VOLTAR

De antigo império da soja à maior favela rural no interior do Brasil

O Globo, País, p. 12
05 de Mai de 2013

De antigo império da soja à maior favela rural no interior do Brasil
Assentamento em MS é símbolo de reforma agrária fracassada, sem assistência técnica

GERMANO OLIVEIRA
Enviado especial
germano@sp.oglobo.com.br

PONTA PORÃ (MS) - O ex-militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ilmo Ivo Braun, um catarinense de 64 anos, mal consegue caminhar. O pé inchado não o deixa andar pela lavoura de milho, plantada em seu pequeno lote de seis hectares, recebido a título de reforma agrária. Ele mora sozinho, sem filhos, na casinha sem reboco, construída com os R$ 15 mil recebidos do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há 11 anos. Esse foi o único subsídio recebido desde que ele obteve a terra, depois de passar um ano acampado numa barraca de lona à espera do tão sonhado quinhão de terras. Sem apoio para plantar, Ilmo arrenda o lote para grandes fazendeiros da região. Dinheiro que complementa os R$ 678 que ganha de aposentadoria.
O arrendamento é ilegal. Mas foi a alternativa que encontrou para não cometer o mesmo crime de vizinhos, que aceitaram a tentadora oferta de R$ 150 mil para vender a propriedade.
- Lutei para ter este lote. Não vendo por nada. Seria pior se estivesse na cidade. Já teria morrido de fome. Aqui tenho uns porquinhos e umas galinhas. Vou morrer aqui - prevê Ilmo, um dos agricultores que receberam lotes no Assentamento Itamarati, em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, na divisa com o Paraguai, como parte do maior projeto de reforma agrária implantado no país.
Pequenos agricultores não têm crédito e assistência
Ilmo é um exemplo acabado de que a reforma agrária fracassou no local. O governo gastou R$ 245 milhões para desapropriar a área de 50 mil hectares da Fazenda Itamarati, que pertencia ao então "rei da soja" Olacyr de Moraes. Com o empresário à beira da falência, o local foi invadido pelos sem-terra em 2000 e lá foram assentadas pelo Incra a partir de 2002 um total de 2.837 famílias ligadas ao MST, à CUT, à Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri) e à associação dos ex-funcionários da propriedade. O Incra perdeu o controle da imensa área, jogando as 16 mil pessoas que lá habitam hoje a toda sorte de infortúnios.
Sem financiamentos ou assistência técnica, os pequenos agricultores não conseguem sobreviver da lida no campo. Até traficantes de drogas arrendam terras por lá. Tem fazendeiro que arrenda até 15 lotes. Para sobreviver, pelo menos 2.000 famílias de assentados recebem Bolsa Família, segundo o prefeito de Ponta Porã, Ludimar Novaes (PPS).
A pobreza do campo ganhou ares de favela na área de 400 hectares que o Incra reservou para ser a vila urbana do assentamento, hoje administrada pela Associação dos Moradores do Assentamento Itamarati (Ampai), com 360 famílias, que moram em barracos sem luz, sem água encanada e com ruas esburacadas. Quase todos ali são invasores, como diz o presidente da Ampai, José Roberto Roberval Barbosa Leila.
- O problema maior é a falta de apoio do Incra. Estou assentado aqui há oito anos e só no ano passado consegui um financiamento de R$ 21 mil do Pronaf. Muitos passam fome, vivem de Bolsa Família ou cestas básicas dadas pelas igrejas e acabam vendendo os lotes para morar na cidade e lá trabalhar como ajudante de pedreiro - resume Barbosa Leila.
O Incra promete iniciar este ano, com atraso de três anos, a titulação das terras, que ainda pertencem à União. Sem documentação, os bancos não liberam financiamentos.
Esse é o caso de José Brasil dos Santos, há oito anos no lote. Nunca conseguiu financiamentos.
- Meu pai pensa em arrendar a terra. Este ano meu tio plantou milho aqui, o que deu uma pequena renda, mas só para a gente não passar fome - diz seu filho José Carlos dos Santos.
MPF denunciou "imobiliária"
Além da dificuldade para a obtenção de empréstimos, o próprio Incra paralisou a análise de novos projetos no estado há três anos, depois que o órgão mergulhou numa profunda crise. O ex-superintendente Waldir Cipriano Nascimento, demitido em agosto de 2010, chegou a ser preso na "Operação Tellus", desencadeada pela Polícia Federal e Ministério Público Federal (MPF) contra a venda de lotes da reforma agrária no Sul do estado. O desvio apurado no esquema é de R$ 12 milhões. No Itamarati, o escritório do Incra está inativo há dois anos.
Os que conseguem sobreviver da agricultura e ter renda melhor são os que se dedicam à produção de gado e leite. Muitos venderam seus lotes. Estima-se que 1.200 famílias, ou 40% do total assentadas, já comercializaram lotes, mas o Incra só admite que 550 negociaram as terras. No fim do ano passado, o MPF denunciou integrantes do que chamou de uma "imobiliária" que comercializava lotes.
A antiga fazenda Itamarati, transformada no maior assentamento agrário do país, foi praticamente destruída. Silos e armazéns de grãos estão apodrecendo. A casa-sede da fazenda hoje é ocupada pelos padres do assentamento. A prefeitura de Ponta Porã aguarda até o dia em que o Incra conceda a área para o município. Ali, quer que nasça uma nova cidade.

