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"Devo a carreira ao Brasil", diz Lévi-Strauss

FSP, Mundo, p. A15
22 de Fev de 2005

"Devo a carreira ao Brasil", diz Lévi-Strauss
Aos 96, antropólogo francês, um dos maiores intelectuais do século 20, reflete sobre sua experiência brasileira nos anos 1930

Véronique Mortaigne
Do "Le Monde"

Na véspera das comemorações do Ano do Brasil na França, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, 96, autor de ""Tristes Trópicos", fala de sua relação com o Brasil, onde deu seus primeiros passos como etnólogo. Hoje, afirma, a civilização em escala mundial pôs fim a esse tipo de descoberta.

Pergunta - A ligação entre a França e o Brasil é muito antiga?

Lévi-Strauss - Este Ano do Brasil na França acontece quase exatamente 500 anos após o primeiro contato entre a França e o Brasil, na ocasião da viagem do normando Paulmier de Gonneville. Em 1504 ele chegou à costa sul do Brasil, quatro anos apenas após a chegada de Pedro Álvares Cabral. Assim, os testemunhos mais antigos que temos sobre o Brasil datam do século 16 e são franceses.

Em 1955 houve a tentativa do almirante Villegaignon de estabelecer uma França Antártica, descrita por André Thevet em sua grande obra ""Les Singularitez de la France Antarctique" (publicada em 1557). Em 1578, Jean de Léry lança ""Histoire d'un voyage faict en la terre du Brésil" [história de uma viagem feita na terra do Brasil]. No século 17, mais ao norte, ocorrem tentativas de instalação de missionários. Mais tarde, no século 18 e início do século 19, quando o Brasil se torna império, observa-se a presença de pintores franceses (a missão artística enviada a partir de 1815 por Luís 18, da qual fazia parte Jean-Baptiste Debret), que nos deixaram muitas ilustrações sobre a vida no Rio de Janeiro e no interior do país.

Houve conflitos entre a França e o Brasil, por exemplo em torno dos territórios que faziam fronteira com a Guiana Francesa, reivindicados pelos dois países. Mas a fundação da USP, no século 20, permitiu a retomada de contatos muito estreitos.
Pergunta - Foi na USP que o sr. foi ensinar sociologia, em 1935. O que significa o Brasil hoje para o sr.?

Lévi-Strauss - O Brasil representa a experiência mais importante de minha vida, ao mesmo tempo pela distância e pelo contraste, mas também porque foi ela que determinou minha carreira. Tenho uma dívida muito profunda com esse país. Isso dito, deixei o Brasil no início de 1939 e só retornei muito brevemente em 1985, quando acompanhei o presidente Mitterrand em uma visita de cinco dias. Embora tenha sido muito curta, essa estadia provocou em mim uma verdadeira revolução mental. O Brasil se tornara um país total e inteiramente outro.

A São Paulo que eu conhecera numa época em que a cidade acabara de completar 1 milhão de habitantes já tinha mais de 10 milhões. Os traços da época colonial haviam desaparecido. São Paulo se tornara uma cidade espantosa e assustadora, pontilhada por quilômetros de arranha-céus, a tal ponto que, querendo rever não a casa na qual morara -com certeza ela já não existia-, mas a rua onde vivi por alguns anos, passei a manhã parado num engarrafamento, sem conseguir chegar.

Pergunta - A urbanização de São Paulo fez a natureza desaparecer; o rio Tietê, que foi fundamental na conquista do interior do Brasil a partir de São Paulo, está moribundo. Essa quebra das ligações entre homem e natureza não é uma característica de nossa época?

Lévi-Strauss - Mesmo em meu tempo, a natureza já havia mudado muito em São Paulo. Houve a época do café, e as áreas em torno da cidade foram dedicadas a essa indústria agroalimentar. Dessa natureza tão forte, porém, sobreviviam as encostas da serra do Mar, entre São Paulo e o porto de Santos. Ali, num trecho de alguns quilômetros, ocorria um desnível de 800 metros, tão abrupto que a civilização desdenhara o lugar, deixando-o entregue à mata virgem. Assim, quando se desembarcava em Santos para subir para São Paulo, tinha-se um contato breve, mas imediato, com aquilo que o Brasil do interior, a milhares de quilômetros de distância, ainda podia reservar.

A ligação entre homem e natureza talvez tenha se rompido e, ao mesmo tempo, podemos compreender que o Brasil, que se desenvolveu de modo tão considerável, mantenha com a natureza a mesma política que teve a Europa na Idade Média: destruir a natureza para instalar a agricultura.

Pergunta - É possível ser marcado por um país fisicamente e para sempre?

Lévi-Strauss - Com certeza que sim. O primeiro choque que senti ao chegar ao Brasil foi a natureza, como ainda se podia vê-la nas encostas da serra do Mar; depois, quando me meti pelo interior, foi novamente uma natureza tão totalmente diferente daquela que eu conhecera. Mas existe também outra dimensão à qual não se dá atenção sempre e que, para mim, foi de importância fundamental: a do fenômeno urbano.

