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Coqui - Aliás, a história registra os deslocamentos dos Pataxó.

COQUI.com.br
30 de Set de 2003

Maria Rosário - Sem dúvida. Eles fazem uma espécie de trecking entre a mata, o interior - o centro, como eles dizem na Amazônia -, onde plantam mandioca e outros cultígenos, e, sazonalmente, uma vez colhida a mandioca e processada a farinha, eles vão para as calhas dos rios.

Coqui - Os fazendeiros/grileiros têm se apegado muito aos deslocamentos sazonais dos índios para negar-lhes direitos. Os conflitos entre fazendeiros e os Pataxó são marcados pela acusação de que os Pataxó não são "naturais" do Sul da Bahia. Aliás, recentemente, o CIMI publicou uma obra, elaborada a partir de documentação colhida no Museu do Índio, evidenciando que a presença Pataxó no Sul remonta há séculos.
Maria Rosário - Como estou encarregada de elaborar o laudo sobre o território dos Pataxó, estou compulsando a literatura, passando um pente fino na literatura para elaborar um laudo com uma boa base empírico-documental. É uma coisa impressionante, o registro da presença dos Pataxó na região. Você chega tranqüilamente ao século XVII e consegue traçar uma presença persistente desde o século XVII. Seguramente, vou chegar ao século XVI. Os Pataxó ali persistiram, de forma digna de admiração, ao longo desses séculos, na região do extremo sul baiano. Uma grande região que, à época, alcançava os limites do que é hoje o Estado do Espírito Santo. Ali viviam várias etnias. Não eram só os Pataxó. Eles tinham uma presença marcante e talvez fossem os que mais resistiram, até o século XIX. Mas ali havia os Maxacali, havia os Botucudo, havia os Tupinambá, havia Camacã. Eram várias etnias, pequenas etnias demograficamente, que também disputavam espaço entre si, mas que, não obstante as hostilidades interétnicas, conseguiam compartilhar uma larga superfície, aparentemente dividida mediante bacias hidrográficas Os problemas começam a advir com a presença não-indígena, que possui outra lógica econômico-simbólica. A lógica do não-índio é uma lógica excludente, que disputa o território aos índios, para eliminar a presença indígena. No âmbito do PINEB há um bom acervo histórico-documental -- o FUNDOCIN -- que dá sustentação histórica aos estudos realizados. O FIUNDOCIN - Fundo de Documentação Histórica Manuscrita sobre Índios na Bahia - é resultante da perspectiva do Pedro Agostinho de como deveria ser conduzida a produção etnológica na Bahia em duas grandes linhas complementares: de um lado, a Antropologia histórica - com boa base documental - e do outro, a Antropologia Social. Afigurava-se-lhe indispensável reunir uma boa base documental que pudesse ser utilizada para fins múltiplos, entre os quais comprovar o direito histórico desses povos, pois ele provavelmente antevia que esse direito seria reiteradamente posto em dúvida pelos interesses anti-indígenas, de variadas procedências, como tem sido, e que seria também necessário preservá-lo através de bom conhecimento histórico-antropólogico. Daí a formação do FUNDOCIN, um acervo produzido mediante o trabalho árduo de várias gerações de bolsistas, e que teve início a partir da documentação recolhida ao Arquivo Público do Estado da Bahia - APEB e que posteriormente se ampliou com o acervo do Arquivo de Nossa Senhora da Piedade, da Ordem dos Capuchinhos, com uma pequena incursão à Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e que prossegue, hoje mais lentamente, em razão das constantes reduções de quotas de bolsas por parte do CNPq, a principal agência de fomento de pesquisa nacional.

Coqui -Essa documentação está disponibilizada?
Maria Rosário - Ainda não, pois estamos dando curso à revisão da documentação recolhida ao APEB; um trabalho meticuloso que exige paciência e rigor, atualmente realizado por um único profissional, já que, como assinalamos, as bolsas do CNPq foram reduzidas drasticamente.

Coqui - Continuando.
Maria Rosário - Essa marca característica de uma relação tensa, criativa, entre a Antropologia Histórica e a Antropologia Social, ouso supor ser a marca do PINEB. Não estou dizendo que outros grupos - como os dos valorosos pesquisadores do Museu Nacional, notadamente dos professores João Pacheco e Antônio Carlos de Souza Lima - não tenham também essa preocupação. Mas acho que ela é uma marca característica do PINEB, sob cuja inspiração gerações de antropólogos têm sido formadas. Reporto-me a uma observação de Ugo Maia referente ao fato de, não obstante haver ele defendido sua dissertação de mestrado na USP, com a menção distinção e louvor, sentir-se pertencente aos quadros do PINEB. Ele foi nosso bolsista. Essa tem sido a nossa marca, aliar a competência profissional, competência antropológica, à preocupação ética absoluta. Temos tido, nesse sentido, realmente uma sorte muito grande. De modo geral, nossos trabalhos, as dissertações de mestrado e as teses orientadas no âmbito do PINEB, bem realizam essa preocupação e, em grande número, têm estabelecido uma produtiva relação de complementaridade entre os fenômenos sociais e os históricos. Não se trata, absolutamente, de qualquer veleidade ou idiossincrasia da parte dos pesquisadores que o compõem mais da efetiva relevância dos processos históricos para explicar o presente.

