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A desigualdade do etanol

O Globo, Economia, p. 29-30
Autor: CARVALHO, Eduardo Pereira de; NOVAES, José Roberto
29 de Abr de 2007

A desigualdade do etanol
Combustível se expande à custa de relações de trabalho arcaicas e concentração de renda

Liana Melo e Cássia Almeida

Prestes a ser transformada em commodity internacional, o etanol brasileiro virou a alternativa energética do século XXI. Ao mesmo tempo em que substitui o petróleo, é também menos poluente. Essas qualidades intrínsecas do produto estão promovendo uma verdadeira revolução no campo.

Os usineiros estão eufóricos com a exuberância econômica que está por vir, como resultado de investimentos externos esperados nos próximos dez anos de até US$ 100 bilhões. Só que, longe dos holofotes, a indústria de cana-de-açúcar continua reproduzindo um modelo de relação trabalhista do século XVII. Os cortadores de cana vivem à margem da lei e trabalham no limite da exaustão (já morreram 18 trabalhadores em São Paulo, com suspeita de exaustão), enquanto os usineiros mantêm a prática antiga de se fecharem em oligarquias pós-modernas, mantendo a concentração de renda na mão de poucos.

A desigualdade social está refletida no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios produtores de cana. Morro Agudo, em São Paulo, o maior produtor nacional, é a melhor tradução do modelo de concentração neocolonialista reproduzido até hoje nas usinas do país, segundo o economista José Roberto Novaes, da UFRJ. A cidade contribuiu com 7,8 milhões de toneladas na última safra, que chegou a 422,9 milhões de toneladas, e há previsão de alta de 13% na safra.

Má distribuição de renda só aumenta
0 Apesar disso, os 10% mais ricos do município ganhavam, em 1991, 14,38 vezes mais que os 40% mais pobres.

Essa diferença só aumentou nos últimos dez anos, apesar do avanço da safra na região. Em 2000, essa diferença pulou para 16,83. O mesmo ocorreu com o coeficiente de Gini, outra medida de desigualdade, que passou de 0,52 para 0,55, no mesmo período. Um Gini mais próximo de um indica uma concentração de renda maior.

- Não é à toa que a cana é identificada até hoje como uma cultura causadora de miséria - analisa Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Em Campos, no Rio, o segundo maior produtor de cana do país, onde estão cerca de oito mil cortadores, a concentração também é uma marca: os 10% mais ricos ganham cerca de 20 vezes mais que os 40% mais pobres.

E todo o investimento que está inundando o setor intensifica a exploração de mais de um milhão de cortadores de cana, principalmente para onde está avançando a fronteira agrícola: a Região Centro-Oeste, que já responde por 10,2% do plantio. Com a expectativa da abertura de mais 80 usinas, os procuradores e fiscais do trabalho voltaram a ter que combater a exploração da mão-de-obra indígena na região. Só no Mato Grosso do Sul, são cerca de 12 mil índios na plantação e no corte da cana.

Depois de mais de uma década de fiscalizações, enquadrando os usineiros por causa do trabalho dos indígenas, as novas usinas voltam à velha prática de degradação. No fim de março, no estado, na região de Naviraí, foram encontrados 170 índios em situação degradante de trabalho, entre 409 trabalhadores que recebiam tratamento semelhante.

Sem equipamento de proteção individual ou água potável, dormiam num alojamento com capacidade para, no máximo, 80 pessoas:
- Como o espaço era insuficiente, os indígenas dormiam no refeitório, ao relento, em colchões jogados no chão. Além disso, não havia respeito às etnias. Juntaram guarani com terenas, inimigos históricos. Por causa disso, houve até uma morte na frente de trabalho - conta o procurador do trabalho do estado, Jonas Ratier Moreno.

A situação dos índios na região, confinados em três mil hectares e com alta taxa de natalidade, acaba empurrando essa população para o corte da cana.

- Eles têm pouca terra para plantar e a cana é a única solução para sobrevivência dos filhos. No caso dessa usina, o mais grave foi saber que o dono é um médico do trabalho. Mas estamos com uma atitude pedagógica na região: encontrando irregularidade, interdita-se a frente de trabalho e os alojamentos - diz o procurador.

