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Descaso às margens do Grande Rio

O Globo, Planeta Terra, p. 4-9
20 de Mar de 2012

Descaso às margens do Grande Rio
Denúncia aumenta dimensão da poluição do Paraíba do Sul, principal fonte de água do estado

Renato Grandelle
renato.grandelle@oglobo.com.br

Depois de amanhã é uma data importante para o meio ambiente. Mas o Dia Mundial da Água não chega com boas notícias.
Em cada canto do mundo parece haver um problema. Das geleiras do Himalaia que derretem, agigantam o volume dos rios e causam enchentes à falta de saneamento básico em países menos desenvolvidos. Assoreamento e mudanças no regime de chuvas fazem com que rios como o Piabanha, na Região Serrana, praticamente desapareçam nos períodos mais secos do ano. E ainda há problemas mais próximos da capital fluminense. A água que abastece boa parte da Região Metropolitana chega carregada de poluentes, que passam incólumes pelas estações de tratamento, segundo especialistas.
Além da inadequação do serviço, há muito carente de novas tecnologias, ainda existem municípios que não detêm o lançamento de esgoto em seus rios.
Quase todo o Grande Rio é abastecido com água tratada pela estação do Guandu. Ela recebe 160 metros cúbicos de água por segundo do Rio Paraíba do Sul. Este, por sua vez, é um dos rios mais importantes do país. Sua bacia banha 184 municípios de Rio, Minas Gerais e São Paulo. Duas das primeiras cidades por onde o Paraíba do Sul passa, ao chegar em território fluminense, são Resende e Volta Redonda. Engenheiros da Coppe-UFRJ encontraram esgoto in natura próximo a estes municípios. Mas, entre o fim do ano passado e janeiro, de lá veio material ainda mais perigoso para o rio. Um líquido com alto poder de corrosão, normalmente encontrado apenas em aterros sanitários.
O poluente, o malcheiroso chorume, foi produzido em Volta Redonda. A prefeitura de lá contratou a Águas das Agulhas Negras, concessionária de água e esgoto de Resende, para tratar de 60 mil litros da substância.
O município vizinho foi avisado do negócio, e não se opôs quando a empresa levou a carga para uma estação de tratamento desativada. Por pelo menos um mês, o chorume foi transportado em carretas para lá, até os vizinhos da instalação denunciarem o movimento.
O chorume produzido em Volta Redonda foi levado a uma estação de esgoto desativada de Resende pela concessionária Águas das Agulhas Negras. O despejo do material no Rio Paraíba do Sul ocorreu por um mês, até ser denunciado por vizinhos da estação à imprensa. A Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) da Morada do Contorno tem as portas fechadas e uma placa do governo federal atrás de sua cerca, avisando que passa por "melhoria e reforma". Apenas um vigilante transita por ali. A movimentação só aumentou em dezembro, quando uma equipe de eletricistas recebeu uma missão-relâmpago: reativar a estrutura - ou, ao menos, parte dela. Foi o início de um imbróglio que, na semana passada, culminou com a entrada de uma ação civil pública contra as prefeituras dos dois municípios e a Águas das Agulhas Negras.
- Tínhamos de fazer os equipamentos funcionarem até 12 de dezembro - lembra o eletricista Junior Cesar Nogueira. - No dia 13, chegou a primeira carreta. Logo vi que ali havia chorume. A estação não tinha capacidade para tratar aquilo. O que fizemos foi uma maquiagem.
A operação, segundo Nogueira, chegou aos eufemismos. O termo "chorume" teria sido estritamente proibido dentro da Estação do Contorno. No lugar dele, deveria ser usado "resíduo". O baixo escalão, porém, optou pela ironia.
