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Dados viciados

FSP, Mais, p. 18
Autor: LEITE, Marcelo
15 de Ago de 2004

Dados viciados

Marcelo Leite
colunista da Folha

Se alguém ainda alimentava a ilusão de que o conhecimento científico pode dirimir querelas públicas, sobretudo no campo ambiental, com o facho potente da objetividade, a semana que passou trouxe dois exemplos eloqüentes em contrário: a polêmica sobre o projeto do governo federal de estipular concessões para a exploração de florestas e a bordoada crítica que o norte-americano Jeffrey Sachs desferiu contra o Consenso de Copenhague armado pelo dinamarquês Bjorn Lomborg.

Os dois casos sugerem, cada um à sua maneira, que quem aposta na confusão do debate público, em assuntos ideologicamente carregados, tem boas chances de ganhar a parada. Turvar a água continua a ser uma forma eficaz de impedir a visão do que está no fundo. Dito de outro modo, a falta de clareza ajuda a manter o status quo.

Veja o caso do projeto das concessões florestais na Amazônia. Na internet e na imprensa internacional, chegou a ser rotulado como privatização da mata. Só quem não acompanha a questão amazônica pode concluir que tal proposta seja "entreguista" e tenha por objetivo legalizar o desmatamento. O que ela busca fazer é disciplinar a extração de madeira, hoje selvagem e predatória, estipulando que nas áreas de concessão os madeireiros poderão retirar apenas 3% das árvores e voltar só depois de 30 anos.

Se o esquema bem-intencionado pode ou vai funcionar é outra história. Há muita gente séria que vê problemas na idéia. Por exemplo, ambientalistas de quatro costados para os quais o governo federal está pondo ênfase demais nos benefícios previstos, desconsiderando dificuldades previsíveis de implantação e relegando outras vias para gerar renda sem derrubar árvores, como a valorização ("precificação") dos serviços ambientais prestados pela floresta -entre eles a fixação de biomassa que, emitida para a atmosfera na forma de carbono, agravaria o efeito estufa. Quem defende alternativas deveria se sentir obrigado, porém, a cotejar ponto por ponto as vantagens e a exeqüibilidade de um e de outro esquema, se de fato rezasse pelo credo da racionalidade objetiva.

Algo similar ocorreu com o espetáculo montado na capital dinamarquesa, em maio passado, por Bjorn Lomborg, mais conhecido pelo best-seller "O Ambientalista Cético" (lançado no Brasil pela Editora Campus). Com apoio da revista "The Economist", ele reuniu oito economistas para avaliar quais seriam os projetos mais eficazes para aplicar US$ 50 bilhões, em cinco anos, na resolução de problemas como Aids, malária e mudança climática.

Não deu outra: notas altas para o investimento no combate a doenças dos pobres, notas baixas para medidas contra o aquecimento global. Como havia três Prêmios Nobel no júri, a conclusão foi noticiada pelo mundo afora como demonstração da futilidade de despejar dinheiro na questão climática. George W. Bush não deve ter lido, mas gostou.
Agora, três meses depois, entra em cena o também economista Sachs, e para deitar água fria na fervura conservadora.

Segundo o artigo do diretor do Instituto da Terra da Universidade Columbia na revista "Nature" de quinta-feira, a escolha da cifra de US$ 50 bilhões só poderia dar nisso. Parece muito, mas é pouco dinheiro -só 0,03% da renda anual gerada em países ricos. Não dá nem para começar a enfrentar a questão da mudança climática.
Em outras palavras, que não as de Sachs: os dados de Lomborg estavam viciados.

FSP, 15/08/2004, Mais, p. 18

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