Com 80% da cana colhidos à mão, segundo investigações promovidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego, as usinas começaram a desativar os alojamentos, locais onde ficava evidente a forma degradante do tratamento dado aos cortadores. A forma encontrada para fugir da fiscalização foi induzir, ou mesmo obrigar, os trabalhadores a alugar casas nas cidades próximas. Essa irregularidade junta-se às velhas conhecidas: falta de fornecimento de água potável e em quantidade suficiente, comida deteriorada, transporte precário de trabalhadores, excesso de jornada e falta de descanso com o incitamento à produção excessiva, como maneira de auferir melhor remuneração :

- Com a expansão desse setor, já estamos vendo aumentar essas ilegalidades. E tememos que o cenário fique ainda pior. Eles, por exemplo, não sabem quanto vão receber. A cada dia há uma nova cotação afirma o procurador Luís Camargo, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT.

Inmetro prepara selo ambiental
Mas essas irregularidades, somadas aos danos ambientais, podem fazer o setor sofrer com barreiras não-tarifárias. A Comunidade Européia, por exemplo, numa reunião realizada em março, em Bruxelas, decidiu que só comprará etanol dos países que tiverem certificação ambiental. Falta decidir quando a decisão entrará em vigor. Antes que a exigência se transforme numa barreira comercial, o Inmetro já começou a elaborar um Programa de Certificação do Etanol. A previsão é que fique pronto em outubro. Além de atestar as qualidades físico-químicas do produto, o Inmetro vai garantir se ele não é proveniente de área desmatada e se não envolveu trabalho escravo ou infantil.

Investimentos externos podem alcançar US$ 100 bi em dez anos
Produção deve crescer para 21 bilhões de litros este ano, acima do consumo

Liana Melo e Cássia Almeida

O interesse pelo etanol brasileiro é traduzido na promessa de cifrões de americanos, ingleses, italianos, dinamarqueses e japoneses para investir no aumento da produção do combustível, que deve alcançar este ano 21 bilhões de litros, volume superior aos 19,3 bilhões destinados ao consumo interno. Os investimentos externos podem chegar a US$ 100 bilhões nos próximos dez anos.

O périplo às usinas de canadeaçúcar começou com a visita do presidente dos EUA, George W. Bush, ao país, em abril. Desde então, o etanol não saiu mais da berlinda. O irmão do presidente americano e co-presidente da Comissão Internacional do Etanol (CIE), Jeb Bush, também esteve no Brasil e anunciou, durante sua visita, que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) está de olho no etanol brasileiro e vai financiar projetos por aqui. Já foi confirmado um desembolso de US$ 570 milhões.

BM&F vai lançar contrato futuro de etanol
Até a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) está se preparando para lançar um novo contrato futuro de etanol, atualmente em processo de aprovação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

- O mundo está de olho no etanol brasileiro - comemora Carlos Gastaldoni, assessor da Presidência do BNDES na gestão de Demian Fiocca, que passa o cargo esta semana para Luciano Coutinho.

Segundo Gastaldoni, os recursos do banco para o etanol somam R$ 7 bilhões. É um montante que inclui investimentos já aprovados e também aqueles que ainda estão na fila para serem atendidos.

A estratégia do BNDES inclui a participação do banco financiando 70% do projeto ou entrando como sócio no negócio, com uma participação de 30% no capital do novo empreendimento. E mais: o governo está disposto a alocar recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para financiar essa indústria, através de investimentos na produção de bioenergia, logística e instalação de novas refinarias. Hoje, o país conta com 350 usinas de cana-de-açúcar. A meta do governo é instalar entre 80 e cem novas usinas.

Ao longo da história brasileira, os usineiros, que experimentaram raro período de exuberância econômica no século XVII com o ciclo da cana-de-açúcar, durante anos foram identificados como bandidos.

Recentemente, foram reabilitados. O presidente Lula preferiu amenizar a fama de mau dos empresários do campo.

- Os usineiros, que até dez anos atrás eram tidos como bandidos do agronegócio deste país, estão virando heróis nacionais e mundiais - disse Lula, em 20 de março.

Mas este ano não será ainda o momento de faturamento maior para os usineiros. Segundo o sócio-diretor da MB Agro, José Carlos Hausknecht, os EUA não serão o mercado comprador, como no ano passado.