- Dizíamos que o "filho feio estava chegando" - lembra. - Vinha sempre uma carreta de manhã e outra à tarde.
A partir da segunda semana, Nogueira começou a tirar fotos do descarregamento de chorume. Mas o eletricista não era o único preocupado com o Contorno. Vizinhos da instalação entraram em contato com a imprensa local. No dia 12 de janeiro, quase um mês após a chegada da primeira carreta, uma equipe do jornal "Beira Rio" conseguiu flagrar um descarregamento. Outros meios de comunicação repercutiram o caso.
Procurada, a Agência de Saneamento de Resende (Sanear), vinculada à prefeitura, afirmou no dia seguinte que pediria esclarecimentos à empresa Águas das Agulhas Negras. Na ocasião, a Sanear declarou desconhecer o caso porque, "segundo a própria concessionária, (a estação) estaria fechada".
A falta de diálogo entre Sanear e a concessionária chama a atenção. Primeiro, porque são fiscal e fiscalizada - e já havia se passado um mês desde o início da chegada do chorume. Segundo, porque ambas são vizinhas. Nada, além de uma cerca, separa a sede de ambas.
- Embora sejamos vizinhos, não estávamos sabendo, até o jornal publicar - reconhece Luiz Cláudio Siqueira, presidente da Sanear. - Demos 48 horas para eles (a Agência das Agulhas Negras) se explicarem, mas achamos que (a justificativa) não foi suficiente. Precisávamos de tempo para avaliar.
Demorou 20 dias até a Sanear concluir que o derramamento do poluente em uma estação outrora desativada era algo passível de infração. Em 2 de fevereiro, a Águas das Agulhas Negras recebeu uma multa diária de R$ 4.284, válida a partir dali, até que esclarecesse a denúncia.
- Quem tinha que dar a autorização não era a Sanear, mas a Agência do Meio Ambiente de Resende (Amar, uma autarquia municipal) - defende-se Ivan Moura, superintendente da Águas das Agulhas Negras. - Não fizemos nada sem pedir a autorização da Amar. Mas, duas horas antes de receber a multa da Sanear, a concessionária recebeu outra infração, esta bem mais alta - R$ 250 mil -, da Amar.
- Quando apareceu na mídia, o município resolveu pedir esclarecimento - justifica Moura. - Participamos de uma ajuda entre dois municípios. Não houve contrato, só um termo de cooperação. Nada cobramos pelo serviço. Foi tudo em prol do meio ambiente.
Segundo Moura, o volume de poluentes recebidos pela estação do Contorno corresponde a apenas 7% de sua capacidade - e o material jogado ali era remetido, por uma adutora, a outra estação, a da Alegria, que fazia de fato o tratamento. Como o Contorno é uma estrutura menor, não precisaria de um operador fixo.
- Não sei dizer se a estação do Contorno está funcionando agora - admite Paulo Fontanezzi, presidente da Amar. - Aplicamos a multa porque havia erros no preenchimento de um formulário. Estava escrito que era chorume de origem industrial, o que acabou não sendo verdade.
O superintendente do Médio Paraíba do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Miguel Arcanjo, realizou uma vistoria na estação do Contorno. Em nota ao GLOBO, ele afirmou "ter garantias da prefeitura de Volta Redonda de que (o lixo) era oriundo de resíduos domésticos. (...)
Aparentemente o chorume, misturado ao efluente doméstico (...), não criou maiores problemas". No comunicado, ele garante não ter havido queixas da comunidade - embora tenham sido os vizinhos que se queixaram do odor aos jornais.
O secretário de Serviços Públicos de Volta Redonda, Nelson Gonçalves, não retornou as ligações do GLOBO.
Nogueira foi demitido pela Águas das Agulhas Negras em fevereiro. Segundo ele, a empresa o culpou pelo vazamento da operação do chorume. A concessionária está recorrendo das multas. (R.G.)

