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Criação de reserva mobilizou municípios que organizaram manifestação contra medida

O Paraense-Belém-PA
Autor: Lúcio Flávio Pinto
04 de Mar de 2002

Prefeitos de três municípios, que terão de ceder terras para reserva extrativista, recrutam 800 pessoas e invadem audiência pública de consulta à população.
Se as forças federais não tivessem intervindo, a luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos teria sido mais morosa e apresentaria resultados muito mais modestos do que os exibidos entre as décadas de 50 e 60, quando os choques foram mais violentos, freqüentemente sangrentos. Para cumprir as decisões de Washington, que expressavam a média da opinião pública nacional, representantes do poder central foram mandados ao sul atrasado para quebrar as ferozes resistências ao reconhecimento dos direitos civis (e humanos mesmo) dos negros. Era uma luta de elites, umas sensíveis aos apelos por mais equanimidade entre os diferentes ou opostos, e, outras, numa intolerante defesa do status quo segregacionista. Nem por isso deixou de ser um choque poderoso. Dá para pensar nessa referência, ainda que a ajustando a um cenário com menor antagonismo (ao menos por enquanto), diante do crescimento das diferenças entre o poder federal e o poder local na Amazônia, o primeiro identificado com propostas e práticas consideradas lesivas pelo segundo, levando a uma rejeição antes de haver a possibilidade de identificação mútua. Um caso exemplar desse conflito é a tentativa de criação pelo governo federal, do que seria a maior reserva extrativista da Amazônia, com 2,3 milhões de hectares, no Pará. O projeto foi concebido em Brasília e apresentado diretamente aos clientes potenciais da reserva, nativos de uma área ainda densamente coberta por floresta, mas sobre a qual avança uma feroz frente madeireira. Essa frente está consumindo as últimas grandes concentrações de mogno, a mais valiosa das espécies florestais da região, entre os vales do Xingu e do Tapajós, no oeste do Estado. A espécie, segundo uma corrente de pesquisadores, está ameaçada de extinção pela exploração intensiva. A tática adotada pelos tecnocratas federais parecia certa: eles aglutinavam apoios entre os que iriam se beneficiar da medida para só abrir o debate e enfrentar resistências numa posição de força, com legitimação. Mas essa tática também embutia um risco, o do próprio sigilo. Ao se antecipar aos idealizadores na divulgação do plano, seus adversários a apresentaram como uma conspiração contra os interesses da região uma manobra de estrangeiros e maus brasileiros para congelar a atividade produtiva e transformar a Amazônia num museu a serviço dos alienígenas, o que já estaria explícito no próprio título da reserva ("Verde para sempre"). A campanha foi reforçada com a incorporação do governador Almir Gabriel, um correligionário do presidente Fernando Henrique Cardoso. Era a senha que parecia estar faltando para engrossar a oposição ao projeto dos ministérios do meio ambiente e da reforma agrária. Na sexta-feira, 22, as duras palavras de críticas à iniciativa cederam lugar a atos concretos: os prefeitos de três dos cinco municípios que terão de ceder terras para a reserva recrutaram 800 pessoas e invadiram a terceira das audiências públicas de consulta à população. Não foram para debater o projeto. O que queriam era inviabilizar o encontro e mandar um recado categórico: não aceitaram a criação de mais uma unidade de conservação federal na região.
Polícia Militar - Uma tropa da Polícia Militar foi convocada às pressas para proteger os organizadores da audiência e permitir que eles pudessem sair do local do encontro, no município de Santa Maria do Pará. Os representantes dos órgãos públicos prometeram pedir a instauração de inquérito policial contra os três prefeitos, acusando-os de incitação à população e de estimular as agressões físicas aos participantes do evento, além de ameaçar de morte três deputados do PT e depredar bens públicos. A transformação foi sintomática. Antes dos políticos levarem o assunto ao conhecimento público, apresentando-o com as tonalidades fortes de uma conspiração de lesa-Estado, as audiências tinham sido realizadas sem qualquer incidente, embora em meio a polêmicas. Logo em seguida às declarações dos políticos e do governador, a terceira audiência empacou num quebra-quebra organizado pelos três prefeitos, que conseguiram mobilizar muita gente com a agressiva retórica anti-reserva. Como será a quarta audiência? Haverá uma quarta audiência? A criação da reserva extrativista continuará em andamento? Certamente só se os executores do projeto contarem com uma reforçada cobertura da Polícia Federal e com uma massiva campanha de convencimento sobre o acerto da medida. E se os teóricos da providência, baixando de seus distantes e protegidos gabinetes no Distrito Federal, aceitarem travar a batalha de opinião pública in situ. Num sistema aberto, mesmo idéias positivas e benfazejas só dão certo, ou só "vingam", se são adotadas sob convencimento geral, não se chegam para cumprimento compulsório. Isso ocorria na época dos "projetos de impacto" dos governos do regime militar: urdidos nos laboratórios da tecnocracia, baixavam no cenário como produtos prontos e acabados, eliminando resistências através do fato consumado. Às vezes a iniciativa tinha o efeito purgativo dos remédios: ainda que fossem adotadas para o bem, era natural a reação do paciente. Remédio bom tem gosto ruim, é o que os autocratas pensam e dizem para que os demais pensem da mesma maneira. E aceitem a medicação.
