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Debates no resort

CB, Brasil, p. 7
03 de Abr de 2006

Debates no resort
Financiada pela Funasa, conferência para discutir a saúde nas aldeias brasileiras reúne índios, representantes de ONGs e governo na Pousada do Rio Quente. Evento custou cerca de R$ 1,2 milhão

Organizada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena foi marcada por debates em clima de conforto. Realizado entre 27 de março e 1o de abril, o evento contou com a presença de 1.200 mil participantes, a maioria hospedada na Pousada do Rio Quente, um resort de quatro estrelas localizado a 320km de Brasília. Os gastos com o encontro incluíram confecção de brindes, aluguel de barcos e compra de passagens de ônibus ou de avião. O mais caro, no entanto, foi a hospedagem de 700 pessoas por cinco dias no hotel, que custou aos cofres públicos cerca de R$ 1,2 milhão.

A Funasa só pretende divulgar o tamanho das despesas na quarta-feira, depois de levantar o custo com transporte e checar o número de índios e demais participantes que compareceram e se hospedaram no hotel. A gerência de marketing da Pousada do Rio Quente informou que a média das diárias girou em torno de R$ 337. O evento garantiu a ocupação de cerca de 80% das 1.012 suítes, que em baixa temporada tem diárias custando de R$ 285 a R$ 585. O tamanho do encontro permitiu ao governo federal negociar descontos que variaram de 10% até 25% para os quartos mais espaçosos.
Entre discussões sobre política para saúde indígena e festas de forró nas piscinas de água quente durante a noite, os participantes consumiram mais de 12 mil kg de alimentos e 41 mil guardanapos descartáveis. Foram utilizados ainda 285 caixas de copos plásticos. A pedido da Funasa, durante o evento, o hotel não vendeu álcool e retirou as garrafas de cerveja e uísque dos quartos. Quem quisesse consumir álcool tinha que ter levado a bebida de casa.

Críticas

Os índios consideraram o resultado da conferência nacional positivo, mas boa parte deles reconhece que foi gasto mais dinheiro do que o necessário. "A gente está numa batalha para melhorar a saúde do nosso povo. Mas, para isso, não quero estar dentro de um palácio enquanto meu povo morre por falta de comida e remédio", reclamou o cacique José Sátaíro, da etnia Xukuru-Kariri, de Minas Gerais, que para chegar ao encontro pegou dois aviões. Ele é uma das lideranças presentes ao encontro, que reuniu ainda o líder ianomami Davi Kopenawa e dezenas de outras etnias.

Com uma cruz pendurada no pescoço e vestindo uma camisa do São Paulo, time do qual diz ser fanático, o índio Taliko Kuikuro, de Mato Grosso, elogiou as acomodações. "Tô gostando muito", confessou. A organização do hotel providenciou uma tenda com local para os índios armarem redes durante a noite, caso não se adaptassem às regalias no quarto, que tinha ar-condicionado. Mas nem Kuikuto nem outro índio abriram mão da possibilidade de dormir em um dos apartamentos. "Os quartos são bons", disse o jovem líder indígena, pai de cinco filhos.

"O recurso que é usado na hospedagem nós queríamos que fosse usado lá na base, lá na aldeia", reivindicou o índio capixaba Antônio Carvalho, cujo nome indígena é Weta Kuratay, que em português quer dizer Relâmpago Com a Cor do Sol. A Funasa argumenta ter uma verba destinada à promoção de eventos e que esse dinheiro não poderia ter outra finalidade, como compra de medicamentos ou combustível para ambulâncias. "Só se desviássemos. Temos recursos específicos para isso e usamos", explica José Maria França, diretor do Departamento Nacional de Saúde da Funasa.

Todas as decisões da conferência foram tomadas em clima de confusão. Na tenda armada no meio do complexo hoteleiro, onde funciovam as plenárias, cerca de 400 pessoas se espremiam na tentativa de votar o que consideravam mais conveniente. Com freqüência os coordenadores do debate pediam que, quem não tinha direito à voto, não se manifestasse levantando o braço. A forma como as discussões e votações foram conduzidas provocou a desconfiança de alguns líderes indígenas que tiveram os interesses contrariados.

