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Corrupção não-governamental

JB, Outras Opiniões, p. A13
Autor: SADER, Emir
26 de Jun de 2005

Corrupção não-governamental

Emir Sader

Para quem quer ver corrupção, não é necessário olhar para cima, para as alturas do Estado e dos governos. Aqui mesmo, na chamada ''sociedade civil'' ela viceja largamente.
''As ONGs a serviço da globalizacao?'' - se pergunta o Le Monde Diplomatique (de junho). ''Por que se passa tão facilmente do posto de dirigente de uma grande organização não governamental (ONG) ao de um patrão de uma multinacional?'' - continua perguntando-se o mensal francês, com distribuição em dezenas de países do mundo. Refere-se a um fenômeno difundido pelo mundo, em que uma interminável quantidade de redes vivem da globalização, criticando-a, propondo sua reformulação ou simplesmente administrando os fartos recursos provenientes dela.
Nesse marco, a influencia dos EUA é notória, onde são recrutados alguns dos melhores alunos das grandes universidades. Graças a esse recrutamento, muitas ONGs dispõem assim de quadros qualificados, que trabalham em nessas associações, tornando-se parceiros críticos das empresas multinacionais e dos Estados - como relata o artigo de Yves Dezalay e Bryant Garth, autores de La Mondialisation des guerres de palais. Eles vão se formando em modalidades de atuação típicas desse universo, incluídos instrumentos como agenda de endereços, um estilo de atuação política que combina visibilidade na mídia e discrição na atuação como lobby, ''sem esquecer uma reputação bem útil em caso de reconversão posterior como ''empreendedor moral'''.
Grandes fundações dos EUA financiam a expansão das maiores ONGs, que trabalham com direitos humanos ou defesa do meio ambiente, contribuem para a expansão internacional dos campus que produzem e difundem a nova ortodoxia liberal. Mais da metade dos governadores dos bancos centrais são diplomados em grandes universidades dos EUA e mais de um terço dos ex-presidentes do FMI ou do Banco Mundial. A globalização valoriza um espaço da ''governança'' internacional, cujas instituições e práticas se inspiram no modelo estadunidense.
Por outro lado, um número crescente de quadros formados nas ONGs e na luta pelos direitos humanos ou pelo meio ambiente, se transferem para grandes instituições internacionais, onde parecem acreditar que sua ação pode ser mais eficiente. O artigo cita a vários casos de advogados chilenos que fizeram esse percurso, como exemplo concreto de muitos outros casos.
Um filme brasileiro, com pouco destaque na mídia, aborda o tema de maneira dura, correta e corrosiva: ''Quanto custa ou é por quilo?'', de Sérgio Bianchi, o mesmo diretor de ''Cronicamente inviável''. O contraponto entre casos reais, documentados, que testemunham das piores torturas e maus tratos infringidos aos escravos no Rio de Janeiro, com situações formalmente distintas, mas que remetem ao mesmo inferno, serve como referência para abordar um dos aspectos mais florescentes das políticas sociais no neoliberalismo.
Trata-se de ONGs, do terceiro setor, da filantropia, do voluntariado - formas distintas de abordagem de ações sociais desenvolvidas pos setores não governamentais. Ao assumir conceitos como o de ''sociedade civil'', que exclui as forças políticas, mas abre um amplo espaço de alianças (''parcerias'') com grandes empresas privadas e suas fundações, definem um campo ''não governamental'' de ação, com todas as outras ambigüidades que são exploradas, de forma ingênua ou mesmo de má fé. Definem um campo de ação próprio, fundado em idéias como as de ''pensar global e agir local'' - que abandona qualquer possibilidade de formular e lutar por ''um outro mundo possível'', limitando-se a ações locais -, preservando esse campo, sem se comprometer com sua transformação. Esta só poderia passar pelo campo política, pela luta por outra estrutura do poder na sociedade, pela formulação de estratégias, de ideologias, de formas conjuntas de ação política - de que as ONGs costuma fugir, condenando como formas indevidas de ação.
O filme merece ser visto, merece ser objeto de reflexão, merece ser difundido entre todos os que lutam por um mundo melhor, contra o neoliberalismo e todas as formas de dominação, opressão, alienação e discriminação. E merece que se tirem as conseqüências para a luta pelo ''outro mundo possível'', que precisa ter nos movimentos sociais e nas forças políticas e culturais seu eixo fundamental e não nas ONGs. E pelos que lutam contra a corrupção e pela ética na política e na prática social.

Emir Sader escreve aos domingos

JB, 26/06/2005, Outras Opiniões, p. A13

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