Consciência ecológica remissiva - Na época em que militares e técnicos, de mãos dadas, faziam seus raids de reforma autoritária e modernização impositiva sobre a Amazônia, instalando enclaves exportadores no meio da floresta, a elite local se voltava romanticamente para o passado. Bons eram considerados os tempos do extrativismo, nos quais seringalistas e donos de castanhais mantinham a floresta intacta para autênticos servos da gleba coletarem os frutos das árvores ou extraírem-nos do seu lenho, na forma de amêndoas de castanha ou látex, produtos que eram embarcados para distantes mercados, juntamente com os filhos das famílias abastadas, em busca de instrução superior. Era para lá que também ia parte dos seus rendimentos. Ah, esse extrativismo, como era ecológico (omitia-se, é claro, seus anacronismos sociais e econômicos). Produtos tradicionais como esses saíram da linha de frente da pauta de exportação ou mesmo das estatísticas de produção. Seringalistas e donos de castanhais não se importaram em passar em frente suas terras tão logo novos pioneiros se apresentaram para adquiri-las e transformá-las em campos de pastagem. Levaram consigo sua consciência ecológica (criada remissivamente), que se tornou decorativa, sem se preocupar com o que ficaria no front, quase sempre um selvagem preconceito antiflorestal, ou um total desprezo à integridade da paisagem original. As elites que se reciclaram aderiram ao novo "modelo" de ocupação da terra, ora como parceiros secundários dos atores principais ora como porta-vozes dessa nova ordem (principalmente políticos e advogados). Guiada pela lógica do lucro rápido, ela é ferozmente imediatista. Em seus parâmetros, criar gado é sempre melhor porque isso os pioneiros sabem fazer. Transformar árvores em madeira sólida, também. Ainda mais quando apenas umas poucas espécies têm aceitação certa no mercado e podem chegar a preços tão bons que, no caso do mogno, não é exagero chamá-la de ouro verde. Este é o status quo consolidado pela colonização em curso. Ela resulta da conjugação de interesses de pioneiros com nativos, infiltrando-se pelas estruturas do poder local. Os personagens têm pressa, estão atrás de resultados imediatos, sejam eles políticos carentes de votos ou empresários aventureiros. As representações da sociedade local estão ocupadas por esse tipo de gente, para a qual a atual estrutura de produção e comercialização de produtos amazônicos deve ser mantida para que seus benefícios continuem a fluir. O governo federal representa um caleidoscópio de interesses mais matizados. Há dentro dele incrustações desse modo convencional de encarar a Amazônia e segmentos apostando na inovação, que, em algumas situações, significa recriar o passado. Entre estas últimas tendências estão aqueles que acreditam na sobrevida do extrativismo, não com os barões da terra à frente, mas abrindo alas para aqueles que a eles estavam submetidos, numa relação que levou alguns intelectuais do passado a encontrar resquícios medievais na estrutura de produção da Amazônia (e não só nela, aliás). Eles acham que um extrativismo de novo tipo poderá dar certo se conciliar tecnologia e conhecimentos modernos com o ignorado ou desprezado habitante nativo, sob a tutela do Estado, ao menos durante a fase inicial, de amadurecimento. Teses e teorias não faltam na (e sobre a) Amazônia. Algumas são logo postas sob suspeição, no mercado das práticas correntes, por suposta origem internacional, servir de instrumento a interesses geopolíticos estrangeiros, defender o congelamento da produção da região, reduzirem-na a um museu para turista alienígena ver, favorecer a pirataria etc. Exceto pelas situações de comprovada dimensão criminal e definitiva lesividade ao interesse nacional, essa pluralidade é um patrimônio valioso para uma região que sofre gravemente a carência de conhecimento. Pior do que idéia equivocada é reprimi-la através da violência, sufocando, antes de poder manifestar-se, qualquer proposta heterodoxa, alternativa ou incômoda. A intolerância é erva daninha na maior fronteira de recursos naturais do planeta. Mas, pelo jeito, ela está começando a medrar como epidemia, apoiada por quem quer continuar a agir como se fosse o xerife da selva, um fantasma-que-anda sem romantismo, mas poderoso.
(Lúcio Flávio Pinto-Agência Estado-S.Paulo-SP e O Paraense-Belém-PA-04/03/02)

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