Assentamento rural com mecanismos de mercado
No RS, modelo de produção coletiva garante renda para produtores de arroz

FLÁVIO ILHA
Enviado especial
opais@oglobo.com.br

NOVA SANTA RITA (RS) - Não é o paraíso sonhado por teóricos socialistas, mas está longe de ser uma experiência economicamente malsucedida. O assentamento Capela, no município de Nova Santa Rita, Região Metropolitana de Porto Alegre, vai completar 20 anos com um modelo insólito de produção que mistura propriedade coletiva da terra e mecanismos de mercado para garantir renda a 29 famílias de colonos, oriundos de um acampamento em Cruz Alta. Em pouco mais de 500 hectares, a Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita Ltda (Coopan) produz por ano 1,5 mil tonelada de arroz orgânico e abate 26 mil suínos num sistema sem empregados - os 61 sócios são remunerados pelo número de horas trabalhadas, independentemente da atividade.
O modelo de produção coletiva é raro em terras gaúchas, que têm 335 assentamentos. Mas é o que garante renda digna às famílias, porque os módulos de 20 hectares da reforma agrária são suficientes apenas para a subsistência. A união dos agricultores permitiu o acúmulo de capital para que a empresa pudesse investir em tecnologia e começasse a dar resultados satisfatórios.
- Um grupo de famílias decidiu se articular para trabalhar nesse modelo de produção coletiva. É importante afinidade com o conceito, ou o risco de não funcionar é grande. O capital, incluindo a terra, é de todos os sócios da cooperativa. No resto, é produção planejada e leis de mercado - diz Airton Luiz Rubenich, um dos diretores da Coopan.
Cada família tem um lote na área. Mas o uso da terra é coletivo. Não há lucro, mas "sobra". As casas ficam na agrovila, que reúne a sede da cooperativa, campo de futebol, creche, salão de festas e refeitório, onde são feitas as assembleias. Cada família ocupa um terreno de 800 metros quadrados na agrovila. Não há cercas, com exceção de telas que demarcam creche para 17 crianças.
A cooperativa também se destaca pelo desempenho econômico. De acordo com o estatuto elaborado pelos associados, 40% do faturamento devem ser reinvestidos no próprio negócio, especialmente em tecnologia. A renda média, entre R$ 1,4 mil e R$ 1,8 mil por mês por associado, pode parecer pequena, mas algumas famílias têm até quatro membros trabalhando na produção. Além do mais, o custo de vida dentro do assentamento é baixo porque a cooperativa subsidia a alimentação dos associados e outras despesas ordinárias, como consumo de água. O resultado é um padrão de vida médio, com casas equipadas de eletrodomésticos, carro na garagem e filhos estudando em universidades públicas - algumas no exterior.
Além do arroz e do abate de suínos, a renda do assentamento Capela vem principalmente da prestação de serviços a parceiros. Os silos, por exemplo, abrigam a produção de outras cooperativas de sem-terra que não têm capacidade de armazenamento. A produção da Coopan preenche apenas um terço da estrutura de armazenagem no Capela. Cerca de 60% dos cem suínos abatidos diariamente vêm de fora, o que engorda a receita. Outra boa fonte de renda é a linha de beneficiamento de arroz, que comporta dez mil sacos de 1kg por mês. Rubenich resume a receita da Coopan com simplicidade:
- Tem que ter planejamento, contabilidade, tecnologia, se não, não sobrevive. E algumas coisas não dependem só da terra que temos aqui, as parcerias são importantes, e nosso foco é correr atrás da demanda. Quando surge a oportunidade, investimos.

