VOLTAR

Design abissal

Veja, Geral, p. 86-91
30 de Mai de 2007

Design abissal
A descoberta de novas espécies em regiões profundas dos oceanos mostra como a evolução age para determinar as formas de todos os seres vivos. E também aumenta nossa responsabilidade na preservação da saúde dos mares

Duda Teixeira

Sempre que se aventuram nas profundezas abissais dos oceanos, em regiões onde a luz do sol não chega e a pressão esmagaria um ser da superfície, os biólogos costumam deparar com espécies desconhecidas. São peixes, polvos, lulas e águas-vivas que ao longo da evolução adquiriram aparência surpreendente ao se adaptar ao ambiente hostil em que vivem. Há hoje cinco submarinos, dois russos, um americano, um francês e um japonês, que fazem pesquisas em águas a mais de 3 000 metros de profundidade. A cada duas espécies que eles registram, uma era desconhecida da ciência. Uma coleção de 220 dessas descobertas recentes foi reunida num livro recém-lançado nos Estados Unidos, The Deep: The Extraordinary Creatures of the Abyss (As Profundezas: As Extraordinárias Criaturas do Abismo), da pesquisadora e produtora de filmes francesa Claire Nouvian. A maioria dos animais foi fotografada em seu ambiente natural por câmeras instaladas em submarinos tripulados ou em robôs mergulhadores, capazes de descer a até 6 000 metros. Outros foram fotografados no convés dos barcos após ser trazidos para a superfície em câmaras especiais que mantêm a pressão do fundo do mar. "Antigamente, imaginava-se que, quanto maior a profundidade, menos vida havia. Não é nada disso", disse Claire a VEJA. "A diversidade é impressionante."

Embora haja muito mais espécies nas águas profundas do que se imaginava, a densidade populacional de cada uma delas é pequena em comparação com a de espécies que vivem próximo à superfície. Por isso mesmo, a evolução favoreceu os animais capazes de enfrentar escassez de alimentos e de parceiros sexuais. Os peixes machos da espécie Ceratias holboelli, quando encontram uma fêmea, grudam nela e sofrem uma metamorfose: suas atividades vitais adormecem e eles viram um parasita cujo único órgão ativo é o reservatório de sêmen. Uma forma de facilitar os encontros na escuridão é a bioluminescência. Esse fenômeno ocorre quando peixes, polvos e outros organismos emitem luz própria ou vivem em parceria com bactérias luminosas. As luzes atraem parceiros da mesma espécie. A bioluminescência também atua como isca para os peixes carnívoros atraírem suas presas. Algumas espécies possuem um tipo de vara com uma isca luminosa na ponta que fica a apenas alguns centímetros à frente da boca. Quando uma presa se aproxima, é imediatamente engolida.

O aspecto aterrorizador dos peixes carnívoros tem sua razão de ser. A boca é enorme para que, ao encontrarem suas presas, eles consigam capturar o maior número possível delas, já que o alimento é escasso. O estômago é amplo e elástico para armazenar grandes quantidades de comida pelo máximo de tempo, até que novas presas sejam encontradas. Algumas águas-vivas, embora transparentes, possuem uma membrana colorida que cobre o aparelho digestivo. Dessa forma, despistam o inimigo em busca do alimento que está em seu interior. Apesar do aspecto medonho, alguns peixes das profundezas são um ótimo petisco. Como o orange roughy, encontrado em profundidades entre 160 e 1 600 metros. Sua pesca, feita com extensas cordas com anzóis, começou há trinta anos, na Nova Zelândia. Depois, outros trinta locais passaram a ser explorados no Mediterrâneo e em regiões de vulcões submarinos. Em mais da metade deles, a quantidade de orange roughy fisgados caiu para menos de 30% do volume original. Isso se deve à baixa capacidade das populações de se reproduzirem. A diminuição dos cardumes de orange roughy chama atenção para o risco de destruição de um ecossistema quase totalmente desconhecido, onde 1,5 milhão de espécies, segundo se calcula, ainda aguardam no escuro para um dia ser catalogadas.

Como não há luz solar nas profundezas dos oceanos, a fonte da vida nesses locais são o calor e o gás metano liberados por fendas na crosta terrestre ou por vulcões submarinos. Esse ambiente propicia o nascimento de bactérias, que dão início a uma nova e ainda quase desconhecida cadeia alimentar. Essa fauna, que inclui desde microorganismos até tubarões de 8 metros de comprimento, é hoje uma das últimas fronteiras a ser exploradas pela ciência. "Sabemos mais sobre a Lua do que sobre as regiões profundas dos oceanos", comenta o oceanógrafo José Angel Alvarez Perez, pesquisador da Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. O que já se sabe com certeza sobre a vida a mais de 3 000 metros de profundidade é que ela reproduz os parâmetros que regem todos os animais conhecidos. Embora esquisitos e até assustadores ao olhar dos humanos, os animais dos abismos oceânicos nada têm de original em sua constituição, o que confirma a descoberta do naturalista Charles Darwin de que todos os seres vivos possuem um ancestral comum.

Ao estudarem os fósseis dos mais variados animais, os cientistas perceberam que a evolução abusou da repetição de padrões ao moldar os seres vivos. Um exemplo: todos os vertebrados têm em comum uma coluna vertebral modular, o que varia são o número e o formato das vértebras. Os desenhos da asa de uma borboleta podem parecer aleatórios. Ao examinar detidamente o desenho, porém, nota-se que ele é formado por motivos recorrentes. Outra característica universal da organização dos animais é a simetria. A maioria deles, incluindo os seres humanos, apresenta a simetria bilateral. Se traçarmos uma linha vertical imaginária passando por nosso nariz, dividindo nosso corpo ao meio, veremos que um lado é o espelho do outro. Assim também são os outros mamíferos, os répteis e os insetos. Já as águas-vivas e as estrelas-do-mar têm simetria radial, que se forma a partir do centro do corpo. "A maioria dos animais tem simetria bilateral porque nosso ancestral comum provavelmente apresentava esse tipo de simetria", disse a VEJA o biólogo Douglas Eernisse, da Universidade da Califórnia.

As diferentes formas dos animais que povoam o planeta são resultado de dois processos: o desenvolvimento do embrião e a evolução desde seus ancestrais. A biologia evolutiva já descobriu que, apesar das grandes diferenças na aparência e na fisiologia, todos os animais complexos compartilham um "kit de ferramentas" comum, composto de genes reguladores, que determinam a formação dos organismos. Mas, se todos os seres têm um kit de ferramentas praticamente idêntico, por que não são também iguais na aparência? A resposta está na forma como esse kit é usado em cada animal. A construção das formas que vemos na natureza depende da ativação e da desativação de determinados genes em diferentes momentos e locais do embrião ao longo de seu desenvolvimento. Nos animais dos abismos oceânicos, guiado pelos mecanismos da evolução, o kit de ferramentas determina ao embrião que desenvolva as formas curiosas e assustadoras que se vêem nos animais adultos.

Veja, 30/05/2007, Geral, p. 86-91

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.