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Da floresta ao deserto

Veja, Especial, p.126-128
08 de Jun de 2005

Da floresta ao deserto
Corrupção, crescimento desordenado e leis confusas: essas são as pragas que estão dizimando a selva brasileira
Erin Mizuta e Fábio Portela
A fúria das motosserras, o avanço das fronteiras agrícolas e o descontrole da política ambiental já fizeram com que a Amazônia perdesse 18% de sua cobertura original. Hoje, 4% dessa área desmatada não presta para nada: a terra nua e arrasada não é mais cultivada nem serve como pasto para o gado. Virou deserto. Aos tristes números sobre a floresta, acrescentou-se mais um. O Ministério do Meio Ambiente anunciou a segunda maior taxa de desmatamento da história da selva brasileira. Entre os anos de 2003 e 2004, sumiram do mapa 26 140 quilômetros quadrados de mata – área equivalente a mais de dezessete vezes o tamanho da cidade de São Paulo. É quase uma Bélgica. A notícia causou indignação ao redor do mundo. Na última terça-feira, o jornal americano The New York Times escreveu em editorial: "A Amazônia parece imune à lei, especialmente em um país em que não há polícia suficiente para fazer valer as regras, onde o crescimento econômico parece ser mais importante do que qualquer outra coisa e onde poderosos políticos locais parecem ter mais influência que o governo nacional". Antes dele, o espanhol El País já havia dito que "a massiva destruição da selva brasileira põe em dúvida a capacidade do governo de Lula para preservar o maior pulmão ambiental do mundo", e o inglês The Independent atacara "o estupro da floresta", apontando o governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, como o principal responsável por ele.
Maior plantador individual de soja no mundo, o governador de Mato Grosso é a síntese do paradoxo vivido pela Amazônia. O avanço da cultura da soja é tão grande que o estado, sozinho, foi responsável por 48% de toda a devastação registrada entre 2003 e 2004. A produção desse grão ganha, a cada ano, mais peso na economia brasileira. Hoje, já representa 10% das exportações do país. Só Mato Grosso responde por 26% do total da safra. Para alcançar essa cifra, a fronteira agrícola do estado tomou praticamente todo o cerrado – e também avançou sobre a chamada mata de transição, uma vegetação mais espessa, nas bordas da floresta. Essa mata, porta de entrada da Amazônia, é, em tese, protegida por lei, mas o confuso – e omisso – código ambiental brasileiro permite todo tipo de atalho em direção ao desmatamento. Em 1995, durante o governo de Dante de Oliveira, antecessor de Blairo Maggi, Mato Grosso aprovou uma lei específica para a mata de transição. Essa vegetação é classificada pelos órgãos ambientais como Região da Floresta Amazônica. Até então, a lei dizia que, nas propriedades rurais que contivessem regiões como essa, apenas 20% da terra poderia ser desmatada. Com uma canetada, porém, o estado passou a considerar o que era "floresta amazônica" como "mata de transição", o que aumentou o limite de exploração de 20% para 50%. A bagunça, que já era grande, aumentou. E consegue ser ainda maior no que diz respeito à definição da propriedade das terras. Não há um cadastro confiável no Brasil e ninguém sabe quem são os verdadeiros proprietários de imensas áreas da Amazônia. A insegurança legal sempre foi, e continua sendo, a matéria-prima para a ação de grileiros.
Foi seguindo um roteiro semelhante a esse que nações como a Malásia e a Indonésia devastaram quase totalmente suas florestas. A corrupção também foi uma das forças motrizes que impulsionaram a motosserra. Na Indonésia, de 1967 a 1998, a exploração das matas ficou a cargo de duas madeireiras ligadas ao ditador Suharto. Hoje, o país tem 70% de sua vegetação devastada. "A exploração predatória no Brasil, facilitada pela corrupção, percorre um caminho parecido", diz o biólogo americano Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Reverter essa tendência é possível. Uma série de países já conseguiu. A Suécia, que chegou a ter seu solo totalmente devastado, hoje tem 74% do território coberto por matas. Na Costa Rica, o governo adotou a cobrança de taxas para cada área desmatada, inclusive em regiões onde a derrubada de árvores é legalizada. O dinheiro arrecadado é aplicado em projetos ambientais ligados ao turismo, que se tornou uma das principais indústrias do país. Ao mesmo tempo, a Costa Rica criou uma política de pagamento por serviços ambientais a quem preserva as florestas em sua propriedade. Com essas medidas, o país conseguiu conciliar os interesses econômicos com o equilíbrio ecológico.
Os especialistas dizem que o Brasil também tem condições de crescer sem devastar. Para isso, duas medidas são fundamentais. A primeira é estimular o plantio da soja em outras regiões além da floresta (os agricultores buscam as terras da Amazônia não porque são boas, mas porque são mais baratas). A segunda é criar condições para um melhor uso do solo no plantio da soja. "O Brasil pode ser o maior produtor do mundo, superando até os Estados Unidos, sem degradar a terra – desde que haja investimento no tratamento do solo", diz Ariovaldo de Oliveira, professor de geografia agrária da Universidade de São Paulo. Como a terra custa pouco, devasta-se uma região inteira, e, depois que o solo perde qualidade, basta partir para outra área e reiniciar o plantio. Ao contrário da cobiça humana, porém, a floresta tem um limite. A cada medição feita por especialistas, constata-se que o da Amazônia está mais e mais próximo.

Veja, 08/06/2005, p. 126-128

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