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Deserto de homens e trabalho

O Globo, Economia, p. 38-39
29 de Nov de 2009

Deserto de homens e trabalho
Desertificação já atinge 87% do município de Irauçuba, no Ceará. PIB do Nordeste poderá encolher 11,4%

Liana Melo Enviada especial
Irauçuba, Ceará

Todo fim de tarde, Francisco Oliveira pedala três léguas, ou 18 quilômetros, para embrenharse no mato. Munido de apenas dois pauzinhos de madeira, ele arma "vários quixós" (uma espécie de armadilha) e volta no dia seguinte, bem cedo. Sua presa é um rato-domato, também conhecido entre os sertanejos como rabudo. Francisco, 65 anos, chega a levar para casa uma dúzia deles, que são consumidos entre o almoço e o jantar.

Pai de oito filhos, 17 netos e um bisneto, Francisco e a esposa Maria Socorro, de 62 anos, garantem que a carne do bicho é saborosa. Por falta de opção melhor para levar à mesa, a família Oliveira varia apenas na forma do preparo: frito ou cozido.

- Em todos estes anos, nunca dormimos com fome. Rabudo aqui não falta - lembra Francisco, que já usou o bicho até como moeda de troca para comprar legumes.

Não é só na casa de Francisco que o rabudo é um dos itens do cardápio. O bicho já consta do hábito alimentar de Irauçuba - município apontado como um dos polos de maior aridez do semiárido nordestino.

No Ceará, problema já atinge 10% do território
Localizado a 150 quilômetros de Fortaleza, no Ceará, a cidade está vivendo um processo avançado de desertificação. Pouco mais de 87% da região já estão virando deserto e o percentual no estado chega a 10,2%.

Cálculos preliminares da Fiocruz e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) dão conta de que o avanço desse processo associado às mudanças climáticas podem provocar uma redução de 11,4% na taxa de crescimento da economia nordestina até 2050. Só a área agricultável do Ceará deverá sofrer um encolhimento de 79,6%.

Vítima recorrente da seca, que é um fenômeno ecológico, a desertificação que atinge a zona rural de Irauçuba é resultante da pecuária, das queimadas (para ampliar áreas de cultivo e pastagem ou para produção de lenha) e do uso inadequado da terra. É comum os agricultores locais abandonarem seus roçados, cultivados no máximo duas vezes, para abrirem novas clareiras.

A agricultura é basicamente de subsistência. Predomina o cultivo de milho e feijão.

A associação da seca com o uso inadequado do solo acabou imputando a Irauçuba o título de o deserto do Ceará.

- Ainda não temos nenhuma área desértica - garante o vice-governador do estado, Francisco Pinheiro (PT), admitindo, que, em outras regiões do Ceará, como no Médio Jaguaribe, onde se encontra a maior extensão de áreas desertificadas (44,1 mil km2) do estado, o processo já atingiu 23,54% do município.

O preocupante, na avaliação do prefeito de Irauçuba, Raimundo Nonato (PHS), é que a desertificação coincide, em grande parte, com os maiores bolsões de miséria da região. A coincidência já virou regra no país, onde a desertificação é uma realidade.

É comum ver as crianças de Irauçuba brincarem com ossada de gado, já que até mesmo uma simples boneca ou uma bola é inacessível ao bolso do sertanejo. Sombra também é algo raro no município.

As queimadas praticamente acabaram com espécies como angico, aroeira e imburana, entre outras. A derrubada das árvores criou também um deserto de pássaros, que migraram à procura de habitat mais amigável para viverem.

- Diante da escassez derecursos e da falta de políticas públicas estadual e federal, sancionamos, em junho, a primeira lei municipal de combate à desertificação. Também criamos um fundo para captar recursos - afirma Nonato.

Cálculos estimados pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) dão conta de que seria necessário um verba anual de R$ 30 milhões para combater o problema no país. A Coordenação de Combate à Desertificação do ministério está contando este ano com apenas R$ 4 milhões.

Estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) concluiu que as mudanças climáticas tendem a aprofundar a desertificação. Para realizar o trabalho "Mudanças Climáticas, Migrações e Saúde: Cenários para o Nordeste Brasileiro 2000-2005", os pesquisadores desenvolveram o Índice de Vulnerabilidade de Desertificação (IVD).

Por este índice, chegou-se à conclusão que 1% do Nordeste se encontra sob risco elevado de desertificação. O Ceará, por sua vez, está no topo da lista, com Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia.

Não bastasse isso, o Ceará é o estado com maior índice de vulnerabilidade à dengue e à leptospirose.

Com o solo empobrecido, está ficando cada vez mais difícil garantir o sustento de quem vive da terra. Até o gado, que ainda é a principal fonte de renda do município, virou vítima da desertificação, depois de ser seu algoz.