"[...] já chegou o momento da gente retomar uma outra tradição; retomar a velha e boa tradição mais etnológica, ou seja, é possível hoje voltar a praticar a Antropologia clássica, trabalhando o parentesco, trabalhando o xamanismo e outros temas que têm sido menos tratados por força do justo privilégio até então conferido à denominada etnologia do contato"

Coqui - Tendo em vista a emergência ou resistência étnica, gostaríamos que você explicasse os conceitos de índios "misturados" e "regimados". Aliás, é possível uma etnologia indígena do Nordeste a partir da marca dos "misturados" sem cairmos em uma Antropologia das "perdas culturais"?
Maria Rosário - Deus nos livre! Sou absolutamente contrária à idéia das "perdas culturais" no sentido absoluto. Sempre preconizei que houve reelaborações. Na verdade, a Antropologia brasileira tem recusado, mais contemporaneamente, incidir em uma antropologia das perdas culturais. Há um texto, muito útil ainda hoje, da Manuela Carneiro da Cunha, um texto pequeno, cujo título é muito sugestivo: "Da cultura residual, mas irredutível". Ela chama atenção justamente para isso; na verdade, não houve perdas absolutas, as perdas não tendem a ser absolutas, constituem reelaborações. A cultura mesmo se tornando residual, por força de um contato avassalador, é irredutível. Esses povos indígenas no Nordeste são uma prova inquestionável dessa irredutibilidade cultural. Eles procederam a várias reelaborações. Mas, sem dúvida nenhuma, essas reelaborações não implicaram uma mudança absoluta, ou seja, um esforço para acolher o novo e repelir o pré-existente, mas em geral ocorreu a acomodação do novo ao pré-existente, sempre que as novas práticas e representações mostravam-se passíveis de ser acolhidas pela cultura, pelo esquema significativo pré-existente. Parto do suposto de que aconteceu muito isso, salvo naquelas situações em que não lhes foi deixada escolha... A literatura etnológica, através de vários estudos de caso, tem comprovado esse movimento dialético. Por exemplo, os Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, constituem um significativo exemplo de que os povos indígenas têm sido muito criativos. Eles conseguiram, muitas vezes, driblar o colonizador. Um pouco do que o texto do Eduardo Vieira de Castro, "O mármore e a murta" relata com muito vigor, apelando, ademais, para uma metáfora do grande padre António Vieira. "O mármore e a murta" é uma metáfora do Vieira, alusiva à expectativa frustrada do colonizador. Ao se estabelecerem na nova terra conquistada, os missionários, como agentes da Colônia, julgaram que os índios, que a cultura indígena, era uma tábula rasa e que eles poderiam substituí-la pela sua própria cultura. E durante algum tempo permaneceram nessa suposição, na medida em que os índios foram hábeis o bastante para fazê-los crer que acolhiam tudo, que estavam extasiados diante do que se lhes apresentava, mas... quando lhes era concedida a menor oportunidade, eles voltavam aos seus rituais, eles contavam os seus mitos, eles retornavam ao seio de sua cultura de um modo impressionante. Então, na verdade, eles conseguiram driblar a vigilância e as crenças dos colonizadores e, mediante esses dribles, conseguiram conservar muito da expressão indígena pré-existente. Com alterações. Absolutamente não é possível pensar em pureza cultural. Isso é um equívoco. Isso não existe! Há sempre dinâmica cultural... mesmo sem um contato sistemático ou, mesmo sem o contato violento, a cultura muda. Ela muda através de seus próprios agentes. Ela muda através de uma série de fatores, às vezes, imperceptíveis; o que parece querer significar que a própria cultura enseja espaço para a mudança. No caso do contato intercultural assimétrico, essas readaptações são realizadas, quase invariavelmente, sob constrangimento, os povos são compelidos a proceder a readaptações antitéticas ao seu esquema cultural, mas mesmo nesses casos parece não ter lugar a completa assimilação da cultura politicamente dominada pela dominante, daí devermos recusar teorizações sobre perdas culturais em caráter absoluto.