- O preço internacional do álcool deve baixar, assim como o do açúcar, com a produção maior de Tailândia, China e Índia.

Corpo a Corpo
Lei é melhor que certificação

Eduardo Pereira de Carvalho

Presidente da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), Eduardo Pereira de Carvalho não é favorável à criação, pelo Inmetro, de uma certificação socioambiental para o etanol produzido no Brasil.

Liana Melo

O Globo: O Inmetro está discutindo a criação de uma certificação socioambiental.
O que o senhor acha disso?

Pereira de Carvalho: Isso não é uma tarefa do Inmetro. Ele só está habilitado a definir as especificações intrínsecas do produto. Além do mais, já existe uma ampla legislação ambiental e trabalhista no país. Basta exigir o cumprimento da lei e quem não cumpri-a que seja punido.

A Comunidade Européia disse que só vai comprar etanol de país certificado.
Carvalho: Nosso produto tem por finalidade o abastecimento interno.
Além do mais, o mercado internacional está fechado para nós e não é porque não temos certificação. É porque os países do Norte são protecionistas e estão fazendo de tudo para proteger seu próprio mercado.

A cana no Brasil volta e meia está associada a trabalho escravo...

Carvalho: Falar é fácil, difícil é provar. Em São Paulo isso não acontece. Além do mais, qual é o problema de índio cortar cana? Queriam que ele ficasse bebendo pinga na beira da estrada? Existe uma enorme má vontade com os usineiros, ainda mais depois que Lula nos transformou em heróis. É claro que há desvio de conduta na produção, mas a grande maioria da cana é produzida dentro das normas legais.

O etanol brasileiro virou a menina-dos-olhos dos investidores internacionais.
O senhor está apostando nesse momento?

Carvalho: A história brasileira não viu ainda uma oportunidade tão clara e desenhada como essa. É uma janela de oportunidade muito importante, ainda mais porque a produção de cana-de-açúcar tem uma possibilidade enorme de propagar a riqueza na região onde é plantada. Em São Paulo, por exemplo, a cana gerou riqueza por causa do efeito multiplicador que provoca.

Corpo a Corpo
'Ainda estamos no século XVII'

José Roberto Novaes

Apesar do cerco ao trabalho escravo que vem sendo feito pelo Ministério do Trabalho, o economista José Roberto Novaes, da UFRJ, está convencido de que a relação trabalhista nas usinas só vai mudar quando os usineiros mexerem no índice de produtividade exigido no corte manual. Ele estuda há duas décadas os traços culturais do trabalho na cana-e-açúcar. No processo de modernização das usinas, a carteira de trabalho virou uma prática, mas as condições de trabalho continuam as mesmas.

O Globo O senhor acredita que as usinas substituíram os engenhos?

José Roberto Novaes : As usinas se modernizaram, tanto assim que algumas delas já usam até o corte mecanizado. Mas, no corte manual, continuamos reproduzindo o modelo da época colonial. Nas usinas de cana que usam esse tipo de corte, ainda estamos no século XVII.

Qual é a produtividade exigida hoje?
Novaes: As usinas hoje estão trabalhando com um índice de produtividade muito alto, o que significa cerca de dez toneladas diárias. No passado, era menos da metade desse volume. Além disso, o preço médio da tonelada é muito baixo, R$ 2,70, e eles ganham por produtividade. Isso leva o cortador de cana ao limite da sua força física.

Os trabalhadores têm controle do volume que é cortado?

Novaes:
De jeito nenhum.
A cana é paga pelo metro cortado e por seu peso. Como eles não controlam a produção, existe muita desconfiança em relação ao fiscal. A única experiência no Brasil em que os trabalhadores controlam a produção está sendo realizada numa usina de São Paulo .

Nenhuma usina respeita os direitos trabalhistas?

Novaes:
Cumprir a legislação não é um problema.
Os usineiros estão ganhando tanto dinheiro que muitos assinam até a carteira de trabalho, sobretudo para os trabalhadores do corte mecanizado. Além do mais, cumprir a lei é uma exigência dos bancos para liberarem financiamento.
Só que respeitar a lei não é suficiente. (Liana Melo)

O Globo, 29/04/2007, Economia, p. 29-30

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