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Dois anos à espera de reparações justas

O Globo, País, p. 6-7
29 de Out de 2017

Dois anos à espera de reparações justas
Moradores que perderam tudo na tsunami de lama da barragem da Samarco tentam manter esperança

ANA LUCIA AZEVEDO
ala@oglobo.com.br

Das terras onde Terezinha de Jesus Arcanjo construiu a vida na roça, em Paracatu de Cima, Mariana, se vê o Gualaxo do Norte traçar seu caminho pelas curvas dos vales estreitos dessa parte de Minas Gerais. Mas no anoitecer de 5 de novembro de 2015, em vez do rio, dona Terezinha viu chegar uma tsunami de lama e minério. O rejeito de ferro da Samarco engoliu as propriedades de sete dos seus 12 filhos. A onda subiu o morro e destruiu o moinho que o marido dela construíra há 60 anos.
O mundo de dona Terezinha acabava ali, naquele momento. Em instantes, se foram a paisagem e as conquistas de uma vida inteira. Do alto do mesmo morro, ela esperava que a lama também se fosse. Mas a lama ficou. Permaneceu no leito do Gualaxo e nos campos junto às margens, onde foi coberta por uma manta de solo "emprestado" e mato.
O TRISTE FIM DE DONA TEREZINHA
Dona Terezinha esperava ainda que os filhos fossem indenizados e pudessem começar de novo. Três deles perderam tudo. Foram morar em casas piores, alguns adoeceram. Em novembro de 2016, um ano após o pior desastre ambiental da história do Brasil, ela continuava a aguardar. Via a lama e o desalento dos filhos, com as terras onde moravam e trabalhavam destruídas.
Até que um dia, Dona Terezinha não pode mais esperar. Aos 87 anos, morreu. Se foi em 4 de agosto passado, um ano e nove meses depois do desastre do rompimento da Barragem de Fundão. Foi velada na mesma casa em que aguardava as indenizações que até hoje não chegaram.
- Dois anos são um tempo enorme para qualquer um que espere justiça. Mas essa espera é inviável para os idosos. Quem está na velhice, não tem segundos a desperdiçar. Minha avó morreu na tristeza e na angústia de ver o drama dos filhos. Nem o moinho dela consertaram - conta o engenheiro Johne Jesus Mol Peixoto, 26 anos, que representa os pais na comissão dos atingidos pelo desastre da Samarco.
A lama de Fundão se apoderou do sítio de agricultura familiar dos pais de Johne, em Paracatu de Baixo. Foi com o que plantaram e criaram por lá que John Jesus Mol Peixoto, de 53 anos, e Marta de Jesus Arcanjo Peixoto, de 46 anos, sustentaram os três filhos e lhes deram uma vida melhor do que a deles próprios. Todos estudaram. Johne, o mais velho, cursa doutorado em engenharia.
Mas há dois anos o que foi a casa da família é só um amontoado abandonado de escombros. As seis lagoas do sítio se tornaram piscinas de areia movediça onde os animais ainda atolam. Os peixes foram soterrados. As aves, afogadas. O solo fértil, arrasado.
- Meus pais foram realocados numa casa que nem reboco tinha. Deram uma pintura e os colocaram lá. Nunca receberam indenização definitiva e querem que os meus pais fiquem com a propriedade destruída, num mar de lama e vizinhos de lugar algum. Eles moravam junto de uma Paracatu que não existe mais - conta o engenheiro.
Obrigado a passar o dia longe de onde mora para cuidar do gado que ficou no que restou do terreno, John aguarda pela indenização que não chega.
- Minha mãe passa agora muitas horas sozinha. Precisou da ajuda de uma psicóloga para suportar a tristeza e o estresse - conta Johne sobre Marta, uma das filhas de dona Terezinha.