Coqui - Na maioria das vezes isso ocorria a ferro e fogo.
Maria Rosário - Sem dúvida, a ferro e fogo. Houve genocídio, Etnocídio! Não se pode negar isso! Houve violência física e violência simbólica! É por isso que é necessário considerar as várias modalidades de resistência indígena Por exemplo, conseguimos a recém-aprovação de um projeto para estudar o xamanismo Kiriri. Esse projeto foi elaborado à base de evidências recolhidas em diferentes momentos e circunstâncias, tanto advindas de outros projetos que têm sido desenvolvidos entre os Kiriri, como de mais recentes registros de campo, evidências que nos autorizaram supor que esse xamanismo, não obstante as várias mudanças a que esteve constrangido, parece persistir com certo vigor. Esse projeto de certa forma demarca uma nova linha de investigação no âmbito do PINEB, que, dito muito sinteticamente, significa uma maior inflexão sobre a etnologia tradicional e, conseqüentemente, um certo deslocamento da denominada etnologia contatualista, ou se assim se preferir, da dimensão mais sociológica da etnologia.

Coqui - Qual a origem da etnologia do contato?
Maria Rosário - Digamos que ela é tributária da teoria da "Fricção interétnica", de Roberto Cardoso de Oliveira, com alterações que foram realizadas. Ela procede dessa tradição, posteriormente refinada mediante uma abordagem de corte processual, situacional, na linha da tradição da Escola de Manchester, onde se destacariam Max Gluckman e Victor Turner, entre outros. E aí, no Brasil, o João Pacheco tem um papel, realmente, muito significativo na ´tradução´ da fricção interétnica sob uma perspectiva processual, esforço que se enriquece mediante as contribuições de vários pesquisadores. Mas o que quero dizer é que, hoje, está se abrindo a possibilidade, já chegou o momento de retomarmos a velha e boa tradição mais etnológica, ou seja, é possível hoje apelar para a Antropologia de corte clássico, trabalhando o parentesco, trabalhando o xamanismo e outros temas que têm sido menos tratados por força da ênfase - justa ênfase, é necessário que se o diga - conferida à etnologia do contato. Nós temos produzido bons estudos sobre os processos identitários, fundiários, sobre os processos de emergência étnica, sobre o movimento contemporâneo, levado a cabo por distintos povos indígenas, de etnização de vários fenômenos sociais e políticos, e suponho já ser possível enveredar pela boa e velha etnologia clássica.

