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Coqui - Qual o objetivo do Projeto?

COQUI.com.br
30 de Set de 2003

Maria Rosário - Acho que eu queria estudar o sistema de crenças dos Kaimbé.

Coqui - Os Kaimbé ficam numa aldeia próxima aos Kiriri.
Maria Rosário - Exato. Na região havia, tradicionalmente, quatro aldeias Kiriri: Saco dos Morcegos, atual Mirandela, Natuba, atual Soure, Canabrava, atual Pombal, e Geru, atual Tomar do Geru, em Sergipe. No mesmo período, Pedro Agostinho elabora um Projeto de Pesquisas sobre Povos Indígenas na Bahia, depois redenominado Programa de Pesquisas Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro, uma ampliação do projeto original. A partir daí, a gente começa a ampliar o raio geográfico e etnográfico de ação. Não havia mais sentido ficarmos limitados apenas à Bahia. A preocupação do Pedro Agostinho sempre foi a de criar um programa de pesquisas de caráter acadêmico combinado com uma Antropologia, digamos, mais engajada; na medida em que ele sempre considerou que a intervenção deveria ser precedida de um conhecimento sistemático sobre a realidade investigada. Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que é uma marca característica nossa - isto é, do PINEB -- nunca sugerir uma intervenção sem um conhecimento prévio daquele povo. Só se pode intervir, só se deve sugerir qualquer alteração, qualquer medida para um determinado grupo, uma vez o antropólogo tenha um mínimo de conhecimento sobre o plano das relações econômico-sociais-e-políticas.

Coqui - É partindo dessa concepção que nasce a ANAÍ?
Maria Rosário - Exatamente. Só que a ANAÍ nasce um pouco depois.

Coqui - Mas nasce dentro dessa perspectiva.
Maria Rosário - Nasce dentro dessa perspectiva, como uma espécie de prolongamento daquele primeiro projeto. São algumas das pessoas que estavam naquele primeiro projeto de estudo das populações indígenas da Bahia que vão pensar na criação de uma espécie de 'braço político'complementar ao trabalho propriamente acadêmico. Este vai ser a ANAÍ.

Coqui - Retomando...
Maria Rosário - Foi assim pensando que a equipe do PINEB começa um trabalho sistemático de conhecimento. A moçada nova - na qual eu me incluía, naquela época - começou a definir os seus objetos de pesquisa. Eu pensei, inicialmente, em estudar os Kaimbé, mas acabei me definindo pelos Pataxó. Pedro Agostinho começou a pensar nos Pataxó como objeto de um programa-piloto, voltado para estudar o sistema econômico e tendo em vista a questão da demarcação do território.. Foi a partir daí que me interessei em estudar o sistema econômico e ecológico dos Pataxó. Não é possível estudar a economia sem estudar a ecologia. Eu comecei, portanto, pela Antropologia Econômica. Eu tinha uma certa formação de caráter marxista, leituras... Por conta dessa característica, fui, de certo modo, convencida a estudar o sistema econômico dos Pataxó. Antes mesmo de terminar o bacharelado, comecei a fazer o mestrado, estudando os Pataxó.

Coqui - Onde você fez a pós-graduação?
Maria Rosário - Aqui na UFBA. Sob a orientação do Pedro Agostinho.

Coqui - Você é, em todos os sentidos, "prata da casa".
Maria Rosário - Sem dúvida. Minha grande escola foi a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e o Departamento de Antropologia através do PINEB.

Coqui - A visibilidade dos grupos indígenas no Nordeste, verificada nas últimas décadas, tem sido denominada por antropólogos e indigenistas de emergência ou ressurgência étnica. Recentemente, em Olinda, lideranças indígenas rejeitaram ambos os termos e se auto-denominaram "índios resistentes". Em que consiste a diferença entre os conceitos. Qual a razão da chamada emergência desses grupos indígenas?
Maria Rosário - Veja só. Todos esses grupos estavam ocultados porque lhes ocultaram, mas também estavam ocultados porque o processo de ocultamento foi tão violento que eles devem ter relutado muito antes de voltar 'à superfície' para reivindicar e demonstrar que haviam persistido enquanto grupos organizados.

Coqui - Muitos desses grupos eram reconhecidos como "caboclos".
Maria Rosário - Esse processo se deu quando suas aldeias foram elevadas à condição de Vilas, no século XVIII. Na verdade, isso foi uma espécie de morte anunciada. Elevam-se as aldeias a vilas e decreta-se que elas seriam habitadas por índios e não-índios. Foi uma espécie de decreto assimilacionista, quer dizer, o objetivo da medida era, efetivamente, forçar à assimilação. Todas a medidas foram tomadas nesse sentido.

Coqui - Em que ano foi publicado o decreto?
Maria Rosário - Em 1757 tem lugar o decreto de criação de Vilas. Mas isso se completa com a Lei de Terras, em 1850. A Lei de Terra cria as condições que faltavam para o esbulho das terras indígenas.

