inesperados, o preço caiu para US$ 329,9 milhões.

Obra gera "segunda geração de passivo ambiental"
Basta chover no Rio de Janeiro para o mais antigo passivo ambiental do estado vir à tona.

São 20 milhões de metros cúbicos de lama contaminada, que, desde o fim dos anos 60, inundam a baía em forma de zinco, cádmio, chumbo e outros metais pesados. O passivo ambiental da falida Cia. Mercantil e Industrial Ingá está sendo dragado pela Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), um consórcio da alemã ThyssenKrupp e da Vale. Os pescadores da região alegam que a dragagem, que está sendo feita para permitir a construção do terminal siderúrgico da CSA, está espalhando lama contaminada na baía.

- As obras da CSA estão provocando uma segunda geração de passivos ambientais de Ingá - denuncia Luis Silva, presidente da Associação dos Pescadores do Canto dos Rios.

Ele está à frente de uma entidade que congrega 1.200 pescadores. Alguns deles abandonaram a profissão e viraram pedreiros. Com as obras, conta o sindicalista, o volume de pesca despencou de 300 quilos diários para 20 quilos por dia.

A ThyssenKrupp e a Vale afirmam que não têm obrigação legal com esse passivo. Afirmam que a responsabilidade é do governo do estado. Por isso, não há provisão para recuperação da área.

Aracéli também questiona, em seu estudo, o fato de as empresas não considerarem provável e, portanto, reconhecerem como passivos, ações na Justiça pedindo indenização por danos ambientais. Há casos em que a sentença já foi contrária à empresa em duas instâncias, mas não há provisão para pagar indenização, se houver condenação em última instância. Ao se reconhecer a dívida e separar recursos, a empresa diminui o lucro e os dividendos aos acionistas:

- O princípio da contabilidade é a prudência. Ser otimista demais pode inchar o lucro, que poderá virar prejuízo mais tarde.

Segundo Alexandre Navarro, do escritório Navarro Advogados, especializado em questões ambientais, o seguro das empresas indica o passivo:

- O seguro é, potencialmente, o tamanho do seu passivo ambiental.

Segundo Pedro Villani, gestor do Fundo Ethical, do ABN Amro Real, não é só na área ambiental que os dados no Brasil são insuficientes. Ele defende que a legislação brasileira nesse setor se torne mais rigorosa, a exemplo do que ocorre nos EUA.

- O Produto Interno Bruto (PIB, bens e serviços gerados no país) já nasceu ultrapassado, porque ele não considera qualquer variável ambiental. É como se economia fosse neutra em relação ao meio ambiente. É essa mesma premissa que domina o pensamento empresarial - diz Hugo Penteado, do ABN Amro e autor do livro "EcoEconomia".

Se a empresa não tiver como quantificar seu passivo, diz o superintendente de Operações da Bovespa, Ricardo Nogueira, ela deve, pelo menos, divulgá-lo em balanço.

Empresas: dados estão nos sites e na CVM
Petrobras diz que seu passivo ambiental 'é irrelevante'

As informações das empresas brasileiras com papéis negociados na Bolsa de Valores de Nova York sobre questões ambientais - fornecidas ao mercado americano - também estão disponíveis, em português, na Comissão de Valores Imobiliários (CVM) e nos sites das companhias. Essa é a alegação do setor privado para rebater a assimetria de dados prestados no Brasil e nos EUA.

- A legislação brasileira e a americana são diferentes. Por isso, estamos preocupados em dar informação no mesmo nível no Brasil. Está na CVM nosso relatório americano em português - diz Murilo Percia, gerente de Controladoria da Aracruz Celulose, frisando que não há passivo a ser reportado no balanço.

A Cemig e a CPFL dão a mesma explicação.

Já a Petrobras afirma que o passivo ambiental provocado por sua atividade e pelos vazamentos não tem impacto na operação.

- Não declaramos passivo ambiental porque ele é irrelevante para os negócios - diz Ricardo Azevedo, gerente-executivo de Segurança, Meio Ambiente e Saúde da estatal.

A empresa vem tentando na Justiça derrubar uma das maiores indenizações por danos ambientais já dadas no país: R$ 1,1 bilhão.

