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Delegada na cidade mais indígena do Brasil, Grace Jardim crê numa polícia acolhedora

Revista Marie Claire - https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/
Autor: RADLER, Juliana
30 de Set de 2020

Delegada na cidade mais indígena do Brasil, Grace Jardim crê numa polícia acolhedora
Foi com ouvidos atentos que ela aproximou as mulheres de São Gabriel da Cachoeira, interior do Amazonas, da delegacia em que é titular desde janeiro de 2019. Trabalhando na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, ela ainda enfrenta narcotraficantes, quer ressocializar presos e age para proteger a população indígena

Juliana Radler, de São Gabriel da Cachoeira
Colaboração para Marie Claire
30 Set 2020

Em janeiro de 2019, quando chegou a São Gabriel da Cachoeira, município no interior do Amazonas de cerca de 40 mil habitantes com 90% da sua população indígena, Grace Jardim, de 33 anos, encontrou a carceragem da delegacia abarrotada. Os presos, também de maioria indígena, cumpriam pena ou aguardavam julgamento de forma precária e improvisada, instalados em colchonetes no chão das celas. Assim como em todo o Brasil, a população carcerária também cresce no meio da floresta amazônica sem que o Estado consiga propor soluções e alternativas de ressocialização. Amazonense de Manaus, Grace é delegada da Polícia Civil especializada em crimes contra crianças, adolescentes e idosos na Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de São Gabriel da Cachoeira, e vem se dedicando especialmente ao combate à violência doméstica e sexual.

Antes de chegar à cidade, no rio Negro, trabalhou no Ministério Público em Tabatinga, outra área de fronteira com Peru e Colômbia no rio Solimões, e como delegada em Parintins, a cidade dos bois Garantido e Caprichoso. "Em Parintins passei por uma rebelião de presos muito violenta que acabou com várias mortes", lembra. Ao se deparar com a delegacia desorganizada e lotada de presos em São Gabriel da Cachoeira, o medo era de que essa história se repetisse e com consequências ainda piores.

Por ser um município fronteiriço na Amazônia, os desafios na área de segurança são ainda mais complexos. As pressões de atividades ilegais e a atuação das facções criminosas no escoamento de droga na região ameaçam a paz dos povos indígenas, pertencentes a 23 etnias. "A grande quantidade de furtos que tem na cidade é devido ao uso de drogas. Felizmente, aquele tipo de crime de disputa de facções para dominar a venda da droga a gente ainda não tem aqui. Então, precisamos atuar enquanto isso ainda não existe. Porque se as facções pegarem essa região, pode haver uma matança grande", afirma.

Recentemente, Grace liderou uma equipe de oito policiais civis que vieram de Manaus para lhe dar apoio na operação Adana, que desmembrou uma quadrilha que usava a região como rota de droga da Colômbia até Manaus. "Como aqui é área de fronteira e também de terras indígenas demarcadas, a Polícia Federal tem que atuar. Só que a gente só tem um agente da PF aqui! Então, acabo pegando as denúncias. Imagina eu não prender um pedófilo que está levando fotografias de crianças estupradas para outros países e que faz parte de grupos internacionais de pedofilia. Por que não fazer a atuação? Eu acredito que na falta da Polícia Federal seria até injusto eu não atuar porque penso nas vítimas, estou sempre pensando nas vítimas", ressalta.
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No feriado de 7 de setembro, Grace foi até a sede do Instituto Socioambiental (ISA), em São Gabriel da Cachoeira, para conversar sobre seu trabalho na delegacia e em especial junto às mulheres indígenas vítimas de violência doméstica e sexual. Com o ISA e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), instituições da sociedade civil que atuam junto às 750 comunidades indígenas da região, a delegada vem trabalhando para fortalecer uma rede de acolhedoras e no processo de escuta e conhecimento das violências sofridas pelas mulheres indígenas. O trabalho conta também com a participação de pesquisadores e professores da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Observatório de Violência de Gênero da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Durante a pandemia, assim como em outras partes do mundo, a violência contra mulheres, crianças e adolescentes aumentou na região, levando o grupo a organizar uma cartilha que foi distribuída com intuito de apoiar as vítimas e ajudá-las a denunciar e serem amparadas.

Aqui, trechos de nossa conversa com Grace Jardim:

Marie Claire Como foi se tornar delegada, ainda mais em região de fronteira?
Grace Jardim Para minha família foi um choque quando passei para ser delegada. Eles não queriam, achavam que eu não tinha o perfil. Até eu achava isso no início porque era mulher, machismo meu. As pessoas pensam logo que para ser delegado precisa ser violento, falar alto, falar palavrão. Eu realmente não tenho esse perfil. E estranhava e achava que não me identificava com a profissão. Mas, aos poucos fui percebendo que uma pessoa como eu era boa para atender à população sem ter essa coisa de gritar, assustar. Comecei a perceber também que a gente precisa de alguém que tenha coragem de enfrentar os problemas, mas também possa ver a delegacia como um lugar de acolhimento.

