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Davi Kopenawa: 'Lula está muito devagar, e o Exército cruzou os braços', diz líder indígena sobre crise ianomâmi; vídeo

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/epoca/noticia/2023/08/02
Autor: Davi Yanomami
02 de Ago de 2023

Davi Kopenawa: 'Lula está muito devagar, e o Exército cruzou os braços', diz líder indígena sobre crise ianomâmi; vídeo
Seis meses após estado de emergência, território em Roraima volta a sofrer com mortes e invasões

Por Daniel Biasetto - Rio de Janeiro
02/08/2023

Líder e xamã do povo yanomami, Davi Kopenawa não poupou críticas ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Exército seis meses após o decreto de estado de emergência instaurado na maior terra indígena do Brasil . Uma combinação de crise na gestão da saúde e o aumento do garimpo levou à tragédia sanitária com quadros graves de desnutrição de crianças e sequência de mortes que chocaram o país no início do ano.
Kopenawa afirma em entrevista ao GLOBO que Lula está "muito devagar" com as ações na área da saúde e também na retirada dos invasores pelas forças de segurança nas comunidades distribuídas pelo estado de Roraima. "O Exército cruzou os braços, não quer saber de ajudar o meu povo, não quer saber de proteger a Floresta Amazônica. O governo tem que retirar os garimpeiros até acabar, até arrancar tudo. É isso o que nós precisamos ". (VEJA VÍDEO ABAIXO)
O líder indígena comentou os dados divulgados nesta quarta-feira pelo relatório "O sofrimento continua: Um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami", uma crítica às ações do novo governo que "não conseguiram frear significativamente o avanço da malária".
Seis meses após o decreto de emergência pelo governo o que mudou no território Yanomami?
Só melhorou e serviu para acalmar nós por um tempo. Na verdade, essa emergência foi feita só para nos acalmar. Não é para ficar bom de saúde, pois os inaomâmis continuam muito doentes. Isso não melhorou, não! Só vai melhorar quando chegarem médicos, equipamentos, uma equipe boa, essa é outra missão, essa é outra luta. Mas esse decreto emergencial foi só para apagar fogo, como se bombeiros fossem ali só para apagar um foco do incêndio. Lá em Surucucu (região localizada no extremo oeste de Rorama e próxima à fronteira com a Venezuela), eles foram. Mas nas demais comunidades que estão sofrendo não chegou nada. Os ianomâmis continuam morrendo.
Então o cenário continua o mesmo?
Continuamos a morrer. Médico da Sesai, equipes do Ministério da Saúde, eles não conseguem chegar nas comunidades. Aracaçá, Palimiú, Homoxi, Maloca Macuxi, baixo Catrimani... Continuamos morrendo muito no Auaris, onde está o quartel do Exército. Os médicos não conseguem chegar lá, também não tem apoio, nem medicamentos, equipamentos para poder trabalhar no poló base de Auaris, e na comunidade. Não consegue chegar porque não tem transporte de motor, não tem gasolina, para poder deslocar nessa missão de chegar lá. Tudo isso por conta da presença dos garimpeiros. Então eles estão voltando.
Mas o governo anunciou um plano de desintrusão dos garimpeiros. Eles voltaram?
Os garimpeiros estão acostumados há muitos anos a garimpar em todas as terras indígenas da região, em outros estados como no Pará, nos Munduruku, Kayapós, na terra dos Macuxi. Os garimpeiros são doentes, são viciados, eles não têm lugar para trabalhar, não têm lugar para plantar alimentos para os filhos comer. O trabalho deles é no garimpo, com a invasão. Eles são muito inteligentes e preparados para se esconder...alguns foram para Venezuela e outros saíram. Mas não saiu tudo, não. E a verdade é que eles estão retornando de novo. Eles sabem que a Polícia Federal, o Ibama e a Funai não têm mais recursos para ir atrás deles, então eles são muito espertos. Eles ficam 4 ou 5 semanas escondidos na Venezuela. Daí depois que pararam com as operações, eles retornaram. Então retornaram de novo. Estão chegando de avião e helicóptero nas pistas clandestinas.
