VOLTAR

Contra a barbárie

FSP, Brasil, p. A7
Autor: ROSSETTO, Miguel
23 de Fev de 2005

Contra a barbárie

Miguel Rossetto
Especial para Folha

Os seis tiros disparados contra a missionária Dorothy Stang ferem, cada um deles, a nossa idéia de país. Cada uma das balas atinge a concepção de um Brasil que o Estado e a sociedade civil buscam. Um país regido pela força da lei e não pela lei da força. Onde a última instância de qualquer conflito jamais ultrapassa a Justiça e a capacidade de defender argumentos e dialogar supera o monólogo do chumbo.
Um país assentado sobre instituições republicanas sólidas e aptas a defender a vida humana e, por isso mesmo, suficientemente fortes para sufocar no nascedouro o gesto puro e simples da barbárie. Essa idéia de nação acalentada ao longo da história e perseguida com particular ênfase após a redemocratização nos anos 80 também foi alvejada no sábado, dia 12, numa trilha da floresta em Anapu, oeste do Pará.
O martírio de Dorothy Stang ressalta, além da abnegação, justeza e coragem de sua luta, as dificuldades de transformar o país que temos no Brasil justo, sustentavelmente desenvolvido e igualitário que queremos. Serve para constatar, ainda, a audácia dos inimigos dessa transformação, exigida pelas convicções profundamente democráticas do governo e da sociedade. Um desafio a ser enfrentado a cada dia.
No campo, as políticas públicas que tecem este outro Brasil têm adversários poderosos. Mas eles, na maioria dos casos, exercitam seu direito de discordar por meio dos instrumentos oferecidos por uma sociedade democrática. E o enfrentamento se dá dentro dos parâmetros da civilidade e da legalidade. Mas há ocasiões, como aconteceu em Anapu, que a rejeição às mudanças que o Brasil precisa operar para deixar de visto -pelos nossos próprios olhos e pelos olhos do mundo- como o país da grilagem e da impunidade se materializa através da violência privada e do assassinato dos lutadores sociais.
Que resposta deve ser dada a essa ameaça que nos envergonha e insulta como nação, além da captura e da punição exemplar dos homicidas, autores e mandantes? O único caminho é o do aprofundamento das transformações já em curso, como o ordenamento fundiário e a preservação ambiental. Uma operação conjunta de órgãos federais, em especial Incra, Ibama, DRT, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Forças Armadas, já desencadeou uma série de ações.
No âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, as atividades de regularização fundiária e os programas de reforma agrária irão continuar. Assim como serão retomadas as áreas da União ilegalmente ocupadas. Equipes do Incra, com o apoio da Polícia Federal e do Exército, farão vistorias em 25 áreas na região de Anapu, num total de 75 mil hectares.
Essas vistorias serão acompanhadas por técnicos do Ibama e da DRT que verificarão in loco a existência de crime ambiental e trabalho escravo e estabelecer sua respectiva punição. O objetivo é decretar essas propriedades como áreas de interesse social para fins de reforma agrária. Além das vistorias, topógrafos e técnicos agrícolas do Incra irão georreferenciar todos os imóveis rurais de Anapu, e iniciar a regularização dos lotes até 100 hectares do município. Hoje, no Projeto de Desenvolvimento Sustentável de Anapu I estão assentadas 250 famílias numa área de 27 mil hectares. Nos dois primeiros anos do governo Lula 24,2 mil famílias receberam seus lotes no Pará.
O número de hectares desapropriados no Estado avançou de 2.046 no ano de 2003 para 168.504 em 2004. Agora, em 2005, a meta é assentar mais 20 mil famílias. Igualmente compromisso prioritário do governo, o volume de créditos destinados aos agricultores familiares do Pará subiu mais de 500% entre 2002 e 2004. Passou de R$ 45,6 milhões para R$ 307,3 milhões. Isso representa uma demonstração de vontade política transformadora, através de programas habilitados a alterar a fisionomia social e econômica de uma região.
A permanência de uma brutal concentração fundiária e da prática ancestral da usurpação de terras públicas, fenômenos que, com freqüência, se expressam através da retórica da bala, são circunstâncias que se opõem à construção do Brasil que queremos construir. É contra essas forças que renegam o Estado Democrático de Direito e adotam o homicídio como práxis política que se trava o combate. Da vitória do Estado e da sociedade depende o nascimento da nação que sonhamos, com prosperidade e paz no campo.

Miguel Rossetto, 44, é ministro do Desenvolvimento Agrário. Foi vice-governador do Rio Grande do Sul (1999-2002).

FSP, 23/02/2005, Brasil, p. A7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.