MC Como se dá esse trabalho de acolhimento?
GJ Percebi que as pessoas precisavam de um atendimento acolhedor, independente do crime. Essas pessoas precisavam ser ouvidas. Eu vi a necessidade de separar um tempo para que eu pessoalmente ouvisse as pessoas. Então, eu separei as manhãs. Toda manhã eu atendo as pessoas. Ainda assim algumas são inibidas, inclusive tem até medo de passar perto da delegacia e atravessam a rua para o outro lado da calçada. Isso porque o atendimento antes não era feito de forma acolhedora. Eram sempre homens. Não que os homens não sejam acolhedores. Mas, eles precisam passar por uma reciclagem. Eu fiz várias reuniões nesse sentido. Alguns me falavam assim: ah, a vítima é isso, é aquilo...essa daí gosta de apanhar. Eles falavam na frente da mulher. A mulher que escuta isso nunca mais vai pisar na delegacia, nunca mais vai pedir ajuda. Então, coisas assim eu fui inibindo.

MC O que é mais difícil no dia a dia do seu trabalho?
GJ Fazer com que os homens acreditem que eu tenha capacidade. Até mesmo as pessoas que eu estou atendendo. Já ouvi várias vezes: "Ah, aquela delegadazinha pensa que vai me prender". Isso é muito chato. Se fosse um homem nessa função jamais seria tratado dessa maneira. "Quem aquela mulher pensa que é para prender alguém com uma arminha daquele tamanho?" As pessoas pensam que tudo que é maior é mais eficiente. Puxa, mas meu objetivo não é matar ninguém. É apenas cumprir a lei, né? Já recebi assédio também e isso é bem chato, inclusive de colegas de profissão. Quando cheguei aqui como delegada, tinha apenas uma outra mulher na delegacia, que era uma escrivã. Então, éramos só nós duas. E eu me uni a ela e pedi que ela fosse meus olhos na delegacia. Aí aos poucos fui conseguindo outras mulheres e acho que isso foi um avanço muito grande. Tenho hoje uma assistente administrativa para atender com os boletins de ocorrência. À tarde fica uma estagiária que também atende à população. E agora temos duas escrivãs. Isso é muito bom e a gente tem conseguido fazer com que a população vá na delegacia denunciar e ser atendida.

MC Nesse processo de escuta da população, o que mais te chamou atenção?
GJ As mulheres ainda são muito subjugadas. E muitas não acreditam no seu potencial. Acreditam que dependem do homem financeiramente. E isso leva a uma série de violências. Psicológica, moral, patrimonial, todos os tipos de violência que você possa imaginar. E desde criança elas são tratadas dessa maneira. Aí vem o estupro, que é o que acontece pra deixa-las no seu lugar, caladas. Então, vivem as suas vidas aceitando a violência. Me deparei com algumas vítimas... é muito difícil falar sobre isso. Até me emociono. Eu sento, converso, mando pro psicólogo, mas elas não conseguem sair. Elas não conseguem ver uma luz no fim do túnel. Então, o que precisa ser trabalhado são essas redes de apoio para essa mulher. Ter um local que ela possa ir, ter possibilidades de trabalho. Ninguém gosta de ser agredida a vida toda. Atendi mulheres de 60, 70 e até de 80 anos que me falaram na delegacia: "Meus filhos já estão criados, já tenho até netos. Não aguento mais essa violência. Ele não me respeita, ele pega mulher, leva pra casa. Não aguento mais. Eu apanho ainda até hoje, quero me separar". Seria importante que aqui no Alto Rio Negro tivesse uma defensoria pública para atender essas mulheres. Eu poderia encaminhá-las pra defensoria. Porque muitas me procuram pedindo a implementação da pensão. A violência não acaba enquanto tiver essa questão patrimonial.

MC Ampliando para a questão da participação das mulheres na área de segurança pública. Você mesma disse que na Polícia Civil no Amazonas o contingente feminino chega a apenas 10% do total de pessoas. Vocês estão lutando por mais espaço?
GJ Com certeza. A gente se une. Tenta sempre mostrar o trabalho uma da outra. Inclusive temos uma delegada geral mulher, hoje, no estado. Isso é motivo de orgulho. Ela está fazendo um trabalho bom, a delegada Emília Ferraz. No momento que pedi apoio, ela me deu pronto atendimento. Nunca tinha recebido uma resposta tão efetiva, ela me mandou uma equipe muito boa para cá no suporte à operação Adana de apreensão de drogas. Vieram homens de grupos especializados me apoiar. Então, eu estava muito segura nessa operação. Ela estar presente já é um avanço porque ela tem um olhar diferenciado, também de acolhimento.

