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Cortar cana causa males de coluna em índios

O Liberal-Belém-PA
23 de Jan de 2006

A mão-de-obra indígena, mais barata, é utilizada de forma que beira o trabalho escravo. Os problemas de saúde são muitos, sobretudo nos canaviais.

Dourados (MS) (Agência Estado) - Nos últimos 18 anos a população da reserva indígena de Dourados, a 250 quilômetros de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, passou de 4,5 mil para cerca de 11 mil pessoas, confinadas num espaço de 3,8 mil hectares. Isso dá mais de três índios por hectare, em média, numa área de periferia urbana quase sem mata, caça ou reservas naturais para a sobrevivência material e cultural do grupo. "Estamos produzindo um favelão indígena", constatou o diretor clínico da Missão Guarani Caiová, médico Franklin Amorim Sayão, que acompanha a variação demográfica indígena desde que chegou à área, em 1988. Em decorrência da explosão demográfica, agravaram-se os problemas de saúde, causados por desnutrição e também pelo trabalho que os índios são forçados a aceitar para sobreviver.

Um dos mais insalubres, conforme o médico, é o corte de cana, atividade econômica que já rivaliza com a soja no Mato Grosso do Sul. Em conseqüência, são comuns os casos de câncer de pele e problemas de coluna. "Quase todos os homens da reserva sofrem da coluna e, ainda jovens, muitos ficam inutilizados para o trabalho", contou.

É muito elevado também o índice de alcoolismo, sobretudo entre jovens, a violência, a prostituição e a degradação social. Fortes, rústicos e normalmente pacatos, os guaranis caiovás são muito requisitados pelas usinas e plantadores de cana. "Eles contentam-se com pouca comida e salário baixo e trabalham do nascer do dia ao pôr-do-sol sem descanso nem proteção adequada", explicou o médico.

O problema da reserva, a seu ver, decorre da combinação cruel de escassez de terras com altas taxas de natalidade e de imigração crescente nos últimos anos. "Os programas sociais começaram finalmente a surtir efeito e isso está atraindo índios de todas as partes, até do Paraguai", disse o médico. Entre os recém-chegados estão familiares que residiam em outras aldeias e até índios de outras etnias, como terenas e caiapós.

Eles vêm em busca do programas públicos como o de moradia, que financia 2 mil casas de alvenaria, de 50 metros quadrados, para os moradores da reserva, de cestas básicas de alimentos e o Bolsa-Família, que garante renda mínima às famílias que mantêm filhos na escola.

Um dos beneficiários é o jovem guarani Argemiro Amarilho, de 25 anos. Ele vive com a mulher, Márcia, e os filhos Zilane, de 6 anos, e Aldemir, de 2, na casa de quatro cômodos construída pelo governo no seu lote de cerca de 500 metros quadrados. "Comecei com 16 anos no corte de cana, mas sofro muito com a coluna. Acho que não vou agüentar muito mais tempo", lamentou.

Espremidos no espaço cada vez mais disputado, os índios são usados nas fazendas da região como mão-de-obra barata, em condições semelhantes à escravidão, enquanto lutam pela expansão da reserva, compartilhada por três aldeias guaranis caiovás.

A baixa escolaridade os obriga a subempregos braçais, como peões em fazendas e principalmente no corte de cana. Laudos antropológicos encomendados pela Funai constataram que a reserva deveria ser de no mínimo 27 mil hectares.

A palavra caiová deriva de kaa ava, que em guarani quer dizer homem do mato. O problema de terra da etnia remonta à guerra do Paraguai, travada na região no século 19. Para garantir a segurança de fronteira, após o conflito, o governo brasileiro começou a estimular a ocupação da área, mesmo sabendo que se tratava de terras indígenas. Em 1870, o imperador Dom Pedro II deu a primeira concessão, de mais de dois terços do território do Mato Grosso do Sul, a uma empresa, que explorava erva mate em parceria com os índios.

Nas décadas de 20 e 30, surgiram no País as primeiras leis de proteção aos índios. Mas na década de 40 o governo de Getúlio Vargas quebrou o monopólio do mate e intensificou o processo de ocupação de fronteira, com venda e doação de títulos federais e estaduais a fazendeiros. Aprofundou-se também no Brasil a chamada era da colonização pela pata do boi. Grandes extensões de terras foram desmatadas e queimadas para plantação de pasto.

Nas décadas de 70 e 80, o processo de expansão de fronteira agrícola se agravou com o advento da soja, que chegou à região pelas mãos dos gaúchos e sulistas, com seus tratores de corte raso e colheitadeiras possantes. Novas colônias agrícolas foram estimuladas pelo regime militar na região, com títulos avalizados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Mas após a constituição de 1988, os índios tiveram seus direitos reconhecidos
e, como a ajuda de ONGs e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passaram a agir de forma articulada. O governo foi forçado a reconhecer que errou na região e, no afã de resolver a dívida histórica com os índios, vem adotando algumas medidas reparadoras, algumas eficientes e outras desastrosas.

Na região do Panambi e Panambizinho, por exemplo, a União adquiriu as terras dos fazendeiros e assentou índios, também da etnia guarani, num processo semelhante ao assentamento dos sem-terra do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Mas, devido aos riscos jurídicos desta solução, o governo deixou de aplicá-la nas demais aldeias. Uma lei de 1967 diz que as terras indígenas são da União e, desse modo, o governo não pode comprar terras que já lhe pertencem.

Para o procurador da República Marcos Homero Ferreira Lima, esse é o tipo de conflito em que todos estão certos e ninguém tem razão. Mas o maior perdedor, a seu ver, tem sido o índio, alvo da violência original, com a tomada de suas terras. "Todas as demais seqüelas, como desnutrição, violência e alcoolismo, derivam do problema original, a falta de terra, que retira do índio qualquer chance de subsistência e de vida digna", observa.

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