A população de bovino é dobro do que a condição ambiental do município suporta.

No lugar de 12 mil cabeças, o superpastoreio chega a 20,4 mil cabeças.

Não sobrou nem capim verde para o gado
- O gado praticamente não tem mais capim verde para comer. Já até aluguei pasto no Maranhão, para o gado não morrer de fome - lembra o pecuarista Rufino Gomes.

Mesmo que não sobre nenhum açude, ele não terá como repetir a estratégia. É que os estados vizinhos, incluindo o Maranhão, estão com medo da proliferação dos focos de febre aftosa. O pecuarista chegou a pagar R$ 15 de aluguel por cabeça.

Dono de duas fazendas, que juntas somam 2,5 mil hectares, Gomes, também é dono de duas redes de supermercado na região. Ele não descarta substituir seu gado de corte pelo leiteiro.

- Gado como dinheiro.

Criando gado leiteiro posso vender o produto nas redes de supermercados que meus filhos administram - pensa alto Gomes, pai de quatro filhos, dois dos quais cuidam das lojas.

Vilões: gado e mineração

Não se pode confundir desertificação com seca, que é um fenômeno periódico e climático. A desertificação acontece em ambientes frágeis, mas é a ação do homem que dá início ao processo. Excesso de gado ou mineração, salinização das terras por irrigação e esgotamento do solo e dos recursos hídricos, por procedimentos intensivos e não adaptados às condições ambientais, são as principais causas da desertificação.

Desertificação já atinge 7 estados e 30 milhões
Além do Nordeste, problema afeta áreas em Minas e Rio Grande do Sul, o que significa 15% do território do país

Liana Melo Enviada especial

IRAUÇUBA (CE). Sete estados e 1.482 localidades espalhadas pelo Ceará, Piauí, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Rio Grande do Sul entraram na rota da desertificação. A maioria destes locais vive em situação de pobreza ou miséria.

Identificado como um processo circunscrito ao semiárido, a desertificação rompeu fronteiras e atingiu municípios gaúchos e mineiros. A população afetada já chega a 30 milhões de pessoas, segundo o Ministério do Meio Ambiente.

Um total de 1,3 milhão de km2 do território nacional já estão afetados, o que significa 15% do país.

O prenúncio de chuva, ainda que esparsa, é o suficiente para que o sertanejo Genivaldo Pereira, de 78 anos, faça uma oração agradecendo as poucas gotas que caem do céu, em Irauçuba. Ele vive da agricultura de subsistência e nunca teve carteira assinada.

Quatro estados lideram os maiores índices no Brasil A desertificação não é um flagelo moderno. A novidade é que o avanço deste processo sinaliza uma ameaça global. A cada minuto, 12 hectares de terra viram deserto no mundo, segundo a ONU. O avanço do processo de desertificação no Brasil e no mundo será um dos assuntos da Conferência das Partes da Convenção do Clima (COP-15), que ocorrerá em Copenhague, na Dinamarca, na primeira semana de dezembro. O Brasil vai chegar ao encontro com uma proposta ousada.

Irauçuba (Ceará) divide com Seridó (Paraíba), Gilbués (Piauí) e Cabrobó (Pernambuco) o título de municípios mais desertificados do país.

Segundo diagnóstico do Ministério do Meio Ambiente, as áreas mais atingidas pela desertificação ainda estão concentradas no Nordeste, num perímetro de 180 mil km2.

- Em uma região economicamente frágil como o semiárido nordestino, a redução da produção agrícola e a falta de trabalho podem desencadear ondas migratórias - avalia Alisson Barbieri, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e um dos autores do relatório "Mudanças Climáticas, Migratórias e Saúde: Cenários para o Nordeste brasileiro 2000-2050".

Cruzando os cenários de mudanças climáticas com o processo de desertificação, o estudo concluiu que a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB, a soma de todos os bens e serviços) do Nordeste pode deixar de crescer 11,4%. Isto sem falar no encolhimento das áreas agricultáveis. Cálculos preliminares dão conta de que no Ceará a redução pode chegar a 79,6%. Em outros, como no Piauí, pode chegar a 70,1%, na Paraíba, 66,6% e em Pernambuco, 64,9%.

Minc está angariando apoios internacionais O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, passou os últimos dias angariando apoios para a ideia de incluir o combate à desertificação como uma das ações de enfrentamento do aquecimento global. Países como Inglaterra e Noruega já concordaram em apoiar a proposta brasileira.

- Estou defendendo que as ações de recuperação de áreas degradadas, como os núcleos desertificados, entrem no Mercado de Crédito de Carbono - explica Minc, que apresentou a proposta em Buenos Aires, em setembro, quando ocorreu a COP-9 da desertificação.