MC Nesse período que está em São Gabriel da Cachoeira, o que destaca como mais importante feito até agora?
GJ Viabilizar a chegada de mulheres sem ter medo até a delegacia. Viabilizar o contato social. Na minha visão, mesmo que fosse promotora, juíza, defensora, eu iria trabalhar da mesma forma atendendo à população. Nós somos servidores públicos. Não somos só membros de instituições. Somos pagos pelo Estado. A gente tem sim que separar um horário para ouvir a população e entender como é que funciona. Não adianta se distanciar de uma forma e apenas assinar. Ou apenas dar um papel para as pessoas. A gente trabalha com a liberdade. Médicos trabalham com a vida, que é um direito essencial. E a liberdade também. Não adianta ter uma vida sem liberdade, sempre com medo, ou preso injustamente. Então, a gente precisa saber como as coisas estão funcionando, como cada pessoa depende uma da outra. Essa dinâmica eu acredito que consegui levar para dentro da delegacia.

MC Há, ao longo dos anos, um aumento de população carcerária no país. Qual é a sua reflexão sobre isso?
GJ Primeiro, a gente tem que pensar na lei. As legislações penais são boas. E qual é objetivo da pena? Só ficar preso? Não! É ser ressocializador. Só que isso não está acontecendo. Se estivesse acontecendo, a gente não ia ter um aumento tão grande de reincidentes presos. Pego muita gente que já foi presa, que já respondeu. Então, se no momento que ele fosse preso estivesse aprendendo um ofício, uma alternativa ao crime, que pudesse depois escolher não voltar para o crime, isso seria muito bom. É questão de política pública mesmo. Aqui em São Gabriel houve um aumento de população carcerária. Os presos aqui ficam dentro da carceragem da delegacia, o que não deveria acontecer. Deveria ter um presídio. Eu não sou uma implementadora de políticas públicas, não tenho recursos para isso. Mas com apoio da sociedade, vou pedir ajuda da Prefeitura e da sociedade civil, para fazermos trabalhos voluntários. Alguém que possa dar aulas na delegacia. Separei uma sala, coloquei um quadro, pedi carteiras...Vou ver os presos que querem estudar ou trabalhar. Até incluir cursos profissionalizantes. Quero disponibilizar essa alternativa pra eles. Acho que isso vai diminuir a reincidência e por sua vez a população carcerária.

MC A maior parte dos presos aqui está detido por qual crime?
GJ Furto, roubo, tráfico, violência doméstica. Desde que cheguei prendi bastante por violência doméstica. E estupro. Temos hoje 45 presos na delegacia. 44 homens e uma mulher, por homicídio, está aguardando julgamento.

MC Por que os presos não são transferidos para um presídio?
GJ Vão ficar longe da família, né? A gente vê esse lado. Seria bom se tivesse um presídio aqui contextualizado para a realidade da região. Como te falei, as facções ainda não estão fortes aqui. Se a gente mandar esse preso daqui para ficar em Manaus, ele vai ser faccionado. Aí vai voltar para cá com outra mente.

MC Então deveria haver um presídio em São Gabriel da Cachoeira?
GJ Sim, seria importante. Na verdade, necessário. Um presídio bem equipado com espaço para banho de sol. Porque até o banho de sol aqui é complicado. Eu não vou impedir os presos de fazer banho de sol, é um direito deles. Então, agora pedi apoio aos guardas municipais para nos ajudar na carceragem porque não tenho equipe para levar os presos jogar futebol na escola ao lado. E acaba que nosso trabalho que é investigativo, precisa ser dividido para cuidar um pouco da carceragem.
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MC Qual é seu maior sonho na profissão?
GJ É um sonho realmente, que não haja violência doméstica e nem estupro de vulneráveis porque quando isso acontece é feito um empoderamento ao contrário, né? Na verdade, as mulheres não conseguem ter voz, falar. A gente precisa de mulheres na sociedade. Mulheres na política, em todos os cantos. E aí a gente tira essas mulheres que estão muito silenciadas dessas situações. Você imagina uma criança desde pequena sofrendo um abuso. É uma violência grande e injusta. Nós somos a minoria ainda, mas temos que pensar que temos muitos colegas que apoiam nosso trabalho, como agora que eu fiz a operação Adana e vieram oito homens. Todos eles muito bons e que reconheceram meu trabalho. A gente vê homens muito profissionais que estão levando e divulgando o nosso trabalho também. Isso é importante, que existam homens com essa visão. Porque a gente não vai conseguir mudanças se não tivermos ajuda de todos.

MC Para finalizar, como é trabalhar com as mulheres indígenas e a questão da violência de gênero?
GJ Elizângela Baré, da Foirn [Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro], disse quando a convidei para passar na delegacia: "Tenho medo, não quero ir não". Esse medo dela já não existe mais. Então foi um avanço. Ela, como liderança do povo Baré, tem contatos com as mulheres indígenas, pode ajudar e levar mulheres para serem ajudadas. Fizemos uma roda de conversa, em que mulheres contaram suas histórias de vida, transmitindo confiança uma na outra. Saímos dela vendo que em várias instituições a gente poderia contar com apoio. Na Funai, com as esposas dos militares do grupo Jovens Guerreiras, nos Creas, Cras, na Prefeitura e Polícia Militar, no ISA [Instituto Socioambiental]. Esse comprometimento foi importante e me senti realizada vendo tudo aquilo.

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