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Cultura Yanomami luta contra sua extinção; conheça ícones da comunidade

OESP, A Fundo, p. C6-C7.
17 de Fev de 2023

Cultura Yanomami luta contra sua extinção; conheça ícones da comunidade
Com exposições, livros e itens raros, 'Estadão' ouviu especialistas

Sibélia Zanon

17/02/2023

Conhecimento se adquire degustando, não engolindo inteiro, conta Alcida. Esta foi a lição que ela aprendeu junto ao povo Yanomami em 1968, quando começou sua pesquisa de doutorado com os Sanumá, Yanomamis da região do Rio Auaris, em Roraima. Ainda aprendendo o bê-á-bá da língua sanumá, uma das seis faladas na maior terra indígena do Brasil, Alcida conta que fez uma pergunta a uma mulher e recebeu uma resposta monossilábica. Meses mais tarde, a antropóloga fez a mesma pergunta à mesma mulher e recebeu um longo discurso como resposta. Quando Alcida questionou a resposta resumida de meses antes, a indígena respondeu: "Se eu lhe dissesse tudo naquele momento, você não ia entender nada!".

A história que nos conta Alcida Rita Ramos, autora de inúmeros artigos de antropologia e livros dedicados a compreender o mundo Yanomami, fala sobre uma trajetória e um tempo que se leva para ter o vislumbre de uma outra cultura, aspecto que a voracidade colonizadora do homem branco materialista não tem condição de compreender, como mostra o líder Davi Kopenawa Yanomami ao escrever que "os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos".

Uma das formas para dar visibilidade a diferentes culturas e refletir sobre sua história é a arte, instrumento que tem sido usado pelo povo Yanomami. "Eu não vim à toa para passear, conhecer a cidade. Eu venho em nome do meu povo para dizer o que está acontecendo, para pedir apoio", diz Morzaniel Iramari, por telefone, de Nova York para o Estadão. Morzaniel vive na região do Demini, na Terra Indígena Yanomami (TIY) situada entre os Estados de Roraima e do Amazonas, e assina a direção do filme Mãri hi - A Árvore dos Sonhos, curta-metragem de 17 minutos, que estreou no dia 3 de fevereiro na exposição The Yanomami Struggle (A Luta Yanomami), no museu The Shed, em NY.

O filme Thuë pihi kuuwi (Uma Mulher Pensando) também integra a exposição. Filmado e dirigido por mulheres Yanomamis e por Edmar Tokorino, o curta aborda o olhar de uma jovem sobre o trabalho dos xamãs. "Eu preciso muito mostrar a nossa cultura, é muito importante para os não indígenas. Para vocês defenderem o nosso direito também", diz Edmar, que estava temporariamente em Boa Vista, Roraima.

"A presença de Davi Kopenawa, de Claudia Andujar, de vários artistas Yanomamis e da Associação Hutukara, que representa o povo Yanomami, despertou um interesse imenso em Nova York", avalia João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles (IMS), instituição que já abrigou temporadas da exposição em São Paulo e no Rio e é uma das organizadoras.

Com mais de 200 fotografias de Claudia Andujar, fotógrafa dedicada às causas Yanomamis desde a década de 1970, mais de 80 desenhos e pinturas de artistas Yanomamis e filmes da produção recente indígena, a exposição vem ganhando maior presença e autoria do próprio povo. "A exposição passou a ser uma construção muito mais aberta e diversa a partir da obra da Claudia, que continua a ser um fio condutor", conta João Fernandes, que também estava presente na inauguração em Nova York.

"Eu acho que arco e flecha hoje em dia não dão conta das metralhadoras, dos fuzis, das epidemias", diz Angela Pappiani, comunicadora que desenvolve projetos com povos originários há mais de 30 anos. "Mas uma câmera de vídeo, um gravador, um celular, o rádio, a comunicação via internet são armas que protegem e que ajudam na sobrevivência."

A necessidade de usar a força da imagem - desde o trabalho de Claudia Andujar até as últimas produções dos cineastas Yanomamis - revela um conflito. "Esse recurso de defesa se faz contra a vontade dos próprios Yanomamis, que detestam ser fotografados e exigem que nunca se mostre a imagem de parentes que já morreram", lembra Alcida. "Não deixa de ser paradoxal que, sendo uma prática anti-Yanomami, a fotografia tem o poder de ser, também, pró-Yanomami, pois a imagem é um dos recursos mais poderosos para sensibilizar os não indígenas."

Assim como no cerne das culturas indígenas, a divisão em territórios e fronteiras não obedece à mesma lógica que na cultura do homem branco - tratam-se de culturas que cultivavam a terra muito antes de a cultura colonizadora chegar com suas regras de demarcação. A arte Yanomami também não é marcada pelas mesmas fronteiras da cultura ocidental. Ela se mistura ao cotidiano, ao artefato.

