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Descaso em Dourados

CB, Brasil, p. 16
04 de Mai de 2005

Descaso em Dourados
Funasa é acusada de incapacidade administrativa em relatório sobre morte de crianças guarani-kaiowá. Há desnutrição e falta saneamento

Paloma Oliveto
Da equipe do Correio

Não é a falta de comida, mas as precárias condições de saneamento básico e atendimento à saúde que vêm matando indiozinhos da etnia guarani-kaiowá nos estados Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O relatório da Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre a morte de crianças indígenas por desnutrição concluiu que a incapacidade administrativa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) é responsável pela situação precária em que se encontram as aldeias da etnia. A votação do texto, prevista para ontem, não aconteceu porque o deputado João Grandão (PT-MS), mesmo partido do coordenador do órgão em MS, Gaspar Hickmann, e do governador do Estado, Zeca do PT, pediu vistas do relatório. O documento deverá ser votado na próxima terça-feira.
O texto, porém, não deverá sofrer modificações. "Todos sabem que o relatório foi elaborado a partir das sugestões dos membros da comissão", disse a relatora, Maria Perpétua de Almeida (PCdoB-AC). Ela lamentou a manobra do deputado João Grandão. "A sociedade está cobrando uma resposta sobre a morte dessas crianças". E reforçou a ineficiência dos trabalhos da Funasa: "A atuação é preocupante. Não existe água tratada nas aldeias, a saúde não é priorizada, os agentes não são treinados", afirmou. O deputado Geraldo Resende (PPS-MS), presidente da Comissão, lembrou que as condições de habitação dos índios também são péssimas. "Muitos moram em barracões cobertos por lona", disse.
A comissão aponta que, em 2003, a Funasa de MS cancelou, "inexplicavelmente", atividades realizadas em parceria com instituições não-governamentais, como a distribuição da multimistura (utilizada pela Pastoral da Criança, movimento da igreja católica de combate à desnutrição), do sopão comunitário e do leite de soja. O relatório também afirma que os agentes de saúde são despreparados e não sabem como lidar com a cultura indígena. Segundo apurou a comissão, embora a Funasa tenha garantido que 100% das aldeias na região de Dourados foram beneficiadas pelo programa de abastecimento de água, algumas comunidades não chegam a ter 10% de extensão da rede para as casas dos índios. "As torneiras espalhadas ficam dias a fio sem uma gota d'água", diz o relatório. Procurada pela reportagem do Correio, a Funasa afirmou que não se pronunciaria sobre o trabalho.
Casas de "chocolate"
Durante as visitas dos parlamentares, um dos aspectos que impressionou o deputado Geraldo Resende foi a precariedade da moradia dos índios. Na aldeia dos Jaguapiru e Bororó, em Dourados, os indígenas chamam de "casa de chocolate" as construções de solo-cimento (mistura de terra, cimento e água), erguidas com recursos do Ministério das Cidades. "Com um pouco de chuva e vento, as casas caem", diz o deputado. Ele lembrou que em setembro de 2004 a Caixa Econômica Federal, responsável pelo repasse dos recursos para a empreiteira AC Construções, já havia alertado o ministério sobre a fragilidade das casas. Somente agora, depois que duas casas caíram, o dinheiro foi suspenso.
"Viver debaixo de lona é horrível. Os índios não têm geladeira. A água esquenta, a comida apodrece com o calor e as crianças ficam doentes. Não adianta a Funasa querer tratar os índios só com remédio. É preciso considerar o problema do saneamento", diz o o kaiowá Celso Maciel, da aldeia Limão Verde, a 425 quilômetros de Mato Grosso do Sul.
Segundo Maciel, o número de óbitos de crianças indígenas na região é maior do que o admitido pela Funasa - seriam 21 desde janeiro deste ano. "Mais de três mil não têm certidão de nascimento. Muitas morrem e não são contabilizadas", diz. O deputado Geraldo Maciel disse que pedirá ao Ministério Público Federal que investigue o número real de indiozinhos mortos. Um levantamento realizado pelo gabinete do presidente da comissão constatou que foram 36 óbitos em 2005. Já o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) diz que foram 33. "Temos certeza de que esses números da Funasa foram 'maquiados'", acusa Maciel.

À própria sorte
Dos cerca de 310 mil índios que existem no país, 117 mil encontram-se em situação de fome/carência alimentar;
No pólo de Amambaí, no Mato Grosso do Sul, 331 crianças estão desnutridas e 306 em risco nutricional. São 40% de indiozinhos com alguma deficiência nutricional;
A taxa de mortalidade infantil (TIM) entre indígenas é de 48 em cada 100 mil nascidos vivos. O dobro da média nacional;
No ano passado, a TIM nas aldeias do Mato Grosso do Sul foi de 62 em cada 100 mil nascidos vivos. Mortalidade infantil por pólos do estado: 89,13 (Amambaí), 91,43 (Itaguatemi) e 99,34 (Tacuru);
Em 2003, das 1.628 aldeias brasileiras, apenas 589 possuíam abastecimento de água. Desse total, 378 não tinham nenhum tipo de tratamento, sendo que a principal fonte de captação de água eram poços (em 339 aldeias).
Em 2004, foram gastos R$ 5,4 milhões com passagens para funcionários da Funasa. No mesmo ano, a fundação gastou R$ 1,6 milhão com medicamentos
Fonte: relatório da Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre a morte de crianças indígenas por desnutrição.

CB, 04/05/2005, Brasil, p. 16

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