Coqui - Aí entra a questão dos "regimados"?
Maria Rosário - Exatamente. Vamos pensar na oposição índios "misturados" e "regimados" e reportemo-nos aos anos 1970/1980. 1970 como o grande marco desencadeador desse boom protagonizado pela resistência indígena, no âmbito do qual o Estado se apresenta como um Estado autoritário, o que requereu grande mobilização por parte da sociedade civil organizada. Era preciso reconhecer os direitos dos índios, era imperativo alterar o sistema de relações de força então prevalecente, o que passava, necessariamente, pelo reconhecimento formal, pelo Estado, da existência de povos tidos, até pela literatura etnológica, como extintos, e que estavam a requerer seus direitos constitucionais. Povos, é importante assinalar, que não obstante predominantemente estabelecidos no Nordeste, também ressurgiam na região amazônica. Ao ressurgimento ocorrido na década de 1970 se contrapôs, reativamente, um forte movimento por dentro do aparelho do Estado para criar obstáculos à consagração desses direitos, dessas reivindicações que se sucediam crescentemente. O Estado, a partir da década de 70, através da FUNAI, tenta formular critérios de indianidade, espúrios, através dos quais ela exerceria controle sobre, simultaneamente, a mobilização indígena e sobre a retaguarda oriunda da sociedade civil, reorganizada. O Estado tenta, então, de vários e, em geral, subreptícios modos, controlar esses processos de reivindicação. A reação não se fez esperar: antropólogos e indigenistas encetam grande campanha de resistência, esclarecendo aos vários setores da população civil nos contextos urbanos, buscando explicar os variados processos de etnogênese, tentando superar as várias modalidades de preconceito que, não raro, se disfarçavam sob atitudes indulgentes e expressões eloqüentes -- muita terra pra pouco índio", "programa de índio", " índio bom é índio morto" --, partindo, enfim, para um confronto com as forças retrógradas que se aferravam a critérios pseudo-científicos, como o percentual de miscigenação através do sangue e outros indicadores substancialistas, a exemplo da autenticidade cultural e etc. Os antropólogos disseram não, demonstraram que esse não era o caminho legítimo, que os tais "critérios de indianidade" não dispunham de apoio científico, opuseram sérias barreiras que se mostrariam, ao final, eficazes. Os critérios de indianidade, postulados pelo célebre, de triste memória, coronel Zanone, que era, no âmbito da Funai, o artífice dessa política assimilacionista e falsamente emancipatória, porque, no fundo, o intento governamental era emancipar. O que era emancipar? Emancipar era desonerar, desobrigar o Estado dos deveres, constitucionalmente consagrados, que ele tinha para com os índios. Não obstante isso, não obstante esse confronto que levou o Estado a recolher a bandeira emancipatória, pelo menos declaradamente, o Estado continuou autoritário e a advogar uma ideologia assimilacionista, através da tentativa de distinção entre "índios misturados" e "índios regimados". Sob quais critérios e em quais instâncias? A partir das chamadas inspetorias regionais, depois substituídas pelas administrações regionais da FUNAI. Os inspetores, e a seguir os administradores regionais, recebiam orientação para suscitar, entre as lideranças indígenas que reivindicavam a identidade, uma espécie de comprovação cultural, substancialista, de que eram índios. Quando os índios lá se apresentavam, eles diziam: - "Como vocês vão provar que são índios?" Estes reagiam: - "Nós somos índios". Ao que os primeiros readarguiam: - "Não, é preciso dar as provas". Afinal de contas, eles eram vistos, mesmo pelos agentes da FUNAI, como "índios misturados", como caboclos. A força do imaginário do caboclismo se reproduzia mediante a representação de índios mestiços, "remanescentes", "índios misturados", que para reverter essa condição teriam que apresentar ao Estado, provas substantivas de que eram índios. Que provas eram essas? As provas, efetivamente, incidiam sobre o ritual e ornamentos indígenas e numa espécie de seleção daqueles cuja aparência física, fenotípica mais próxima estivesse do índio construído pelo imaginário nacional: despido, portando arco e flecha e ornado com plumas de cores vibrantes. A partir desse estímulo externo, os rituais passaram a ter uma voga extraordinária. Encarado de uma outra perspectiva, menos negativa, os funcionários da FUNAI, ao preconizar que eles apresentassem as provas da sua identidade, terminaram por incentivá-los a selecionar os sinais diacríticos, alguns em desuso, que mais operacionais se mostrassem ao observador externo. É aí que o ritual do toré passa a se constituir em poderoso símbolo de identidade étnica, internamente a cada povo e no plano supra-local, no contexto etnográfico do Nordeste. Os povos emergentes tinham que possuir, na expressão de um desses inspetores, "regime de índio", disciplina de índio, alguma marca cultural indelével que não suscitasse dúvidas ao legislador ou àquele que, em última análise, detinha o poder de acolher, ou recusar a reivindicação. De certo modo, a FUNAI estava preconizando que, de "misturados" eles se transformassem em "índios regimados", com regime de índio.

Coqui - No mesmo encontro em Olinda, ao qual fizemos referência anteriormente, as lideranças indígenas rejeitaram a exigência de laudos para a identificação étnica, reivindicando a aplicação da afirmação da identidade étnica, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Qual sua posição sobre o assunto?
Maria Rosário - Perfeito. Vou dizer mais. É preciso também que a gente dê o crédito à dispensabilidade do laudo ao ex-presidente da FUNAI, Eduardo Almeida. Por quê? Embora não tenha sido declarado na abertura da reunião, uma funcionária da FUNAI que representava Almeida, então presidente da FUNAI, já tinha instruções para informar aos índios que a FUNAI não mais condicionaria o seu reconhecimento étnico à elaboração de um laudo antropológico, sendo, pois, suficiente a auto-identificação A funcionária só divulgou a informação posteriormente ao posicionamento expresso pelas lideranças. Essa medida, de relevância política, atesta a sensibilidade de Eduardo Almeida, o seu compromisso com a causa indígena, a sua sintonia com as expectativas e demandas da maioria da população indígena. Nós sempre tivemos, aqui na Bahia, no PINEB, uma atitude crítica em relação a esses laudos de identificação étnica. Uma coisa é elaborar laudos/relatórios de delimitação e revisão de limites dos territórios, que requerem um certo conhecimento técnico-especializado, e para os quais o concurso do antropólogo com prévio conhecimento sobre o povo é fundamental; outra coisa é solicitar do antropólogo que verifique a legitimidade da identidade afirmada por uma coletividade. No limite, é um contrasenso, tanto mais grave se o antropólogo não exerce, de modo equilibrado, esse papel.

Coqui - Os laudos territorial e demarcatório não estão em questão?
Maria Rosário - Não. O problemático é o de identificação étnica que se caracteriza por certa arbitrariedade e prepotência. Ele dá ao antropólogo uma atribuição que, a rigor, não lhe é própria, e o antropólogo, por sua vez, corre o risco de agir como um agente colonial a quem se confere a prerrogativa de considerar autêntica ou inautêntica uma afirmação identitária. No limite, o laudo de identificação étnica atenta contra a própria definição de índio consagrada pelas leis brasileiras e pela Convenção da OIT. O que é índio? Índio é aquele que se afirma como tal (auto-identificação) e tem a sua identidade reconhecida pela população não-índia adjacente (hetero-identificação). A auto-identificação, a auto-adscrição constitui o fator fundamental para o reconhecimento da identidade de qualquer povo e deve ser suficiente para assegurar direitos e os recíprocos deveres dela decorrentes.