Tráfico internacional de drogas usa área como rota

PONTA PORÃ (MS) - Como o Assentamento Itamarati está localizado a menos de mil metros da fronteira com o Paraguai e a poucos quilômetros dos maiores produtores de maconha e cocaína do mundo, a área se transformou num entreposto da droga. Traficantes vem adquirindo lotes no interior do assentamento, utilizado como rota de transporte da droga paraguaia e boliviana que entra no Brasil pela fronteira seca de 700 km com o Mato Grosso do Sul. Os traficantes cortam as esburacadas e pouco conhecidas estradas vicinais para levar aos grandes centros não apenas drogas, mas pesado armamento e cigarros.

A Força Nacional chegou a instalar uma base no interior do assentamento, mas uma ação do Ministério Público Federal, que questionou a legalidade da ocupação militar, provocou a retirada dos soldados, aumentando ainda mais o clima de insegurança no coração do programa de reforma agrária.

A polícia descobriu no ano passado a existência de dois laboratórios de cocaína dentro da Itamarati, levando ao desencadeamento da "Operação Copo Sujo", com centenas de policiais e presença da Força Nacional. Atualmente, 18 moradores do assentamento estão presos por tráfico de drogas. O delegado Jorge André Santos Figueiredo, da Polícia Federal, tem informações de que muita gente transporta a droga até de bicicleta, ou dentro de sacos, no chamado tráfico formiguinha.

- A fronteira brasileira é de 16 mil km, dos quais 700 km de fronteira seca no Mato Grosso do Sul, inclusive Ponta Porã e no assentamento Itamarati. Como os traficantes colombianos, bolivianos e peruanos temem a lei do abate de seus aviões, estão levando a droga para o Paraguai, e de lá entrando com facilidade no Brasil. O assentamento é uma dessas rotas - garante o juiz Odilon Oliveira, que comanda a vara contra crimes financeiros e lavagem de dinheiro no estado.

Desafio é geração de renda

O superintendente do Incra em Mato Grosso do Sul, Celso Cestari, admite problemas no Assentamento Itamarati e diz que o maior desafio ainda é o de melhorar a renda dos assentados. Confirma a existência de ilegalidades no local, mas diz que está trabalhando para retomar as atividades do órgão, paralisadas por causa da corrupção que dominou a administração anterior. Essa retomada, inclui a reabertura do escritório do Incra no interior do assentamento de Ponta Porã, um dos maiores do Brasil. Reconhece que houve erros na seleção dos assentados, nem sempre dispostos a ter a atividade agrícola como meio de vida, mas garante que o projeto vai dar certo e que em breve começará a titular as terras, desatando o nó da falta de financiamentos na rede bancária.

- Vamos fazer a reorganização social da produção no local. Estamos reunindo os movimentos sociais para discutir como retomaremos os projetos da reforma agrária. Temos que dar a mão a palmatória quanto à falta de financiamentos para os assentados. Muitos venderam os lotes, mas fizemos um levantamento nesse assentamento e verificamos que 80% das famílias permanecem com seus lotes regularmente - disse Cestari, para quem menos de 15% comercializaram ilegalmente os lotes obtidos para a reforma agrária.

Sobre o tráfico, diz:

- O problema é que o assentamento virou uma grande cidade. Atualmente tem mais gente lá do que muitas cidades brasileiras.

O órgão afirma que, só no assentamento, investiu R$ 192,8 milhões para financiar as moradias. O Pronaf já distribuiu R$ 47,7 milhões em crédito.

O Globo, 05/05/2013, País, p. 12

http://oglobo.globo.com/pais/de-antigo-imperio-da-soja-maior-favela-rur…

http://oglobo.globo.com/pais/rs-tem-assentamento-rural-com-mecanismos-d…

http://oglobo.globo.com/pais/trafico-internacional-de-drogas-usa-assent…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.