"A estética Yanomami é completamente entranhada na vida, ela faz parte da vida. O desenho Yanomami não existia enquanto tal, como uma atividade artística separada", conta o sociólogo Laymert Garcia dos Santos que, em 2006, trabalhou na concepção artística da ópera Amazônia - Teatro Música em Três Partes com Yanomamis da aldeia Watoriki, no Amazonas. "O desenho Yanomami existia na pintura corporal, na pintura de cestos, de alguns instrumentos, na cerâmica, ou seja, sempre não associada a uma superfície, mas praticada num volume. Não existia essa noção de desenho tal como a gente entende pela história da arte ocidental, de uma superfície bidimensional na qual você distribui alguns elementos de figuração."

Laymert explica que o desenho Yanomami parece integrado ao espaço, o papel faz as vezes de uma tela, onde se projeta uma ação. "Os Yanomamis têm uma relação com o movimento e com a ocupação do espaço que é totalmente diversa da maneira como a composição ocidental trabalhou a questão do desenho."

Curioso é que a arte, instrumento capaz de sensibilizar o não indígena e abrir uma fresta potente para a compreensão de novas cosmologias, também pode servir a interesses menos nobres, como debateram curadores indígenas numa conversa promovida no dia 2 de fevereiro pelo IMS e o Museu da Língua Portuguesa.

"A arte mata, porque no livro da história da arte indígena bom é indígena morto ou ajoelhado na frente de uma cruz", diz Daiara Tukano, curadora da exposição Nhe' Porã: Memória e Transformação em exibição no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. "É dentro do campo da poesia, da literatura, daquilo que é chamado de arte pelo branco que se criou essa alegoria do indígena, essa imagem muito artificial, com a qual a gente não se identifica."

"Uma das figuras que sempre me arrepiaram, de me deixarem triste mesmo, de ter pesadelo era a imagem da Moema", conta Daiara. A imagem da moça indígena morta na praia, retratada em pinturas e esculturas, personifica o amor de uma indígena pelo colonizador. Também das páginas do cearense José de Alencar emerge uma Iracema que morre de amor pelo português quando ele parte para a guerra, ilustrando quem sabe uma espécie de "síndrome de Estocolmo" - aquela patologia em que a vítima de abuso desenvolve uma relação sentimental pelo aproveitador.

Para confrontar esse tipo de visão, Daiara destaca a relevância de pensadores indígenas exporem sua arte. "Cada povo vai trazendo as suas narrativas e vai se empoderando de todas as linguagens. A música, a literatura, o desenho, a dança, o teatro, o cinema para trazer não apenas um relato de história, mas também uma maneira própria de contar essa história, de mostrar uma imagem que é própria da nossa linguagem, uma narrativa, um ritmo, uma relação de tempo, de mundo que é própria. São nossas cosmovisões, mas cada uma de nossas cosmovisões também carrega algo importante que é nossa cosmopotência. Nós somos culturas vivas, nós continuamos nos autogerando."

Em A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, livro revelador da cosmologia Yanomami escrito pelo antropólogo Bruce Albert e por Davi Kopenawa, o líder indígena compartilha sua estranheza ao ver objetos de seu povo guardados num museu, como relíquias de um passado longínquo, e questiona: "Depois de ver todas as coisas daquele museu, acabei me perguntando se os brancos já não teriam começado a adquirir também tantas de nossas coisas só porque nós, Yanomamis, já estamos começando também a desaparecer".

Marcelo Moura Silva, pesquisador da cultura Yanomami no Instituto Socioambiental (ISA), destaca: "Eles não são janelas para o passado, não são resquícios de uma humanidade perdida, são nossos contemporâneos, estão aqui agora, vivendo um tipo de vida que é possível dentro do mesmo mundo em que estamos vivendo".

Ainda em A Queda do Céu, Kopenawa escreve: "Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte".

Marcelo lembra que uma das mais bonitas festividades Yanomamis é o cerimonial funerário, que reúne grupos e parentes para reforçar laços de amizade numa grande demonstração de generosidade e abundância de alimentos. A festividade ajuda a apagar a memória da pessoa que partiu para que ela tenha paz e os parentes consigam viver fora do luto. Acontece que até o cerimonial funerário tem sido atingido pelo garimpo. "Nos lugares atingidos, não há força física ou produção de alimentos para ofertar", ressalta o antropólogo.

"Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco?", clama Kopenawa nas folhas que ele chama de pele de papel.

O uso da arte como flecha atinge a percepção de que precisamos nos apressar para poder degustar os conhecimentos milenares dos povos originários. "Assim como cada árvore que tomba na Amazônia é como um arquivo que se queima, cada povo dizimado é uma amputação da humanidade", acrescenta Alcida Ramos. "O flagelo que se abate sobre os Yanomamis não podia se encaixar melhor na definição de genocídio da ONU", conclui.

OESP, 17/02/2023, A Fundo, p. C6-C7.

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