Coqui - Vamos voltar à questão da FUNAI. Antropólogos e indigenistas têm severas críticas à atuação da FUNAI. Gostaríamos que você falasse dos focos de tensão entre a entidade e as duas categorias. A ascensão e posterior exoneração do indigenista Eduardo Almeida à presidência da FUNAI provocou mudanças em relação às críticas?
Maria Rosário - A ANAÍ divulgou uma nota sobre esse tema, na qual está claramente formulada a posição da entidade que, por sua vez, expressa a posição unânime dos que nela militam. Nessa nota, elaborada em uma conjuntura especialmente delicada, já que o governo, através do seu ministro da justiça, divulgara, de modo oblíquo, a disposição de substituir Eduardo Almeida, a ANAI empreende uma reflexão crítica sobre a política indigenista nos últimos anos, assinala as expectativas suscitadas pela vitória do PT nas últimas eleições, particularmente com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república, na medida em que a sua bela trajetória político-sindical autorizava a renovação das esperanças e bons ventos para a mudança de rumo na política indigenista. A ANAI teve o cuidado de não transformá-la em uma nota de adesão a Eduardo Almeida, em razão, simultaneamente, dos laços estreitos que o unem à entidade, da qual, ademais, ele já havia sido presidente, e de ter restrições à condução da sua gestão, notadamente no que concernia à formação da sua equipe. O fato de reconhecermos nele um quadro competente, dedicado e leal aos índios e à causa indígena não deveria constituir limitação para bem exercitarmos, internamente à entidade, uma reflexão crítica isenta. De todo modo, vale reiterar, como o fizemos na Nota, que sobre Eduardo Almeida foram lançadas - pelo próprio governo - críticas que, a rigor, o governo deveria fazer, preliminarmente, a si próprio. Como a lentidão para examinar os nomes que lhe eram submetidos para compor a equipe da FUNAI, o que concorreu para reações corporativistas e deixou o campo livre para a velha burocracia que, aparentemente, controla o órgão, notadamente lançando mão do aliciamento de lideranças maleáveis e habituadas a barganhas mutuamente convenientes. Uma série de medidas, seguramente, deixaram de ser tomadas, enfraquecendo a liderança do então presidente e fortalecendo, em contrapartida, aqueles contrários às suas idéias e atos. Não tem havido, por parte do governo, uma clara e inequívoca vontade política para reestruturar a FUNAI e formular políticas efetivamente orientadas para a justa promoção das condições de existência dos povos indígenas, nas áreas de saúde, segurança alimentar e fundiária. Vou citar, à guisa de exemplo, o caso da área indígena Raposa/Serra do Sol, cujo processo de delimitação está pronto, aguardando apenas a homologação por parte do presidente da República. O governo tem adiado o processo homologatório, pretextando que significativa parcela de população não-índia seria afetada, quando essa população é muito menor comparativamente à de outras áreas cujos processos nem por isso não foram obstados, protelados. Os direitos dos índios aos seus territórios, apoiados em estudos antropológicos circunstanciados, não podem ser transacionados em troca de apoio parlamentar, cedendo, assim, às pressões dos latifundiários e políticos clientelistas. Não se pode deixar de constatar que os interesses anti-indígenas estão fortes nesse governo do PT, que tem capitulado, freqüentemente, em matéria relevantes, em nome da formação de uma maioria parlamentar que lhe assegure aprovar as reformas da previdência e tributária. O PT tem demonstrado uma verdadeira obsessão na obtenção de maioria parlamentar e com isso tem sacrificado seus tradicionais princípios ético-políticos que, afinal, o diferenciavam no espectro partidário brasileiro. Certas alianças políticas que o PT tem celebrado continuam assegurando a perpetuação, no cenário político, de velhas lideranças que, se supunha, seriam banidas em nome da ética e da necessária renovação dos quadros. É desalentador! E depois ele ainda ousa cobrar fidelidade partidária dos que se insurgem contra os desvios cometidos...