O que você vê de diferente nesse governo em relação ao anterior na crise ianômami?
A esperança do Bolsonaro era nos matar. Era destruir o meio ambiente, rios e a floresta. Esse era o plano do Bolsonaro que ele colocou em prática. Agora com esse governo Lula há outro pensamento. Ele, Lula, diz que quer salvar o povo ianomâmi. Mas Lula está devagar, está muito devagar. Está devagar porque ainda tem muito lugares dominados pelo garimpo no território Munduruku e Kayapós, no Pará, e claro, na terrra Yanomami. Ele não consegue. Isso vai custar muito e deve levar uns quatro ou cinco anos para conseguir. Ainda tem pouco tempo de governo, mas se não agir vai continuar como está. É preciso manter a Polícia Federal, o Ibama e a Funai, que está sem apoio, sem dinheiro, sem recurso, daí o pessoal não trabalha. O governo tem que retirar os garimpeiros até acabar, até arrancar tudo. É isso o que nós precisamos. Fechar as pistas e construir os postos de vigilância na entrada dos territórios e monitorar as estradas que levam os criminosos para o território. Eu preciso que o governo Lula construa esses postos de vigilância para não entrar garimpeiro.
Mas o Lula foi visitar a região logo no início do mandato, isso não foi bom?
Quando começaram a sair as notícias na televisão e nos jornais, ainda assim demorou muito para fazerem alguma coisa. O presidente Lula, quando ele assumiu, ele ficou preocupado e foi visitar Boa Vista para ver se era verdade. Ele chegou dia 21 de janeiro. Ele foi visitar a Casai (casa de saúde indígena), onde estavam os ianomâmis, chegando muito doentes. Depois ele voltou para Brasília e relatou o que viu , que estava muito ruim, com muitas doenças, mas não deu conta e ainda não está dando conta. Daí ele solicitou um outro órgão do governo para cuidar dos meus parentes doentes na Casai. E depois ele ficou sabendo das notícias nas mortes de Surucucu, lá que estavam muitas crianças, mulheres e adultos mortos de malária, pneumonia, disenteria, vômito, sífilis, verminosas e coronavírus. E o coronavírus continua matando. O coronavírus ele não sai. Ele rodou o mundo inteiro, nas cidades, nas comunidades, e ele não sai da comunidade, essa doença não sai e continua tendo mortes.
Quantos garimpeiros hoje ainda estão no território?
Para você ter uma ideia nós ianomâmis somos 31 mil em todo o território, em Roraima e todo o Amazonas. Entre os garimpeiros e envolvidos com eles são estimados entre 60 mil e 100 mil dentro e fora do território. Muitos estão na cidade (Boa Vista e municípios vizinhos), negociando a compra e venda de ouro. Tem que pensar na logística deles, nos financiadores do esquema. Por trás estão os donos das lojas, donos dos aviões, donos da gasolina, fornecedores de comida...então somados todo esse esquema criminoso eu estimo o número de garimpeiros entre 60 mil e 100 mil garimpeiros. Num esquema de ouro que chega até São Paulo e para fora do Brasil.
Mas e o Exército? não está mais na região?
O Exército não trabalha, eu falo a verdade. O Exército cruzou os braços, não quer saber de ajudar o meu povo, não quer saber de proteger a Floresta Amazônica.
O número de invasões cresceu muito de 2016 para 2020, você disse. O governo anterior tem a ver com isso?
Uma das questões que pesou muito para essa mudança foi a alta do preço do ouro. Aumentou muita gente, então entrou muita gente atrás do ouro. E daí misturou tudo. Não é só brasileiro que entrou, não. Tem muitos venezuelanos por lá, entraram como urubu que está comendo carne podre. Foi assim. O Bolsonaro foi quem abriu o caminho para os garimpeiros invadirem ainda mais. O Bolsonaro ficou junto com eles, apoiando de longe, autorizando...