Para o índio Paulo Kiriri, da Bahia, os povos indígenas não tiveram voz durante o encontro. Ele avalia que o evento foi manipulado pelos representantes do governo e organizações não-governamentais convidadas. "Só não foi melhor porque essa reunião não era só para índio. Eles fala demais (sic)", lamentou o cacique Kiriri.

Acerto

Na opinião de França, o complexo hoteleiro com mais 40 hectares possui as características bucólicas ideais para um evento com os índios. Ele lembra que o lugar não foi escolhido pela Funasa, mas por representantes dos 34 Distritos Indígenas espalhados pelo país. França explica que o local fica afastado da cidade, o que diminuiria a possibilidade de os índios se dispersarem. "Da última vez, a conferência foi realizada em Luziânia (GO). Muitos índios iam para Brasília e se perdiam. Tivemos 400 casos de intoxicação alimentar e alcoolismo. Aqui é no meio do mato. Eles se sentem em casa", esclarece França.

O diretor da Funasa defende a realização da conferência partindo do princípio de que qualquer acusação contra a realização de eventos com índios em hotéis seria fruto de preconceito. "Todos têm algum preconceito, em alguma medida, em relação à alguma coisa", afirma. Ele diz ser rotineiro que hotéis luxuosos de Brasília sediem eventos organizados por ministérios e outros órgãos do governo sem que a imprensa questione os custos ou o evento. "O índio tem direito a ser tratado com dignidade. Esse é o melhor lugar para um evento desses. Tanto que a Funai está pensando em fazer um evento aqui também", anunciou.

Críticas à atuação do governo

Dos cinco dias de debate, em que foram discutidas 546 propostas relativas aos povos indígenas, quem saiu ganhando politicamente foi a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O órgão, que organizou o encontro, conseguiu evitar que os participantes do evento aprovassem um item do relatório final que pediria a extinção da Funasa e a criação de outra estrutura.

Por outro lado, o descontentamento dos líderes indigenas com o trabalho desenvolvido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) levou os participantes a aprovarem uma proposta que determina a criação de um órgão que trataria de demarcação e homologação de terras. Atualmente, tais atribuições são exclusivas da Funai, órgão criado em 1967 pelo governo militar em substituição ao Serviço de Proteção ao Índio (CPI), fundado pelo marechal Cândido Rondon, pai do indigenismo brasileiro.

Mas nem todos saíram satisfeitos com a Funasa. "Os índios da Região Norte não concordam com as decisão de manter a Funasa no controle da Saúde. Algumas pessoas tentaram beneficiar a Funasa", acusa Francisco Macedo, índio da tribo Kokana, do Amazonas.

Os questionamentos quanto às prerrogativas da Funai, contudo, não deveriam sequer ter sido abordados no encontro. Afinal, a conferência foi convocada para tratar da saúde indígena. "Questões agrárias não deveriam nem ser discutidas aqui. Todos deveriam voltar as atenção para a saúde", reconheceu o diretor do Departamento Nacional de Saúde da Funasa, José Maria França. No entanto, como ressaltou a colega dele, Raimunda Nonata Carlos Ferreira, coordenadora de Apoio à Gestão e Participação Social da Funasa, o encontro serve apenas para os índios manifestarem suas posições. "A conferência é consultiva, não tem caráter deliberativo", esclarece Raimunda Nonato, lembrando que nem todas as reivindicações discutidas ou votadas sairão do papel.

Na opinião da especialista, o fato de a maioria dos presentes ao encontro ter cobrado autonomia financeira dos 34 distritos indígenas - um dos pontos discutidos - poderá ser levada em conta pela Funasa ou outros órgãos do governo federal em repasses futuros. "Esse foi o ponto mais importante e polêmico dos debates", ressaltou. É possível que o Conselho Nacional de Saúde ache que vale a pena e implemente a medida".

As falhas no atendimento de saúde aos povos indígenas é um dos principais problemas vividos atualmente pelo governo, que sofre críticas de organismos internacionais. No ano passado, a desnutrição nas aldeias de Mato Grosso do Sul, Maranhão e Tocantins provocou a morte de crianças.

CB, 03/04/2006, Brasil, p. 7

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