Coqui - Pode-se dizer que esses interesses anti-indígenas estão representados na figura do Senador Romero Jucá, por exemplo?
Maria Rosário - Claro. Enquanto presidente da FUNAI e depois de eleito senador o Sr. Jucá tem se destacado na defesa dos interesses anti-indígenas, representados predominantemente pelas madeireiras e mineradoras. É um político particularmente sensível à causa empresarial e, conseqüentemente, insensível aos interesses indígenas e dos socialmente excluídos do país. Como admitir, pois, que no governo do PT uma pessoa recomendada pelo senador Romero Jucá possa sequer ser indicada para presidir a FUNAI? Voltando à nota divulgada pela ANAI, ela é clara também no sentido de enfatizar que o governo não tem conferido prioridade à questão indígena. Longe disso, ele a tem relegado a um plano secundário, em decorrência do que, como já referido, parece haver crescido a oposição aos índios, ensejando campo fértil para práticas preconceituosas. Nós estamos assistindo, sem disfarces, ao fortalecimento dos interesses anti-indígenas, dos sem-terra, sem-teto e demais excluídos, qualquer que seja a denominação do coletivo que representam. Nessa conjuntura, fica muito difícil a indivíduos, isoladamente, resistirem às pressões, como foi o caso de Eduardo Almeida: a sua competência, integridade, lealdade aos índios e disposição pra reestruturar a FUNAI foram insuficientes, já que internamente ao governo, e particularmente internamente à FUNAI, cerravam fileiras contra ele, utilizando as tradicionais armas da desqualificação, pessoal e profissional, tão sistematicamente utilizadas entre nós. Reiniciou-se, assim, a ciranda de substituição de nomes e não se procedeu à necessária reestruturação do órgão Reestruturação, insisto, indispensável para eliminar vícios que desvirtuam o órgão e propiciam a adoção de práticas pouco convencionais, como a formação de micro-poderes que dificultam, e às vezes impedem mesmo, o desenvolvimento de projetos de pesquisa por parte de antropólogos competentes, que terminam reorientando seus interesses para não prejudicar, irreversivelmente, seus legítimos interesses científicos. Sabemos todos que nos quadros da FUNAI há funcionários dedicados e que têm exercido, com rara dignidade, as suas funções, do mesmo modo que parece prevalecer um clima favorável à promiscuidade entre o público e o privado, clima compartilhado também por lideranças indígenas que abdicam dos justos interesses das suas comunidades para auferir vantagens pessoais ou para seus pequenos grupos. Da mesma forma que há lideranças indígenas incorruptíveis, há aquelas que se deixam suscetibilizar por essas alianças clientelísticas, que se deixam cooptar por interesses espúrios, já que inexistem políticas específicas competentes que tornem ineficazes as barganhas, realizadas às margens do centro do poder.

Coqui - O sr. Eduardo Almeida foi "fritado", como se dizia nos governos anteriores.
Maria Rosário - Exatamente. Essas práticas não mudaram. Ele foi, para usar o termo recorrentemente utilizado pelos jornais, "fritado", foi destituído porque sempre esteve comprometido com a "causa indígena" e deixou claro ao governo que não admitiria transigir em relação aos direitos dos índios: aos seus territórios, à saúde e etc.. As lideranças, efetivamente conscientes; aquelas que não se deixam cooptar, seguramente não estavam insatisfeitas com a sua atuação, ou, pelo menos, não tão insatisfeitas quanto àquelas outras que foram para Brasília exigir a sua demissão. Eu conheço as idéias dele, ele jamais compactuaria com uma política clientelística.

"Lideranças indígenas não podem entrar no tráfico de influências que caracteriza a política partidária. Um outro tipo de política tem que ser elaborada e implantada. A política indigenista não pode se confundir com um balcão de negócios"

Coqui - Política clientelística que se traduz, às vezes, em atendimento a projetos de caráter pessoal ou duvidoso.
Maria Rosário - Sim. Mas não pode ser desse modo. É preciso haver uma distribuição objetiva, é preciso que nós acabemos com essas relações pessoais; é preciso que haja, entre o aparelho de Estado e os povos indígenas, relações objetivas, mediadas pelas lideranças, sim, mas estabelecidas escrupulosamente. O que é isso? Esse tipo de mediação, com a interveniência de relações pessoais, só afeta os povos indígenas e, mais ainda, afasta suas lideranças das bases. Tenho ouvido, com certa freqüência, restrições a certas lideranças, ao tempo em que tenho testemunhado lideranças serem alvo de críticas contundentes por parte das populações que representam. Não estou dizendo que as lideranças estejam, efetivamente, se locupletando, absolutamente não é isso. Estou chamando atenção para o fato de que, muitas vezes, o atendimento de suas reivindicações é feito mediante o uso da força. Então, o líder indígena que utiliza mais o uso da força e a retórica da violência se impõe, em detrimento daqueles que têm argumentos mais persuasórios. Isso já faz uma diferença enorme. A gente sabe que há povos indígenas que lançam mão, mais ou menos sistematicamente, de uma retórica mais "incisiva" para defender os interesses das suas comunidades, na falta de critérios de distribuição mais objetiva de recursos, em geral escassos. Efetivamente, práticas desse tipo aprofundam clivagens já existentes internamente aos povos indígenas e suscitam outras, por força de uma atenção desigual que seria conferida, por exemplo, aos povos estabelecidos no Nordeste, por um lado, e aos da Amazônia, por outro. Essa desigualdade de tratamento tem reflexos tremendos nas áreas indígenas. Para agravar o quadro, há lideranças que se tornam impermeáveis aos reclamos das "bases", das populações cujos interesses representam, o que cria isolamento e enseja clima acirrado de desconfiança dessas para com aquelas. Críticas duras são, então, formuladas pelas populações às suas lideranças: de que elas não informam sobre as relações que estabelecem com o mundo externo e que não distribuem, de modo eqüitativo, os recursos dirigidos para as áreas indígenas. Lideranças indígenas não podem entrar no tráfico de influência que caracteriza a política partidária. Um outro tipo de política tem que ser elaborada e implantada. A política indigenista não pode se confundir com um balcão de negócios. O tráfico de influência só faz, efetivamente, trazer prejuízos seríssimos às lideranças indígenas e às populações que elas representam.