A família não aceita os termos do cadastro estabelecido pela Renova. Encarregada de arcar com indenizações, compensação e reparação, a fundação foi criada a partir do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em março de 2016. Em seu conselho diretor estão a Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton.
- O cadastro não é claro, usa muitos termos técnicos e fica totalmente a cargo de um entrevistador. Uma burocracia enorme, que se arrasta por todo esse tempo. Temos toda a documentação, registros fotográficos, fiz um relatório detalhado de nossa propriedade e nem assim as coisas andam. Destruir foi fácil. Pagar pelo que devastaram é difícil - afirma Johne.
A diretora de Desenvolvimento Institucional da Renova, Andrea Azevedo, reconhece que os atingidos esperam há muito tempo. Mas diz que o cadastro é necessário porque há milhares de pessoas atingidas ao longo de toda a Bacia do Rio Doce e é preciso conhecer o caso de cada uma delas. Segundo a Renova, o cadastro foi construído pela comunidade e a Caritas, com assessoria da fundação.
A Renova informa que 23 mil pessoas foram cadastradas e R$ 500 milhões pagos em auxílios emergenciais e indenizações.
As famílias de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, os três povoados completamente devastados, receberam R$ 20 mil, metade dos quais será descontada do valor final. Recebem ainda uma ajuda mensal de cerca de R$ 1.500 por família.
- Esperamos que em até seis meses já tenhamos pago a maior parte das indenizações - diz Andrea Azevedo.
Já o reassentamento em novos terrenos de moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, esta última em Barra Longa, está previsto para 2019.
Enquanto isso, em Paracatu de Cima, Valdalice Ângela Arcanjo, de 54 anos, olha as ruínas enlameadas do moinho de dona Terezinha, sua sogra, e seus olhos se enchem de lágrimas.
- A gente fazia fubá no moinho. Agora temos que comprar e não é igual. Plantamos e criamos tudo o que comemos. Para a minha sogra esse moinho era muito importante, lembrança de dias mais felizes. A lama arrasou com a vida da nossa família. Esses dois anos foram um tempo imenso para as pessoas atingidas. E para os mais velhos, tem sido uma espera cruel demais - lamenta Valdalice, que mora na mesma casa em que vivia dona Terezinha com o marido Vicente Celestino, o filho Rafael, de 13 anos, e a neta Lavínia, de 6.
- Mudou tudo. Acabou a alegria. O Rafael tem síndrome de Down, mas estudava com as outras crianças, na escola que a lama destruiu em Paracatu de Baixo. Agora, precisa ir para mais longe estudar. Nós, em Paracatu de Cima, ficamos isolados. Nossos amigos se foram. Ficamos sozinhos.
CEMITÉRIO É SÍMBOLO DE RESILIÊNCIA
Dona Terezinha foi sepultada no pequeno cemitério de Paracatu de Baixo, junto à filha Geralda Aparecida, que morreu antes dela, em junho de 2016, igualmente sem ver justiça para os que tiveram a vida tomada pela lama.
O cemitério é ele próprio um símbolo de resiliência e fé. Pintado de branco, encima as ruínas do povoado, completamente arrasado pela lama de rejeito. Encarapitado no alto de um morro íngreme, só se chega a ele a pé, por um caminho estreito e quase vertical.
Perto dos túmulos da família de dona Terezinha, se juntam aos poucos os de outros antigos moradores idosos, que morreram sem ver solução para o desastre. Para Paracatu de Baixo, agora, só se volta morto.