Você sabe o preço do ouro ?
Eu não sei sobre isso. Eu não vou dizer quanto é o grama de ouro porque eu não mexo com isso e nem quero saber. Eu fico muito longe, isso traz shawara (doença). Eu não sou jacaré para comer pedras.
Quais os efeitos mais nocivos do garimpo no território?
O garimpo ficou perto da comunidade, onde os ianomâmis bebem água, usam água para fazer comida e tomar banho. Isso foi um grande estrago e logo na sequência chegaram as doenças, a entrada da bebida alcoólica, as armas de fogo, munição e muita pólvora e as drogas. Muita gente que acabou saindo da cadeia foi para lá. Matadores, que assassinam indígenas. E depois começou a série de doenças. Muita gripe, disenteria, por conta da água suja, vômitos e por verminoses. Depois misturou tudo com a doença coronavírus e o vírus ficou muito forte para os meus parentes e minha família que estavam na beira do rio. E depois veio a fome e é isso que o garimpo traz. Ele não traz benefício não, ele traz fome. Quando o yanomami fica doente, ele não pode sair para caçar, nem para trabalhar, os garimpeiros estão perto e ficam dando alimentação para os indígenas não ficarem bravos com eles, para usá-los. Mas daí começaram a morrer todos, adultos, idosos e crianças. A grande crise é de saúde e o Ministério da Saúde não fez um bom trabalho, faltam equipamentos, medicamentos, faltam vacinas, faltam médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem para trabalhar, para cuidar dos yanomamis doentes. Como nós não temos apoio forte, de saúde e cuidar, eles começam a morrer.
A presença de garimpeiros deve gerar mais conflitos e mortes?
Eu não acho que vai. Mas se o nosso governo não continuar a retirar os garimpeiros, eu sei que os ianmomâmis estão se preparando para atacar os garimpeiros. Se o governo não mandar a Funai, o Ibama , a Polícia Federal, Forças Armadas, vai acontecer mortes dos garimpeiros e mortes dos ianomâmis. Esse é nosso plano. Vamos reagir, pois eles não querem sair. Eles já mataram muito e meus parentes estão revoltados com o garimpo, principalmente na Maloca Paapiu.
Qual o seu maior sonho?
Meu maior sonho é voltar a ter as recordações de quando eu era pequeno e o nosso Brasil era maravilhoso para nós indígenas. Era tudo beleza e não tinha destruição, contaminação da água, dos rios, floresta de pé. Mas agora esse estrago não vai ser fácil para consertar . Se meu povo morrer e a natureza seguir destruída vai chegar no povo da cidade, o povo da mercadoria, vai sofrer porque não vai ter água mais.
Tem esperança no futuro ou acha que 'a queda do céu' virá?
A luta continua . Eu preciso cuidar do meu povo. Essa queda do céu não vai cair agora. Se vocês não indígenas ajudarem nossos povos, nós vamos viver mais ainda, mas se vocês deixarem a gente morrer, vai vir muita chuva e muito calor, muita secura, e o povo da mercadoria vai sofrer. Não é só nós ianomâmis que vamos morrer , não. Nós vamos morrer todos. Essa é a minha fala. Awei!
OUTROS LADOS
Procurada, a assessoria da Presidência da República afirma que ainda não teve acesso ao relatório, mas adianta que "o governo federal atua, desde o início da gestão, por meio dos órgãos de segurança e defesa, indígenas e da saúde, no enfrentamento à emergência, diferentemente do que ocorria nos anos anteriores".
A nota enviada ao GLOBO reitera que o "Ministério dos Povos Indígenas (MPI) reconhece que ainda há questões a serem resolvidas envolvendo a Terra Indígena Yanomami, mas a reconstrução dos estragos que foram feitos ao longo de anos de descaso leva algum tempo".