Poluentes podem causar até câncer

A polêmica do chorume rendeu uma ação civil pública, impetrada na semana passada em Resende pela ONG Instituto Agulhas Negras. Segundo o advogado Marco Antônio Flexa, especializado em direito ambiental, as prefeituras e a concessionária envolvidas no episódio deveriam ter agido mais cedo:
- Todos são poluidores solidários.
Quando se trata de matéria ambiental, a responsabilidade é objetiva: não cabe somente ao indivíduo que cometeu a ação diretamente, e sim a todos que participaram da dela, diretamente ou não. Como vamos nos servir daquele manancial se ele é contaminado por uma matéria nociva? E a defesa deles se restringe a dizer que não foi chorume industrial o material jogado no rio, e sim lixo doméstico.
Coordenadora de Laboratório de Controle da Poluição das Águas da Coppe-UFRJ, Márcia Dezotti detectou hormônios no Paraíba do Sul, entre outras substâncias danosas à saúde. Resende, Volta Redonda e Barra Mansa eram as cidades com situação mais crítica.
- Um descarte de chorume dessa natureza causa grandes problemas, porque as estações pararam no tempo; têm a mesma infraestrutura desde os anos 50 - alerta. - São instalações que dão conta de cloro ou areia, mas não de micropoluentes.
Fármacos e poluentes orgânicos, segundo a pesquisadora, produzem efeitos adversos ao organismo mesmo em concentrações muito baixas.
- Alguns deles, mesmo sendo tóxicos, são tão resistentes à biodegradação que acabam introduzidos na cadeia alimentar - explica Márcia. - Essas substâncias, no sistema endócrino de animais, produzem diversos efeitos, como a eclosão de ovos de pássaros, peixes e tartarugas e deformidades no sistema reprodutivo de répteis, pássaros e mamíferos.
Entre os seres humanos, a variedade de consequências também é ampla.
Vai da diminuição da qualidade do esperma à endometriose, passando por alguns tipos de câncer, como os de testículos, próstata e mama.
- Antigamente, achava-se que o adiantamento da puberdade devia-se ao estímulo visual. Hoje sabemos que isso se deve à ingestão de substâncias como pesticidas - revela a química.
- O chorume produz vários efeitos no organismo, cuja gravidade depende do tipo de aterro. Se vier de uma estrutura antiga, a contaminação é persistente. Se for de uma instalação mais nova, ele pode ser biodegradável.
Além das estações de tratamento do Vale do Paraíba, Márcia defende obras de atualização na estrutura do Rio Guandu, fonte de abastecimento de água para 8,5 milhões de pessoas.
Márcia reconhece que o desafio é substancial - assim como as somas necessárias para a modernização das instalações. Os poluentes são muitos e encontram diversas formas de chegar ao curso d'água. Há as substâncias industriais, as domésticas, as empurradas por depósitos clandestinos e pelas chuvas.
Seja qual for o caminho, os micropoluentes não encontram empecilhos nas estações, algo muito diferente de iniciativas em vigor em numerosos países.
- O governo francês, por exemplo, determinou que todos os micropoluentes, como pesticidas, hormônios e antibióticos, sejam filtrados nas estações até 2015 - lembra Márcia. - O que adianta sermos a sexta maior economia do mundo se ainda abastecemos de uma forma tão precária a população? (R.G.)

No fórum mundial, poucas soluções

As últimas duas décadas registraram avanços nas políticas mundiais relacionadas à distribuição de água potável. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 89% da população mundial têm esse bem disponível - em 1990, o percentual era 77%. Segundo o relatório da OMS e do Unicef, publicado no início do mês, o planeta bateu uma meta esperada apenas para 2015. Os índices, porém, são contestados por muitos especialistas, que acusam as agências da ONU de empregar métodos imprecisos de medição e confiar em dados fornecidos por governos, mas não comprovados.
A insatisfação com as metas globais sobre acesso à água é só parte da discussão. O Fórum Mundial da Água, realizado na semana passada em Marselha, no Sul da França, terminou sem alcançar avanços significativos em políticas de uso da água. Temas importantes, como a poluição, foram praticamente deixados de fora das discussões oficiais.
Uma questão que pouco avançou é a da melhoria de acesso ao saneamento básico. Quando publicou as metas do milênio, em 2000, a ONU estimava que 75% do planeta contariam com tratamento de esgoto em 15 anos. Até agora, no entanto, apenas 63% têm este serviço disponível. Mantido o ritmo atual, cumpriremos a meta com 32 anos de atraso.
A própria ONU reconhece que este índice, desolador, pode estar superestimado. Em diversos casos, as agências responsáveis pela pesquisa consideraram como realizadas obras de saneamento que, por enquanto, estão apenas no papel. No Brasil, segundo as Nações Unidas, 75% contam com este serviço.
Segundo o Instituto Trata Brasil, especializado em água e esgoto, este índice é de apenas 45%. (R.G.)

O Globo, 20/03/2012, Planeta Terra, p. 4-9

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