O acidente ocorreu em 2000, quando 1,3 milhão de litros de óleo vazou da Refinaria de Duque de Caxias (Reduc) para a Baía de Guanabara. Cerca de 12 mil pescadores brigam pela indenização há sete anos.

A Petrobras não declara seu passivo, apesar de estar mapeando áreas contaminadas. O diagnóstico chegou a 1.140 hectares, área igual a 1.300 Maracanãs - o número é histórico, acumulado durante os 54 anos de existência da Petrobras. A Copel também não declara, mas por pressão externa mudou de estratégia. Seu presidente, Rubens Ghilardi, assinou semana passada protocolo para adequar a empresa à Lei Sarbanes-Oxley, criada após os escândalos da Worldcom e da Enron, em 2002, nos EUA.

- A empresa precisa lidar com seus impactos ambientais para evitar que eles virem passivo - diz Maurício Reis, diretor de Gestão Ambiental e Territorial da Vale do Rio Doce.

Chega a R$ 1,4 bilhão a provisão no balanço da Vale para recuperar minas desativadas.

A Gerdau respondeu que informa em seu balanço, no Brasil e nos EUA, como obrigações de longo prazo, R$ 76,724 milhões para "tratamento e limpeza das localidades potencialmente impactadas". A Ultrapar disse que publica no site da CVM e em seu portal todas as informações dadas às bolsas estrangeiras, e acrescenta que não tem passivo.

A CSN afirmou que, em 2006, investiu R$ 237 milhões em projetos ambientais. A Braskem e a VCP não se pronunciaram. (L.M. e C.A.)

Traduzindo o economês

O passivo ambiental corresponde à degradação que uma empresa tenha causado ao meio ambiente. Essa degradação representa os impactos ambientais gerados em decorrência de suas atividades e que não tenham sido controlados ao longo dos anos.
No caso de uma indústria em processo de venda, o comprador levará em conta o valor do passivo ambiental, descontandoo do preço final de venda. O investimento que uma empresa faz para corrigir os impactos não tem características de investimento propriamente dito. É sim uma forma de pagar a dívida causada pela degradação.
Como as empresas normalmente não registram o passivo, elas acabam indevidamente classificando como investimentos as aquisições de equipamentos ou serviços para recuperar uma área degradada.

Corpo a Corpo
Aracéli Ferreira

Problema é desconhecer perigos

Estudiosa de balanços e relatórios, a doutora em administração e ciências contábeis da UFRJ, Aracéli de Souza Ferreira, considerase uma contadora social. Ou seja, uma fiscal da sociedade brasileira da transparência das empresas de capital aberto. "Não sou contra as empresas, sou a favor da informação adequada", explica.

Cássia Almeida

O Globo: As empresas são obrigadas a declarar seu passivo ambiental?

Aracéli Ferreira: A legislação de sociedade anônima determina que, nos balanços, a empresa tem que reconhecer os passivos e os riscos sobre o patrimônio. Não especifica que sejam apenas fiscais ou trabalhistas, como é comum nos balanços. Os passivos ambientais também precisam estar explícitos.

Existe a alegação de que é difícil estabelecer os valores para esse tipo de passivo...

Aracéli: Não posso acreditar que a Petrobras, por exemplo, que perfura a mais de dois mil metros de profundidade, não tenha tecnologia contábil para mensurar seu passivo ambiental. Há uma literatura vasta sobre o tema.

Qual o risco de a empresa não informar nos balanços o risco e os passivos ambientais?

Aracéli: O investidor deixará de saber de perigos importantes que vão afetar o resultado da empresa. Um caso que levantou o problema dessa lacuna nos balanços foi o da Union Carbide Índia. Houve um vazamento que matou milhares de pessoas. A empresa provisionou US$ 34 milhões. Em cinco anos, já tinha pago US$ 470 milhões de indenizações. A empresa acabou quebrando, levando junto os investidores.

Mas qual a importância para a sociedade dessa transparência?

Aracéli: As empresas usam recursos naturais e poluem o nosso ambiente. Os recursos não são da empresa, são da sociedade. Por isso, é importante saber quais os danos causados e o que a empresa está fazendo para repará-los. É um dever dar essa satisfação, já que as atividades são potencialmente poluidoras.

O Globo, 10/06/2007, Economia, p. 36

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