"[...] quando eu fui fazer o trabalho de campo entre os Pataxó, eu ouvi uma extraordinária liderança. Ela me disse - com toda a autenticidade que ela detinha: -"Mas, Rosário, eu, a vida toda queria ver um índio, não sabendo eu que era uma índia!". Os Pataxó estavam isoladíssimos"

Coqui - No Nordeste isso foi violento.
Maria Rosário - Violentíssimo. Até onde estou lembrada, a Província do Ceará foi a primeira a elevar as antigas aldeias a vilas. Tanto que o Ceará foi, contemporaneamente, um dos últimos estados a reconhecer a presença indígena. Depois que ele reconheceu houve ainda um a sucessão de novos ressurgimentos, dentro de um processo extraordinariamente rico. Então, Paraíba, Bahia, Ceará.... Mas é no Rio Grande do Norte e no Piauí que a chamada emergência étnica está, digamos, em estado de incubação, em estado de latência... Por que em todos os outros houve uma grande explosão! Mas o que causou isso? A pergunta também é essa: o que teria ensejado que esses grupos, que estavam ali escondidinhos, dispersos, passassem a reivindicar a identidade indígena? Veja, eles eram tratados como "caboclos" - que já constitui, sem dúvida nenhuma, a admissão da sua distinta condição étnica. Toda vez que alguém diz que ali tem um caboclo, você sabe que há um índio, travestido, pelo olhar regional, em caboclo.

Coqui - Os Tuxá se autodenominam caboclos. Para eles, o ser índio passa pelo reconhecimento do ser caboclo.
Maria Rosário - Exatamente. Essa era a denominação mediante a qual eles eram reconhecidos regionalmente. E quando eles começam a ressurgir? Na década de 70. A década de 70 foi importante em termos sócio-econômicos e políticos. Vou dar um exemplo: é a década em que a construção de rodovias no Nordeste começa a ocorrer com muita força, impulsionando a economia regional, para o que muito havia concorrido a implantação da Hidrelétrica do São Francisco. Certos marcos econômicos muito importantes que, efetivamente, criaram as condições para que houvesse a ampliação dos canais de comunicação, e, conseqüentemente, a possibilidade de alargamento da comunicação entre os índios, que até então era restrita. Ao lado disso, outras iniciativas ocorreram no âmbito da sociedade civil. Por exemplo, o Conselho Indigenista Missionário. Ele é criado também nessa década. Há um conjunto de mudanças; é um período de mudanças: econômicas, sociais e políticas que, de fato, vão reduzir as distâncias, facilitando, portanto, a interação. Nesse processo, o CIMI tem um papel importantíssimo, porque o CIMI vai ser o grande viabilizador dessa ressurgência, na medida em que detém as condições para realizar um trabalho de base, visitando essas áreas, registrando a presença dessas populações, auscultando as suas intenções e reunindo-as em assembléias. Essas assembléias vão ter um papel fundamental. Por exemplo, quando eu fui fazer o trabalho de campo entre os Pataxó, eu ouvi de uma extraordinária liderança. - com toda a autenticidade que ela detinha: - "Mas, Rosário, eu a vida toda queria ver um índio, não sabendo eu que era uma índia!". Os Pataxó estavam isoladíssimos. Por quê? Porque a área onde seria intalado o Parque funcionou como uma espécie de barreira. Para chegar lá era necessário enfrentar muitos obstáculos. Eles viviam numa espécie de sistema muito fechado. A partir de certo momento, a situação se inverte e tem início, com certa intensidade, a pressão da população regional. Na verdade, eles se comunicavam mais regularmente com os dois povoados do entorno: Caraíva e Corumbau. Caraíva é um povoado com uma tradicional população indígena. Foi um antigo assentamento indígena. Corumbau também tem forte presença indígena.
Em 1970, os índios, no Nordeste, começam a reivindicar a identidade indígena. Talvez um dos primeiros grupos a reivindicar a identidade indígena, ou melhor, a requerer do Estado o reconhecimento da sua identidade e a concessão dos direitos daí decorrentes, tenha sido o dos Fulni-ô, em [Pernambuco]. A seguir, os Kiriri [Bahia]. Um padre, o monsenhor Galvão, estabelecido em Cícero Dantas, tomou conhecimento da presença dos Kiriri. Ele era um sujeito com certa veleidade intelectual... Aliás, em todo esse contexto etnográfico do Nordeste, os folcloristas, os intelectuais regionais tiveram um papel importantíssimo, na medida em que sempre registraram a presença das populações indígenas. Parte significativa da bibliografia de caráter etnológico que os antropólogos, no Nordeste, consultam preliminarmente e que, efetivamente, atesta a presença indígena, é produzida por etnólogos autodidatas. Os chamados intelectuais locais. Eles fizeram registros de muito boa qualidade, muito bons registros que acusavam a presença desses grupos. Então, a partir da década de 70 começa o processo que a literatura etnológica denomina de ressurgência étnica. Eles ressurgem em toda parte. Eles próprios dizem, em um dos toantes do ritual do toré - ritual muito característico desses povos do Nordeste: - "Estava lá na mata abaixadinho, por que me tirou?" Por que eles perguntam isso? Isso parece demonstrar a sua perplexidade. Eles estavam "escondidinhos", estavam ocultados; depois, essas mudanças ensejam o desocultamento, mas não obstante as mudanças, eles constatam que continuam sendo alvo de discriminação, continuam tendo dificuldade de relacionamento com o próprio Estado Brasileiro. Mas estão aí na luta. Então, começa uma espécie de boom. Era muito curioso. Perguntavam para a gente: - "Quantos povos indígenas há no Nordeste?" A gente dizia: - "Olha, até ontem eram tantos". Ninguém sabia ao certo; era uma espécie de movimento crescente de ressurgência...

