VOLTAR

Desnutrição mata crianças guaranis

Correio Braziliense-Brasília-DF
Autor: Cristina Ávila
03 de Set de 2001

Os pais não têm terra para plantar e os filhos morrem de fome. Em apenas sete meses, morreram 123 meninas e meninos índios de aldeias do Mato Grosso do Sul. Funai alega que não possui dinheiro para demarcar as as áreas ocupadas e indenizar os fazendeiros

Crianças indígenas estão morrendo de fome em aldeias do Mato Grosso do Sul. Neste ano, até o final do mês de julho, 123 morreram – desnutridas, desidratadas ou por causa de problemas no parto. Entre elas, 57 antes de completar um ano. A estatística é superior ao dobro da média nacional. Na região existem 47 aldeias, onde vivem 42 mil índios. Ali, 35% de meninos e meninas de zero a cinco anos sofrem de desnutrição.
A situação mais grave é entre os guarani-kaiová. Além dos bebês, eles perdem também os filhos adolescentes, por suicídios. Os problemas têm causas comuns: a falta de terra para plantar e a falta de continuidade de políticas públicas para desenvolvimento das comunidades.
Os números de desnutrição fazem parte do inquérito nutricional feito pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que examinou 1.385 crianças dos povos guarani, terena e kadiwéu (somados eles têm 2.691 crianças até cinco anos). Um dado perverso constatado pelo levantamento é que 19% delas estão com desnutrição severa, que provoca conseqüências irreversíveis – danos ao desempenho intelectual e doenças motoras que provocam dificuldades em atividades cotidianas. São 258 crianças com desnutrição severa, entre 485 desnutridas. No ano passado, 238 crianças não chegaram a completar cinco anos de idade. Entre elas, 103 não chegaram nem mesmo ao primeiro ano de vida.
Queremos um diagnóstico para poder planejar a estratégia de redução da mortalidade infantil, chegar pelo menos perto da média nacional, que é de 33 mortes para mil nascidos vivos, diz o coordenador da Funasa em Mato Grosso do Sul, Aroldo Galvão. A situação já foi ainda pior. Em três anos de trabalho permanente, conseguimos reduzir a mortalidade infantil de 150 para 70 por mil. Mas ele não tem esperança de conseguir resolver o problema se os índios continuarem sem terra para produção de alimentos. Só atendimento médico não vai adiantar, avisa.
O levantamento da Funasa inclui mortes perinatais (entre a 28 semanas de gestação e primeira semana de nascimento) e também natimortos (com 28 semanas de gestação ou mais e que nascem mortos). A Funasa ainda não tem informações sobre os motivos dos problemas de parto, mas os médicos já sabem que entre eles estão a desnutrição das mães e o alcoolismo. Mesmo as mulheres grávidas bebem, e o álcool acaba afetando os bebês. O álcool leva ainda à violência. Casais brigam; as mulheres acabam se machucando e machucando os bebês, causando a morte, fala o chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul, Wanderley Guenka.
Os piores números são da aldeia Dourados, dos guarani-kaiová. Somente neste ano, 11 crianças menores de um ano morreram de desnutrição, do total de 57 que morreram por outros motivos. Entre as que ainda resistem, a desnutrição chega a 40%, sendo 19% de desnutrição moderada e 21% de severa.
A Funasa está tentando diminuir os danos em parceria com a Pastoral da Criança, organização da Igreja Católica. Em maio, a Pastoral começou a distribuir uma multimistura alimentícia que ajuda a reduzir os problemas da fome. Mas ainda são poucas as aldeias atendidas. As famílias também recebem 15 quilos de alimentos em cestas básicas distribuídas por programas sociais oficiais. A Prefeitura de Dourados está dando aos índios galhos podados de árvores da cidade, para ajudar no cozimento de alimentos. Mas nada disso é suficiente.
O próprio chefe do Núcleo de Apoio ao Índio da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Dourados, Jonas Rosa, reconhece que não há perspectiva de solução: A Funai está sucateada, não tem dinheiro para dar assistência efetiva aos índios. Seria necessário priorizar a demarcação das terras deles e indenizar os fazendeiros, diz Rosa. Mas não temos força para fazer agilizar esses processos.

Vida de Bóia-fria
As aldeias passam fome, principalmente entre os meses de agosto e outubro, quando é época de entressafra agrícola. Os 25 mil guaranis moram em 26 áreas. Grande parte das aldeias são como lotes urbanos, cercados de fazendas de soja, trigo e milho. Perambulam nas cidades, às margens de rodovias, vivem subempregados em fazendas, de artesanato ou de esmolas que as crianças ganham nas ruas.
De maio a dezembro, entre 4 mil e 5 mil índios costumam a trabalhar nos canaviais. Onde tiver uma usina tem índio trabalhando, afirma o chefe do Núcleo de Apoio ao Índio, da Funai, Jonas Rosa. Os homens recebem por produção, entre R$ 100 mensais até R$ 400 ou mais. Uma parte do dinheiro é mandado pelas empresas para as mulheres e crianças que ficam nas aldeias; outra parte os trabalhadores gastam na cidade, especialmente com álcool. A aposentadoria dos velhos também banca o sustento. A aldeia Caarapó, por exemplo, tem 500 famílias e 300 aposentados com salário mínimo, diz o professor Antônio Brand, da Universidade Católica Dom Bosco, de Dourados.
Memória
O crime que envergonha um estado

Embora muitos índios sejam derrotados pela fome, pelo alcoolismo e pela morte, o povo guarani-kayová resiste à invasão branca que lhes roubou milhões de hectares de terras. Há 200 anos, viviam em cerca de 25% do que hoje é o Mato Grosso do Sul, cerca de 8,7 milhões de hectares de terras cobertas por campos e florestas. Hoje, eles são 25 mil, vivendo em cerca de 50 mil hectares e brigando contra a destruição cultural. E como todos os povos bravos, eles também têm seus heróis.
O herói guarani-kaiová mais importante é Marçal de Souza Tupã-Y. Um indio baixinho e desdentado que nos anos 70 realizava assembléias nas aldeias, convocando o seu povo a lutar pela terra.
Nós temos que ser malcriados. Ou nós avançamos, ou nos entregamos ao branco. Descobri uma riqueza muito grande, que é nossa cultura, nossa crença. Nasceu, então, um amor muito profundo pelo meu povo índio. Devo isso ao professor Darcy Ribeiro, um grande amigo meu, afirmava o guarani.
Marçal foi assassinado em 1983. Mandado matar por fazendeiros que até hoje brigam para permanecer em terras indígenas. No telegrama que Darcy Ribeiro mandou ao governo, cobrando justiça, disse que a imagem do estado estava emporcalhada se permanecesse a impunidade pelo crime do assassinato do o mais alto intelectual do Mato Grosso do Sul. Era assim que o antropólogo se referia a Marçal.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.