Coqui - Anteriormente, a senhora falou da importância do CIMI no processo de legitimização da emergência étnica, registrada nas últimas décadas. Gostaríamos que a senhora falasse um pouco mais sobre a relação entre os antropólogos e o CIMI. A relação é sempre respeitosa?
Maria Rosário - É sempre muito respeitosa, não obstante possa haver divergências. No próprio campo antropológico há divergências, de resto. Onde não há divergências algo não deve estar funcionado bem, não lhe parece? O que não pode haver é divergência que, efetivamente, se constitua num desserviço à própria causa indígena. Mas eu acho que sempre houve, por exemplo, no Nordeste, relações muito respeitosas e muito complementares entre indigenistas e antropólogos. E o CIMI tem um papel importantíssimo, sempre teve, no que diz respeito à chamada questão indígena. Primeiro, o CIMI tem uma estrutura que lhe dá muito mais mobilidade do que, por exemplo, a ANAÍ, na medida em que ele possui agentes estabelecidos nas proximidades das áreas indígenas, o que assegura um contato mais regular e, conseqüentemente, um conhecimento efetivo dos reclamos dos povos indígenas, condições de diálogo permanente com os indígenas que, a partir das capitais, a ANAÍ e a CPI (Comissão Pró-Índio) não têm. Muitas vezes nós tomamos conhecimento dos problemas dos povos indígenas através do CIMI. Então, o CIMI tem essa, digamos, mobilidade em função das suas próprias características organizacionais, ou seja, um conselho em Brasília e representações/agentes junto às várias áreas indígenas.

"Eu não tenho dúvida; quando eu estou segura de minha posição, defendo-a, mas sempre procuro revesti-la de uma preocupação ética. Sempre procuro fazer da Antropologia realmente um instrumento voltado para a autonomia dos povos que eu estudo"

Coqui - A intercomunicação CIMI - Comunidades Indígenas é forte?
Maria Rosário - É forte. Tanto a partir da base nacional, quanto das várias bases regionais. E das bases regionais com a ANAÍ e setores organizados e relacionados à causa indígena. Nós - da ANAI -- temos um bom relacionamento com o CIMI. Podemos divergir, eventualmente, em termos de estratégia, de concepção, mas nunca tivemos nenhum embate que, efetivamente, implicasse no rompimento do intercâmbio solidário, voltado para a promoção das condições objetivas de existência dos povos indígenas. Talvez sejamos um bom exemplo de excelente relação entre antropólogos e indigenistas.

Coqui - Professora, a discussão sobre política de adoção de cotas nas universidades baianas está em evidência. Na UFBa há um forte movimento no sentido de criar reservas de vagas para negros, índios e seus descendentes. Qual sua posição em relação à questão?
Marria Rosário - Trata-se de uma medida indubitavelmente polêmica, controversa, que, do meu ponto de vista, só pode ser implementada provisoriamente, com o objetivo de reduzir a extrema disparidade de acesso e de permanência no sistema formal de ensino prevalecente entre as populações negra e índia, comparativamente à "branca". Mas é imperativo substituir essas 'medidas paliativas'por políticas públicas conseqüentes que superam as gritantes desigualdades étnicas e regionais.