Coqui - Nesse processo, qual o papel da Constituição de 1988? Ela acelera o processo?
Maria Rosário - Ela tem um papel fundamental. Ela não apenas acelera; quando o processo é desencadeado, os índios têm uma participação extraordinária. Aliás, o trabalho que os antropólogos fazem nesse período é digno de nota. É necessário ressaltar a figura da Associação Brasileira de Antropologia - ABA -, que à época era presidida pela Manuela Carneiro da Cunha. Manuela Carneiro da Cunha, através da ABA, teve um papel fundamental. A ABA nesse momento, como até hoje, passa a ter uma relação muito forte com a sociedade civil organizada e é ela quem vai orientar a reação, melhor dizendo, definir as diretrizes para que os direitos indígenas fossem efetivamente contemplados, respeitados na Constituição de 1988. Isso foi importante: a liderança indígena esteve lá, houve mobilização. A ABA, juntamente com outros setores organizados, por exemplo, o CIMI, as ANAI's, as CPI's - Comissão Pró-Índio. Houve um intenso trabalho por parte desses setores não-governamentais, mobilizando os índios. Então os índios vão para o Congresso Nacional. Eles também são os artífices dessa Constituição. Efetivamente, isso implica em quê? Num outro momento: aquele em que eles passam a ser protagonistas da sua história. Eles tinham direitos que estavam sendo respeitados. Senão ainda respeitados, estavam sendo reconhecidos pelos congressistas. Esse foi um momento relevante que ainda hoje está em curso.

Coqui - Daí, eles se autodenominarem índios resistentes.
Maria Rosário - Isso é interessante. Por que eles recusam os termos ressurgentes e emergentes, em nome do resistente? É interessante. Mesmo nós, antropólogos e indigenistas, quando usamos essas denominações, ressurgentes e emergentes, o fazemos com certo escrúpulo porque pode dar ao leitor/ouvinte desavisado a idéia de que eles surgem meio, digamos, instrumentalmente... Eles sempre se ressentiram dessa possibilidade de, no campo semântico, passar essa idéia...

Coqui - De artificialidade.
Maria Rosário - Exato. De algo que brota artificialmente, algo espúrio, algo que surge conduzido, motivado externamente e que possa suscitar dúvidas quanto à autenticidade da sua própria identidade e do seu direito histórico congênito. Essa recusa é muito por aí. Isso é muito justo. Eles têm uma história de resistência extraordinária. Eu fico absolutamente perplexa ao constatar quão forte essa gente é! Foram tantos os constrangimentos, as compulsões bióticas e ecológicas, os constrangimentos sociais, políticos e ideológicos... E passados tantos anos de contato, séculos de contato, essas populações, que afinal de contas são tributárias dos ancestrais "donos da terra", continuam resistindo e reivindicando seus direitos históricos, entre os quais, o de ser índio. De serem efetivamente aceitos como tal. Essa reivindicação identitária, por outro lado, está diretamente relacionada a um complemento indispensável, a reivindicação fundiária. Não é possível manter a identidade sem uma base territorial. Tratam-se de povos, de coletivos, identidades coletivas que requerem, para sua reprodução biológica e social, uma base territorial A identidade individual, particularmente mas não exclusivamente no caso dos índios, decorre dessa identidade coletiva. E esse índio coletivo não pode prescindir, como enfatizado, de uma dimensão que é, simultaneamente física e simbólica, para sua reprodução biológica e social, que é a terra, seu território.

Coqui - A emergência está quase sempre relacionada à reivindicação fundiária?
Maria Rosário - Ela é, em geral, indissociável.

Coqui - No sertão do Nordeste, sobretudo.
Maria Rosário - No sertão, sobretudo. Por quê? O que aconteceu? Sabe-se hoje que os Tupi avançaram, vindos do sul, pela costa leste e nordeste do Brasil, dela desalojando diversas outras etnias, em geral consideradas afiliadas ao tronco Macro-Jê, alguns poucos séculos antes da intrusão européia. Não obstante terem consolidado seu domínio sobre o litoral, incursões belicosas dos povos do interior eram constantes no limiar do século XVI, o que proporciona um bom quadro para se entender os desdobramentos do processo de colonização nos três séculos seguintes..

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