EM BENTO RODRIGUES, AS LEMBRANÇAS COMO TESTEMUNHAS DA HISTÓRIA

Devastado há dois anos pela lama de rejeito da barragem de Fundão, Bento Rodrigues é um povoado morto. E todo o movimento que restou cabe aos mortos. O cemitério da igreja de Nossa Senhora das Mercês, que por se localizar em uma encosta elevada escapou da tsunami, reabre esporadicamente para receber corpos de antigos moradores, que faleceram antes que um novo povoado seja construído ou os atingidos, indenizados.
O cemitério e a igreja estão cercados por tapumes, como proteção contra saqueadores que vandalizaram aquilo que a lama não conseguiu destruir. Todo fim de semana, Sandro José Sobreira, de 43 anos, vai para lá com amigos. Integram um grupo chamado Loucos por Bento, que nunca deixou de visitar as ruínas da sua antiga vida. Sandro visita também o túmulo do tio Henrique Gonçalves Bretas, o primeiro ex-morador a ser enterrado no cemitério de Bento Rodrigues depois da tragédia.
Henrique faleceu aos 69 anos, em 15 de outubro do ano passado. Tinha problemas mentais que se agravaram depois do desastre.
- Cada ano de vida de uma pessoa idosa é precioso. Dois anos são como 20. Meu tio não aguentou nem isso - afirma Sandro.
ILUSÕES PERDIDAS
A também sobrinha de Henrique, Andreia Salles, de 42 anos, se recorda que o tio falava todos os dias em voltar. Ele tinha dez vacas que haviam sobrevivido à onda de lama. E as levava diariamente da periferia de Mariana, onde teve que ir morar, para ir pastar perto do que sobrou do vilarejo. Passava os dias nesse vai e volta, até que um dia as vacas sumiram pela estrada.
- A saúde dele piorou. Ficou muito deprimido, começou a ter problemas de coração. Até que morreu. Ele não aceitava que jamais poderia voltar a morar em Bento. Tudo o que pudemos fazer por ele foi enterrá-lo lá - conta Andreia.
Sandro diz que os Loucos por Bento, um grupo de cerca de 20 ex-moradores, passa as noites de fins de semana no que restou do povoado para conservar as lembranças e tentar garantir que o lugar vire um memorial:
- O meu tio, com todos os seus problemas, resumia bem o sentimento que temos. Amávamos esse lugar, era parte da nossa identidade. São dois anos de vida incerta e tristeza.
A mãe de Andreia, Jandira Edna Gonçalves Salles, não desistiu do sonho de reaver a antiga vida. Aos 72 anos, ela ainda não conhece outra.
- A gente não tem ilusões. Mas minha mãe ainda sonha em ir morar na parte alta que restou. Esses dois anos foram uma eternidade para ela - diz Andreia.
SEM A VIVÊNCIA DA ROÇA
No próximo dia 2, dia de Finados, a igreja de Nossa Senhora das Mercês reabre para uma missa. Vai lembrar os antigos moradores e o próprio povoado, cuja data de destruição é no dia 5.
Se para quem já viveu muito, dois anos são uma eternidade, para os que começam, dois anos são a própria vida. No caso dos três filhos de Hiata Meiriane Salgado, uma vida sem as lembranças que sua família compartilha há gerações. Hiata, de 27 anos, é neta de José Barbosa dos Santos, de 73 anos. Seu Barbosa tinha cinco casas em Bento Rodrigues e as imagens dos escombros de seu bar, no que foi a entrada do subdistrito de Mariana, é uma das mais icônicas do desastre.
De comerciante atarefado, ele se tornou um aposentado que passa os dias à espera da construção do novo Bento e de uma indenização definitiva. Seu Barbosa perdeu tudo. Mas os bisnetos nem chegaram a ganhar o que Hiata chama de experiências da roça que são a própria herança da família.
- Tenho cinco irmãos. Todos nós crescemos lá. Nossa família tinha uma vida confortável e as crianças podiam brincar com liberdade, perto da natureza. Meus filhos já crescem sem essa vivência da roça - diz Hiata, que mora com a família num prédio muito simples, perto da estação ferroviária de Mariana.
A mais velha dos filhos de Hiata, Sofia, tem 6 anos. Ana Clara completou 3 anos. O caçula Pedro nasceu há 6 meses.
- A Sofia ainda aproveitou alguma coisa, mas não lembra. Os outros nem isso. Ana Clara era muito pequena quando a tragédia aconteceu e o Pedro nem existia. Eu olho para eles e vejo quanto tempo se passou desde a tragédia. Tempo para uma criança nascer e crescer. Toda a nossa família quer ir para o novo Bento já que para o antigo não tem jeito. Mas as obras nem começaram. Cansa, desgasta muito - afirma ela.
Hiata espera que os filhos possam ir para a roça ainda na infância. A previsão para a entrega do novo Bento, que será construído num terreno chamado Lavoura, é 2019. Sofia já terá 8 anos.
Enquanto isso, a família visita sempre que pode as ruínas de seu antigo lar:
- Nossa história está lá. Nossos bens materiais foram destruídos pela lama. Mas ela não matou nossas lembranças. Eles estão nesse lugar.

O Globo, 29/10/2017, País, p. 6-7

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