Coqui - Por vezes, as relações entre lideranças indígenas e antropólogos é tensa. Qual tem sido sua experiência nesse sentido?
Maria Rosário - De tensão, certo? E também de não tensão. Recentemente, vivenciei um grande momento de tensão, curiosamente com os Pataxó. Por força de uma determinada circunstância, eu vivenciei uma experiência meio dramática. Eles me questionaram muito, na própria Barra Velha, onde comecei.o meu trabalho como etnóloga, no final dos anos setenta. Por uma série de razões, eles questionaram certas medidas que eu havia tomado no âmbito de um Grupo de Trabalho Técnico de definição de limites do seu território. Eles questionaram porque eu não havia começado por Barra Velha, a população de Barra Velha é muito auto-referida, em razão da sua posição como "aldeia mãe". Isso suscitou um certo ciúme e a formulação de uma crítica vigorosa, legítima, de resto, não obstante um tanto exacerbada, já que ela constituía uma espécie de reflexo das distintas posições das lideranças Pataxó na arena política local. Eu acatei, pois, as críticas que me pareceram pertinentes e recusei aquelas que careciam de justificativa Eu não tenho dúvida; quando eu estou segura de minha posição, defendo-a, mas sempre procuro revesti-la de uma preocupação ética. Sempre procuro fazer da Antropologia, realmente, um instrumento voltado para autonomia dos povos que eu estudo. Nunca lanço mão de formas de controle que, no limite, implicam em opressão mas não me nego ao confronto de opiniões. Nessa ocasião, em Barra Velha, eu me insurgi, incisivamente, contra as críticas e censuras que considerei improcedentes. Alguns chegaram mesmo a me admoestar, mas não houve ameaça física, foi só retórica. De parte a parte. Foi realmente um grande debate, onde nós deblateramos, utilizamos nossas retóricas próprias. Eles estavam, na ocasião, amedrontados. Eu sempre soube que retomar o processo de demarcação de suas terras poderia vulnerabilizá-los. Porque o que aconteceu em 1951 ainda está muito vívido na sua memória. A criação do GT provocou, no âmbito regional - em Caraíba e Corumbau, particularmente - uma forte preocupação. Pensava-se que o GT poderia deslocar, de pronto, pessoas estabelecidas em áreas tradicionais indígenas. Por sua vez, os regionais começaram a veicular notícias de que o GT iria fazer isso e aquilo. Faziam isso sem nenhuma autoridade, sem nenhum conhecimento prévio, porque eu nunca comentei nada. Nessas coisas temos que ser extremamente discretos. E começaram a fazer pressões sobre os índios. Quando eu cheguei em Barra Velha já havia uma pressão irresistível de alguns regionais sobre os índios, dizendo que novamente iria acontecer o que aconteceu em 1951. Eles entraram em pânico, o que é perfeitamente compreensível. Então, eles diziam: - "Estão dizendo que você vai retirar as pessoas de... O pessoal de... está dizendo que você vai retirá-los". Quando nós chegamos lá, em Barra Velha, já prevalecia um clima de insegurança, e eu, de certo modo, como coordenadora do GT, era a pessoa mais visada. Na verdade, os índios transferiram para o GT as pressões a que estavam sendo submetidos. Tivemos um grande embate. Eu não nego o embate, eu o enfrento. Parto do suposto de que só há consenso depois do saudável debate de idéias, quando as divergências são explicitadas e prevalece o argumento mais convincente, mais adequado às circunstâncias. O consenso fácil não me agrada, não acredito nele. Eu só acredito em consenso depois de uma grande disputa, disputa retórica, disputa de posições teóricas ou políticas. Às vezes, há disputas mais acirradas, mas, em última análise, elas são retóricas. Em Barra Velha, como já referido, o embate foi caloroso. Ainda hoje não estamos perfeitamente sintonizados. Mas estou segura de que nos estimamos mutuamente, nos respeitamos, de que sou lá muito conhecida, "cantada em prosa e verso". Pelo menos não fiquei só. Muitas outras lideranças vieram me dar apoio público. Mas também tive a preocupação de não opor liderança contra liderança. Eu não posso ser alvo de litígio entre eles. O litígio tem que ser entre eu e eles. Embate aberto. Tenho sempre a preocupação de não deixar, após minha saída, litígio entre eles. Eu tenho uma posição, digamos política em sentido estrito, que funciona como uma espécie de princípio a ser observado Uma coisa é o que o índio diz como informante. Mesmo aquilo que ele diz como informante eu tenho o direito de avaliar criticamente, de cotejar com outras fontes. Mas aquilo que é posição, que é opinião, eu não me furto a declarar, a defender, mesmo que seja contrária à posição da liderança indígena. Meu respeito para com eles passa por esse tipo de conduta. Passa pelo suposto de que eles são agentes históricos conscientes, com capacidade de reflexão crítica e que não precisamos ser indulgentes com eles, muito pelo contrário. Procuro não ser indulgente ou complacente com ninguém. Procuro manter um relacionamento que seja o menos assimétrico possível.A indulgência é um fator propiciador de relações artificiais e hipócritas

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