Quando cheguei a São Paulo, dizia-se que uma casa por hora era erguida na cidade. Nessa época existia uma empresa britânica que havia apenas quatro ou cinco anos vinha abrindo territórios no oeste do Estado de São Paulo. A cada 15 quilômetros ela construía uma linha de estrada de ferro e desenvolvia uma cidade. Na primeira, a mais antiga, havia 15 mil habitantes, na segunda, 5.000, na terceira, mil, depois 90, depois 40 e, na mais recente, apenas um -por sinal, francês.

Nessa época, um dos grandes privilégios do Brasil era poder assistir, de maneira quase experimental, à formação desse fantástico fenômeno humano que é uma cidade. Na França, a cidade às vezes é fruto de uma decisão do Estado, é verdade, mas é sobretudo resultado de milhões de pequenas iniciativas individuais tomadas ao longo de séculos. No Brasil dos anos 1930, era possível observar esse processo, acelerado, se produzir em questão de alguns anos.

É claro, também porque eu praticava a etnografia, os índios foram essenciais para mim, mas essa experiência urbana teve uma importância muito grande, e os dois brasis conviviam, embora a boa distância um do outro.

Quando fui a Mato Grosso pela primeira vez, Brasília ainda não existia, mas houvera uma tentativa de criar uma cidade a partir do nada, Goiânia, que não vingara. O planalto central é magnífico -nele, o céu assume toda sua importância devida. É uma outra ordem de grandeza. Escritores como Euclides da Cunha (1866-1909), autor de "Os Sertões", fizeram descrições magníficas desse Brasil. Também conheci bem Mário de Andrade (1893-1945): ele dirigia a Secretaria da Cultura da cidade de São Paulo. Nós nos tornamos muito próximos. ""Macunaíma" é um grande livro.

Pergunta - Mário de Andrade imaginou, com muito humor, Macunaíma, um índio da Amazônia, mentiroso e preguiçoso, que, pelo casamento, se tornou imperador da floresta; ele desembarca em São Paulo em busca de um amuleto, antes de ser transformado em constelação, a Ursa Maior. Esse espírito indígena, essa ligação entre cidade, floresta e mito, ainda existe? O sr. acompanhou sua evolução?

Lévi-Strauss - Acompanho regularmente a evolução dos indígenas que estudei na época, pelo pensamento e através de meus colegas bem mais jovens do que eu, especialmente os da Universidade de Cuiabá, que trabalham com os nhambiquaras, entre outros. Eles me escrevem e me enviam seus trabalhos regularmente. Esses povos passaram por provações terríveis. Foram mais ou menos exterminados, a tal ponto que apenas entre 5% e 10% das populações originais haviam sobrevivido. Mas o que está acontecendo hoje é de interesse imenso. Esses povos tomaram contato uns com os outros. Agora eles já sabem aquilo que durante tempo desconheceram: que não estão sozinhos no palco do universo. Na Nova Zelândia, na Austrália ou na Melanésia há pessoas que, em épocas diferentes, passaram pelas mesmas provações que eles. Assim, eles tomam consciência de sua posição comum no mundo.

Portanto, é claro que a etnografia nunca mais será aquela que eu pratiquei em meu tempo, quando se tratava de encontrar testemunhos de crenças, formações sociais e instituições nascidas em total isolamento com relação às nossas e, portanto, que constituíam contribuições insubstituíveis para o patrimônio da humanidade. Hoje, posso afirmar que vivemos num regime de ""compenetração mútua". Estamos andando em direção a uma civilização em escala mundial. É uma civilização na qual é provável que apareçam diferenças -é isso, pelo menos, que devemos esperar. Mas essas diferenças não serão mais da mesma natureza: elas serão internas, não mais externas.

Antropólogo pesquisou tribos de Mato Grosso

Da Redação

Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas (Bélgica). É considerado um dos maiores antropólogos de todos os tempos. Atualmente, mora em Paris, onde estudou e passou a maior parte da sua vida.

Em 1935, veio ao Brasil para ensinar sociologia na recém-fundada Universidade de São Paulo (USP). Formado em filosofia na França, no Brasil se interessaria pela etnologia.

Explorou, com sua mulher, a região onde viviam os índios cadiuéus e bororos, no Mato Grosso, recolhendo material etnográfico para o Museu do Homem, em Paris.

A experiência brasileira, que duraria até 1938, seria narrada por Lévi-Strauss em "Tristes Trópicos" (1955), um dos principais livros do século 20.

Influenciado pela obra do lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), Lévi-Strauss lançou, em obras como "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949), as bases da antropologia estrutural, que revolucionaria o pensamento do Ocidente.

FSP, 22/02/2005, Mundo, p. A15

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