Cidade fantasma
Sertanejos migram e abandonam casas

Irauçuba (CE). Casas abandonadas, outras destruídas, praticamente nenhum sinal de animal no pasto. A desertificação está expulsando o homem do campo e transformando algumas localidades de Irauçuba em cidades fantasmas. Contrariando as possíveis traduções do nome do município em Tupi-Guarani (ira, significa mel, e aussuba, bom sentimento, por extensão amizade), a desertificação transformou Irauçuba num lugar pouco amigável para o homem.

Com a vegetação competindo pela pouca água, o casal Maria e Jorge Firmino, ambos com 58 anos, não conta mais nem com a vizinhança para pedir ajuda em caso de necessidade. Nos últimos 50 anos, houve uma inversão da densidade demográfica no município. Enquanto nos anos 60, 85,72% da população viviam no campo; atualmente, 60,95% dos moradores moram na cidade, segundo dados do IBGE.

Até quando chove, é um problema. A compactação do solo faz com que a água não se infiltre, inundando áreas inteiras.

- No último inverno, perdemos toda a plantão de feijão - lembra Jorge.

Mais precavida, Carolina Martins, 85 anos, armazena milho, que é plantado numa área de 30 alqueires. Um dos quartos da casa onde mora é lotado de milho, que garante a alimentação do gado e da família. Ela divide a casa com o marido Luiz Lopes, 90 anos, e Antonio, o único dos dez filhos do casal que não migrou.

- Tenho medo de passar fome - admite Carolina, que dorme agarrada a uma chave - Tenho um tesouro.

Seu tesouro é uma garagem lotada de grãos, como arroz e feijão. O marido não tem acesso a chave. (Liana Melo)

Desafio é dar educação ambiental aos mais jovens saírem da miséria
Objetivo é evitar que eles cometam os mesmos erros que os seus pais

IRAUÇUBA (CE). Há dez anos, o agrônomo José Gerardo, da Universidade Federal do Ceará (UFC), estuda a capacidade de recuperação do solo de Irauçuba. São ao todo oito áreas de estudo e, até hoje, nenhuma delas se recuperou.

Depois de dez anos estudando nos Estados Unidos, onde viu de perto os resultados conquistados no deserto de Sonora, ele sonha em implantar no município um modelo similar ao americano. Ou seja, multa para quem prejudicar o solo.

A seu favor, conta o fato de o município ter sido o primeiro do país a criar uma legislação própria de combate à desertificação. Amparado pela lei, o Instituto Cactus vem criando alternativas simples para ajudar o sertanejo a romper a linha da miséria absoluta.

Cisternas ajudam a tirar sertanejo da miséria É o que vem ocorrendo, por exemplo, no distrito de Boqueirão, onde o Programa Um Milhão de Cisternas, do governo federal, já chegou.

Rosa Araújo está conseguindo sobreviver graças ao sistema de mandala, uma espécie de laguinho no fundo do quintal. Além dos peixes ali, a água é usada para irrigar a horta familiar.

- Estamos apostando também na educação ambiental - admite Claudia Motta, uma das coordenadoras do Instituto Cactus, que desenvolveu uma cartilha, que está sendo distribuída nas escolas do município. - Nossa esperança é trabalhar com as gerações futuras, evitando assim que a desertificação passe de geração a geração. (Liana Melo) n O Globo na Internet

Falta recurso e coordenação
A desertificação é um processo antigo, mas ele vem se intensificando, diagnostica o sociólogo brasileiro Heitor Matallo, da Convenção das Nações Unidas de Luta contra a Deser tificação (UNCCD, sigla em inglês), com sede em Bonn, na Alemanha.

O Globo: O senhor acredita que as causas da desertificação são as mesmas ou elas sofreram mudanças?

Matallo: A desertificação sempre esteve relacionada às regiões secas e as populações mais empobrecidas.

Só que a globalização criou novas relações econômicas e de mercado, o que acabou mudando o perfil da desertificação.

O desenvolvimento de novos mercados gerou uma pressão maior sobre o ecossistema.

É possível interromper este processo?

Matallo: Sim, só que isso requer investimentos para melhorias das técnicas de uso dos solos.

Os cálculos não são precisos, mas já se fala em investimentos de US$ 40 bilhões anuais.

O Brasil não tem deserto, ainda assim o processo aqui chama atenção.

Por quê? Matallo: Porque o semiárido é uma das regiões mais populosas do mundo, numa região carente de água.

E como anda a luta de combate à desertificação no Brasil? MATALLO: O Programa de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca é de 2004.

O problema é que falta coordenação ministerial e os recursos para implementar as políticas públicas.

Quais as principais consequências da desertificação?

Matallo: Ela cria um deserto econômico e populacional, mas não um deserto ecológico. (L.M.)

O Globo, 29/11/2009, Economia, p. 38-39

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