"Ainda assim, podemos afirmar que o tratamento dispensado não só aos Yanomami, mas a todos os povos indígenas, já mudou para melhor. Uma forma de quantificar essa mudança é olhar alguns dados referentes à Operação Yanomami, iniciada em fevereiro, e que envolve 18 órgãos do Governo Federal em 233 ações emergenciais e estruturais que vão até 2026. Desde o início da ação, mais de 30 mil atendimentos médicos foram realizados, envolvendo 765 profissionais de saúde, que foram responsáveis por distribuir mais de 3 milhões de medicamentos, testes e outros insumos de saúde. Foram distribuídas mais de 12 toneladas de alimentos. A atuação também resulta na expulsão de garimpeiros ilegais da região e retirada da infraestrutura de garimpo, com destruição de 76 balsas, desmobilização de 362 acampamentos e mais de 50 prisões. Outra indicação de melhora na situação foi dada pela Polícia Federal, que em junho, informou que não ocorreram mais alertas de garimpo ilegal na região, algo não registrado desde o início do monitoramento por satélite em 2020".
Em nota enviada ao GLOBO, o Ministério da Defesa afirma que a "Operação Ágata Fronteira Norte realizou a prisão de 91 garimpeiros no Território Yanomami desde 21 de junho, quando foi publicado o Decreto no 11.575, de 21 de junho de 2023, ampliando a participação de militares no enfrentamento ao garimpo ilegal".
Ainda de acordo com a Defesa, "essas prisões foram efetuadas por militares, em trabalho conjunto com agências federais e Órgãos de Segurança Pública, e representam redução de 95% na presença de garimpeiros em Território Yanomami". No total, dizem os militares, foram 119 prisões desde fevereiro, quando iniciou o trabalho da força-tarefa.
Ouvido pelo GLOBO, o secretário especial de saúde indígena, Ricardo Weibe Tapeba, vinculado ao Ministério da Saúde, admite a fragilidade no atendimento a todas as comunidades indígenas do território e reconhece que a política da pasta na região está "esfacelada" e as ações dos agentes esbarram, sobretudo, na presença maciça dos garimpeiros, o que coloca o trabalho dos profissionais de saúde sob risco.
- Precisamos entender que, quando assumimos, descobrimos uma tentativa de corte do orçamento da saúde indígena de 59% e estamos tentando mudar isso. Nós já tínhamos recebido alertas da sala de situação da Sesai e da Funai de que a situação era de extrema gravidade, com unidades de saúde precarizadas, sete polos-base fechados, mas que agora todos já foram restaurados. Mas o que nos atrasa são os problemas de segurança no território. Semana passada abrimos o último poló base que faltava dos sete, imagens bem chocantes , das crianças subnutridas, desnutrição aguda, malária, doenças respiratórias, mas é um cenário que tem uma sinergia total com a presença de garimpeiros - afirma.
De acordo com Weibe, os números de casos de malária aumentaram de fato na região, mas muito por conta dos exames feitos a partir de agora, o que não ocorria, segundo ele, no governo anterior.
- Reconhecemos que há uma fragilidade nessa logistica, precisamos do apoio de outras áreas e pastas. A Terra Yanomami é prioridade absoluta para Sesai, Ministério da Saúde, e o governo como um todo. O índice de malária subiu e subiu mesmo, mas porque nós começamos a fazer os exames e os diagnósticos. Encontramos muitos casos de subnotificação ou falta de notificação sobre óbitos de malárias - continua Weibe.
- Infelizmente os garimpeiros armaram os indígenas, o que dificultou ainda mais a presença dos agentes de saúde , plano de desintrusão e desarmamento. Eles foram induzidos a se armarem e isso tem gerado conflitos internos. Quero concordar com o líder Davi Kopenawa. Esses seis meses foram focados mais em salvar vidas, mas as ações de rotina e de prevenção de doenças estão mesmo paralisadas no território - admite.

https://oglobo.globo.com/brasil/epoca/noticia/2023/08/02/david-kopenawa…

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