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Criança indígena é mais discriminada

JB, País, p. A4
Autor: NIDECKER, Fernanda
20 de Abr de 2004

Criança indígena é mais discriminada
Estudo do Unicef demonstra como, ainda na infância, índios vivem à margem de direitos fundamentais

Fernanda Nidecker
Arquivo

Sub-região Amazônica: Apenas 45% das crianças índias têm registro civil. Média nacional é de 70%.

As comunidades indígenas no Brasil assistiram, com o passar dos séculos, ao processo que resultou no esfacelamento da cultura e na perda do direito à terra, componente fundamental para a afirmação da raça. Os reflexos do drama vivido pelos índios são sentidos, com as mais severas conseqüências, entre as crianças que, desde pequenas, aprendem a conviver com o acesso precário a necessidades essenciais para a formação de adultos saudáveis e conscientes de seus direitos. Elaborado no início do ano pela equipe do Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência (Unicef), em Madri, na Espanha, o estudo Garantindo o Direito das Crianças Indígenas é inédito ao detalhar a situação desta fatia da população no mundo e aponta iniciativas que visam à redução do abismo que as separa das crianças brancas.
Segundo o documento, ''crianças e adolescentes indígenas estão entre os mais discriminados em todo o mundo, sendo privados de seus direitos à vida, à saúde, à educação e à proteção''. No Brasil, há 287 mil crianças e adolescentes indígenas, que sofrem, segundo o estudo, os mais diversos preconceitos e discriminações. Para o coordenador de projetos do Unicef para a Região Centro-Sul do Brasil, Salvador Soler, o maior desafio para garantir direitos às crianças indígenas passa pela questão da terra.
- A terra é componente fundamental para assegurar os direitos indígenas, devido à ligação que se estabelece com a cultura e com seu conceito de vida. Crianças que nascem em comunidades cujas terras não são demarcadas, ficam abandonadas no seu direito à educação e à saúde - defende Soler.
Um dos dados mais dramáticos sobre a infância indígena no Brasil refere-se ao precário acesso escolar. Meninos e meninas indígenas têm sete vezes mais chances de chegar a adolescência sem ser alfabetizados dos que as crianças brancas. O mesmo entrave se repete no acesso à água potável. Crianças brancas têm cinco vezes mais chances de beber água limpa que as indígenas.
A Convenção dos Direitos Indígenas, elaborada em 1989, foi o primeiro instrumento do direito internacional a se dedicar exclusivamente à infância desses povos. O Artigo 7o da ata prevê o registro civil da criança imediatamente após o nascimento. Reconhece, ainda, o direito a um nome e a adquirir uma nacionalidade. Um dos grandes desafios no Brasil é dar tal garantia aos indígenas. Na Sub-Região Amazônica, apenas 45% das crianças índias têm registro civil (a média nacional é de 70%). Este número baixa para 21% quando se refere aos meninos equatorianos que vivem na Região Amazônica. O relatório aponta que, sem o registro, a violação dos direitos é muito maior, porque se exclui dessas crianças as possibilidades de usufruírem e receberem a proteção proporcionada pelo Estado. Além disso, ao se tornarem indivíduos adultos, não poderão votar e nem mesmo se apresentar como candidatos.
Salvador Soler esteve no Mato Grosso do Sul, onde participou de um estudo para identificar as causas do suicídio entre os adolescentes da tribo guarani-kaiová. Ele aponta que a desnutrição, a falta de identidade e a baixa auto-estima, ligadas à questão da terra, levam os jovens a sacrificarem a própria vida. Muitos deles abandonam os estudos muito cedo para trabalhar nas usinas de cana.
- O contato com o branco o desenraiza da cultura, provocando a crise de identidade, que pode levar ao suicídio - avalia. O estudo menciona o caso dos guaranis, revelando que, de uma população de mais de 1,5 milhão de indígenas dessa etnia, restaram apenas 30 mil. Segundo o relatório, entre 1985 e 2000, cerca de 300 guaranis praticaram suicídio, em sua maioria crianças e adolescentes.
Na tentativa de reduzir os índices, foi criada na Comunidade Indígena Carapó (Mato Grosso do Sul) um projeto de educação para os guarani-caiová.
- Percebemos que, pela falta de dinheiro para comprar roupas e calçados, as crianças preferiam trabalhar a se dedicar aos estudos. Muitos menores até falsificavam documentos para trabalhar na indústria da cana - diz a coordenadora das escolas indígenas de ensino fundamental, Arani Nantes.
O projeto, elaborado em julho de 2001 com as parcerias do Estado e da Universidade Católica Dom Bosco, prevê o pagamento de R$ 50 por mês e aulas em tempo integral. Pela manhã, na sala de aula, além das disciplinas curriculares, estudam também a língua guarani. À tarde, praticam atividades de agricultura, artesanato, além de esportes, lazer e aulas de computação. Arani diz que pretende ampliar o programa, que contempla só 100 estudantes num universo de 840 matriculados.
Para assegurar a sobrevivência da infância indígena em todo o mundo, o estudo do Unicef aponta quatro prioridades: o acesso à saúde e à nutrição de qualidade; o direito à alfabetização na língua materna; a necessidade de acesso ao registro civil; e a participação em decisões que afetam suas vidas, como a luta pela terra como condição fundamental para sobrevivência física, cultural e social.
- O desafio do mundo contemporâneo, marcado pela globalização, é não passar por cima da diversidade de culturas e raças, e entender que é a partir da infância que os indígenas começam a brigar pelo que têm direito - aponta Soler.

JB, 20/04/2004, País, p. A4

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